terça-feira, 1 de agosto de 2023

Bahia: Dinheiro gasto por ano com reconhecimento facial  custearia um hospital por 32 anos e 1,5 mil ambulâncias

A 930 metros acima do nível do mar, a pacata cidade de Seabra, incrustada na Chapada Diamantina, na Bahia, tem um frio moderado até mesmo em dias de verão. O principal meio de locomoção, como é comum em várias cidades do interior nordestino, é o mototáxi. Nas três vezes que passei pela sede da 29ª Companhia de Independente da Polícia Militar, unidade responsável pelo policiamento ostensivo na área, uma viatura estacionada na calçada estava de vidros abertos sem ninguém por perto. “Aqui a gente não tem muito problema. Já teve vezes de deixar a moto na calçada de casa com a chave”, me contou uma servidora pública. 

Seabra foi escolhida pelo governo da Bahia como uma das 78 cidades a receber sua festejada tecnologia de reconhecimento facial. São oito câmeras cobrindo parte do centro urbano do município. A tecnologia faz parte da vitrine da gestão estadual, que entra no quinto mandato seguido sob o comando do PT, e é o principal gasto do governo baiano na área de segurança pública.

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Funciona assim: as câmeras captam os rostos de pessoas que circulam pelas ruas, o sistema registra e faz o link com um banco de fotos – no caso baiano, a partir de mandados de prisão –, que é vasculhado por um algoritmo responsável por comparar as imagens e encontrar semelhanças. Quando há um match, um alerta é disparado para a polícia, que é enviada para o local para averiguação.

A informação de que esse moderno sistema de monitoramento facial está funcionando em Seabra trouxe estranheza a quem mora no local. Nem mesmo a prefeitura tinha ciência disso – até ser questionada pelo Intercept. “Nada foi dito à gestão municipal. Recentemente, tentamos implantar um sistema de vigilância com câmeras no centro da cidade, com apoio de empresários, e não foi possível. Mas nada a respeito desse sistema do governo chegou até nós”, afirmou a assessoria da prefeitura.

O reconhecimento facial é parte do contrato de valor mais alto hoje em vigor na Secretaria de Segurança baiana. Cada ponto de imagem com a tecnologia custa, em média, R$ 66,3 mil, além de toda a infraestrutura prevista na contratação. No total, o gasto chega a R$ 665 milhões, até julho de 2026, para a implantação e uso do sistema em 78 dos 417 municípios baianos, em conjunto com diversas outras soluções de vigilância e telecomunicações. 

De acordo com um estudo do Panóptico, projeto de monitoramento de iniciativas de reconhecimento facial, o valor investido no contrato da Bahia para aquisição dos equipamentos e do software possibilitaria, a título de comparação, investimentos como a compra de 1,5 mil ambulâncias com UTI móvel. Ou construir por 300 unidades de pronto atendimento, as UPAs. Ou até custear um hospital de referência por 32 anos.

O enorme investimento, no entanto, não impediu que a Bahia vivesse uma onda de violência. Foram quase 7 mil assassinatos no estado em 2022, segundo o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Do ranking das 50 cidades com maior número de assassinatos, 12 estão na Bahia. No topo da lista estão Jequié, Santo Antônio de Jesus e Simões Filho, todas com mais de 80 mortes a cada 100 mil habitantes. Todas são equipadas com as câmeras do governo estadual, que garante que o investimento deu resultado

·         Prisão de devedor de pensão

Seabra não está na lista dos municípios mais violentos da Bahia. A cidade tem mais da metade da sua população, de aproximadamente 49 mil pessoas, na zona rural. Mais de 51% dos moradores vivem sem abastecimento de água e pouco mais de 4% da cidade conta com cobertura adequada de saneamento básico. Desses, só 0,75% têm o esgoto devidamente manejado e tratado. 

As câmeras em Seabra estão distribuídas no centro da zona urbana, região repleta de pequenos comércios e serviços como bancos, lotéricas e clínicas médicas, cortada por estreitas ruas de calçamento. Asfalto mesmo, só em um pequeno trecho de uma avenida principal, entre a margem da BR-242, principal porta de entrada da cidade, e a ponte sob o tímido Rio Cochó que serpenteia o município. 

Tida como o centro geográfico da Bahia, a cidade nomeada em homenagem ao ex-governador J. J. Seabra fica na confluência de estradas que interligam Salvador, a fronteira agrícola do oeste baiano e o norte do estado. Menos conhecida que os polos turísticos vizinhos que atraem viajantes do país inteiro, como Lençóis e Palmeiras, Seabra é o município mais populoso da região. A prefeitura estima que a cidade receba, em dias mais movimentados, até 7 mil pessoas de municípios vizinhos. “Há uma concentração de serviços que atendem toda a região, por isso o fluxo. Mas casos de violência mesmo são raros, o último de grande porte foi em 2016”, relatou a prefeitura, citando um assalto a banco naquele ano.

As próprias estatísticas da Secretaria de Segurança Pública, a SSP, vão ao encontro das impressões: entre janeiro e setembro de 2022, não foi registrada nenhuma morte violenta em Seabra. Roubo a estabelecimento comercial foram dois e a “transeuntes”, como registra a secretaria, foram oito – somando os dois tipos, a média de crimes fica pouco acima de um por mês nesse período. Os números se somam ao resultado gerado pelo uso do reconhecimento facial na cidade até aqui: um único preso, por não pagamento de pensão alimentícia, no fim de março deste ano. 

“As licitações para contratação de tecnologias de vigilância estatal, que superaram as centenas de milhões de reais, causam estranheza”, avaliou Tarcízio Silva, pesquisador sênior em políticas de tecnologia da Fundação Mozilla e especialista em antirracismo na inteligência artificial.

A implantação do sistema vem de longa data. Começou no fim de 2018, exclusivamente em Salvador. O processo foi evoluindo até 2021, quando, sob a gestão do governador Rui Costa, a SSP assinou um contrato para expandir o sistema de controle. Quem o abocanhou foi o Consórcio Vídeo Polícia, formado pelas empresas Oi Soluções e Avantia Tecnologia e Segurança, sediadas em Recife, Pernambuco. 

A planilha de preços cita diretamente em dois tópicos o termo “reconhecimento facial”. O primeiro fala de “ponto de imagem tipo III” para ambientes internos e externos de fluxo controlado, no qual deverão ser aplicados R$ 28,8 milhões em 424 unidades. Já o segundo tópico é o “ponto de imagem tipo IV”, em locais de fluxo livre, com 573 unidades ao custo de R$ 37,2 milhões. 

·         Cada prisão feita a partir dessa tecnologia na Bahia custou, em média, R$ 875 mil.

No total, serão 997 câmeras implantadas gradualmente nos municípios. Somam-se a esse valor outros pontos necessários para o funcionamento pleno do sistema, como o sinal de comunicação de banda larga, infraestrutura física e técnica. 

O resultado? Segundo a Secretaria de Segurança Pública da Bahia, até agora 760 pessoas foram presas no estado com o auxílio do reconhecimento facial desde 2019, ano em que o sistema foi implementado. Cada prisão custou, em média, R$ 875 mil. O mais recente balanço divulgado pela SSP, quando foi capturada a 600ª pessoa por meio de reconhecimento facial, aponta que mais da metade dos presos eram procurados por assalto (222 casos) e tráfico (106 casos).

O governo informou que utiliza o Banco Nacional de Mandados de Prisão, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça, para alimentar a tecnologia no estado. Na Bahia, são 13.965 mandados de prisão pendentes. Em tese, as câmeras varreriam todos os rostos captados para tentar encontrar um match entre os procurados. 

Segundo a Secretaria de Segurança Pública, entre o início da implantação do programa, à época restrito a Salvador, e o fim do primeiro semestre de 2022, foram captados mais de 280 milhões de rostos. 

“Hoje, já se tem o conhecimento de que, se eu ando no metrô de Salvador, meu rosto foi para o banco. Ou seja, é uma forma de vigilância sem respaldo legal. Não temos uma legislação sobre onde isso vai ficar, quem guarda. O termo de referência fala que a Oi vai guardar meus dados. A Oi? Uma empresa vai gerir os meus dados?”, desaprova. 

Para Tarcízio Silva, os gastos excessivos em tecnologias “cria uma infraestrutura que traz factualmente mais riscos do que benefícios e destoa do que poderia ser investido na construção de bem-estar social e geração de empregos no estado”.

·         Máquina de prender preto

Para o defensor público Maurício Saporito, a extensão do uso da tecnologia em Salvador e na Bahia não é à toa. “Não pode ser coincidência que você tem um sistema que é condenado no mundo inteiro por ter um viés racial, pega e traz para o estado mais negro da federação e coloca como case de sucesso. Você analisa os casos, e é só gente negra presa”, completou.

A análise do defensor coincide com estudos prévios feitos pela Defensoria Pública a respeito das audiências de custódia. Em 2019, 97,8% das 5.153 pessoas presas em flagrante na capital baiana eram pretas ou pardas. Um estudo semelhante a respeito das prisões por reconhecimento facial está em curso. “A decisão por mais policiamento, vigilância e violência como reação a problemas de segurança pública tem terreno fértil em países construídos por meio da escravidão, como Estados Unidos e Brasil, por causa da supremacia branca vigente. O acúmulo de violência e desigualdades sociais atualizado constantemente através do racismo estrutural avança no posicionamento de que pessoas negras são menos dignas da vida e de direitos”, acrescentou Silva.

Respondendo a um questionamento feito via Lei de Acesso à Informação, a Secretaria de Segurança da Bahia informou que não produz dados estatísticos a respeito do perfil étnico-racial das pessoas que são detidas a partir do reconhecimento facial por câmeras.

“Acaba sendo uma tecnologia para continuar vigiando as mesmas pessoas, sob o pretexto de vigiar todo mundo. Coloca-se onde tem a maior circulação de pessoas negras: festa popular na rua, não na entrada do camarote; bota no metrô, não no shopping”, finalizou o defensor Maurício Saporito, criticando o que chama de “contenção e controle da população negra e vulnerabilizada”.

Procurada pelo Intercept por telefone e por e-mail, a SSP não deu qualquer retorno aos questionamentos e pedidos de entrevista. Em resposta via Lei de Acesso ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a gestão ressaltou que o sistema visa “proteção da vida e da propriedade, a prevenção e a detecção de crimes e a garantia da segurança pública, tornando-se um instrumento salutar para o combate à criminalidade e passando a ser um instrumento agregador no mecanismo de prevenção ao crime, quando empregadas em conjunto com processos e práticas eficientes de policiamento”.

Para Igor Rocha, capitão da PM que preside a Associação dos Oficiais Militares Estaduais da Bahia, a tecnologia implantada pela SSP é benéfica para o trabalho na segurança pública. “O reconhecimento facial é uma tecnologia que dá um upgrade para a segurança pública. Agora nas festas, como o Carnaval, tem grande utilidade. Isso otimiza o trabalho da polícia e da justiça. É uma ferramenta excelente, que a gente acredita que veio para somar ao trabalho que o policial já desenvolve no dia a dia”, defende o militar.

Mas tanto policiais da ativa ouvidos pelo Intercept como o coordenador geral da Associação dos Policiais e Bombeiros da Bahia e ex-deputado estadual ligado à direita, Marcos Prisco, têm outra avaliação. “Para quem está na ponta, é um investimento para inglês ver. Até o momento, o efeito prático é zero. Os policiais não são contra o reconhecimento facial, mas você não vai substituir um homem por uma câmera. Deveria investir na base”, afirmou o representante dos PMs. 

·         Até o momento, o efeito prático é zero.

O discurso é ecoado por agentes ouvidos em anonimato. “A gente recebe o chamado, aparece a identificação lá na tela. Até aí, tudo bem. Mas a gente só vai se for uma situação tranquila, um cara que a gente vê que não é perigoso. Nenhum policial vai se arriscar. Termina que a tecnologia não muda muita coisa”, disse um deles. 

Já à esquerda, a crítica é relacionada aos vieses discriminatórios da tecnologia. O deputado estadual Hilton Coelho, do Psol, apresentou à Assembleia Legislativa da Bahia, em 2022, um projeto de lei para suspender completamente o uso do sistema. “ As câmeras vêm no sentido de um controle dessa grande população negra, que aos olhos de uma elite – e, infelizmente, o governo reproduz essa posição – precisa ser tutelada, acompanhada, reprimida, muitas vezes por ações seguidas de morte”, apontou Hilton. 

O parlamentar pontuou ainda a falta de diálogo por parte do governo. “O que vemos é o que sai na imprensa e nas publicações oficiais. Não existe envolvimento da sociedade, do parlamento. Aponta-se um caráter autoritário. Não está inserido em um debate sobre segurança pública garantidora de direitos, nem de reforço da investigação em detrimento da ação ostensiva”, concluiu.

 

Fonte: Por Paulo Nascimento, em The Intercept

 

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