quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Entenda o que ocorre se STF e Congresso tomarem decisões diferentes sobre o marco temporal

A decisão sobre a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas está simultaneamente nas mãos de dois poderes da República: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. A Agência Pública entrevistou especialistas para entender o que ocorre caso a Corte e o parlamento encaminhem definições diferentes sobre o tema.

O movimento indígena e organizações indigenistas acreditam que o STF deve rejeitar o conceito jurídico, segundo o qual só devem ser reconhecidos pelo Estado territórios ocupados pelos indígenas em outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição.

A retomada do julgamento pelo tribunal foi marcada para esta quarta-feira (30), após o ministro André Mendonça devolver o processo na noite da última quinta-feira (24) – ele havia pedido vistas no dia 7 de junho. Por enquanto, são públicos três votos: os do relator Edson Fachin e de Alexandre de Moraes, contrários à tese, e o de Kassio Nunes Marques, favorável. Oito ministros ainda precisam se posicionar sobre o tema e podem paralisar o processo para analisá-lo mais profundamente.

Já no Congresso, a expectativa é de que o projeto de lei que trata do assunto (PL 2.903/23) seja aprovado. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais, defende o marco temporal e articula para que o PL 2.903/23 seja votado antes da conclusão do julgamento no Supremo.

Na semana passada, a matéria passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Lá, a relatoria ficou com o senador Marcos Rogério (PL-RO), que já se manifestou publicamente a favor do marco temporal.

A etapa seguinte à CCJ é a votação do PL no plenário do Senado. Depois disso, se os senadores fizerem mudanças no texto, ele volta para a Câmara, que pode aceitá-las ou rejeitá-las, sem propor novos trechos ao projeto.

Concluída essa fase, a matéria será encaminhada para análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancionar ou vetar dispositivos do texto. Se houver vetos, eles serão examinados pelo Congresso, em sessão conjunta da Câmara e Senado, que pode derrubá-los. Só ao fim desse processo, a lei será promulgada e entrará em vigor.

O jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e especialista em direito constitucional, explica que, caso o marco temporal vire lei pelas mãos do Congresso antes da conclusão do julgamento no STF, a Corte pode seguir por dois caminhos.

“Pode dizer: não é mais comigo, porque já existe uma lei sobre isso”, afirma, destacando que essa decisão ficará a cargo do relator do processo, o ministro Edson Fachin. “Ou pode dizer: há uma lei fixando o marco temporal [para demarcação de terras indígenas] a partir de 5 de outubro de 1988, que era o que eu já estava discutindo, então vou apreciar a constitucionalidade daquilo que o Congresso definiu”.

De acordo com Lima, nesta última hipótese, o STF poderia aproveitar o julgamento atual para analisar a constitucionalidade da lei.

A advogada Ana Carolina Alfinito, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e assessora jurídica da ONG Amazon Watch, reconhece a possibilidade de o STF decidir não mais se posicionar sobre o marco temporal caso seja instituída uma lei que determina a sua aplicação como critério para a demarcação de terras indígenas. No entanto, ela a considera pouco provável.

“O relator está muito interessado que esse julgamento aconteça. A presidente [da Corte] Rosa Weber também quer pautar [a questão]. Isso se tornou, inclusive, um tema de debate dentro do STF”, pontua.

Alfinito avalia ainda que, com o voto de Alexandre de Moraes, proferido em 7 de junho, o STF tem a oportunidade de “fazer uma conciliação” em torno do marco temporal. O ministro rejeitou a tese, mas colocou duas novas propostas sobre a mesa: o pagamento de “indenização prévia” a proprietários de imóveis sobrepostos a terras indígenas; e a compensação por “territórios de interesse público”. Esta última situação prevê a possibilidade do Estado oferecer aos indígenas áreas alternativas àquelas que reivindicam.

Para a advogada, a indenização seria uma forma de apaziguar os dois lados. “O tribunal está numa posição confortável: é capaz de superar a tese inconstitucional do marco temporal e, ao mesmo tempo, agradar as forças políticas que o defendem”, argumenta.

Na visão de lideranças indígenas e especialistas, porém, o PL 2.903/23 traz uma série de outros ataques aos direitos indígenas que vão além do marco temporal.

Entre outros pontos, o texto atual proíbe a ampliação de territórios já demarcados e permite que obras relacionadas à “política de defesa e soberania nacional” sejam realizadas sem consulta aos povos afetados (leia aqui reportagem da Pública sobre 10 itens polêmicos do PL).

Um parecer da consultoria jurídica da Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) publicado neste mês concluiu que “diversos dispositivos” do projeto de lei são inconstitucionais.

Por causa desses vários pontos polêmicos, os especialistas ouvidos pela reportagem compreendem que, se a matéria for convertida em lei, será necessário o questionamento de sua constitucionalidade no STF.

Caso o Supremo conclua seu julgamento antes de  o PL 2.903/23 ser votado pelo Congresso, a expectativa dos especialistas é que isso acabe interferindo na tramitação legislativa. “Se o STF decidir logo, certamente influenciará no texto em curso no Legislativo. Seria muito estranho o Legislativo afrontar o STF com um texto que colide com a decisão da Corte”, afirma Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, considera que a decisão trará repercussões à tramitação do projeto.

 

       Pacheco quer adiar votação do Marco Temporal

 

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sinalizou a aliados que deve atender ao governo e postergar a tramitação do marco temporal da demarcação de terras indígenas. A expectativa é que Pacheco aguarde a conclusão da deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto para que os parlamentares se debrucem sobre uma nova jurisdição. Do contrário, ele avalia que poderá haver insegurança jurídica.

Uma das possibilidades em discussão envolve Pacheco autorizar o envio da proposta para mais um colegiado – o texto já passou pela Comissão de Agricultura (CRA) e está agora na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Nessa terça-feira (29), o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), procurou Pacheco para pedir que ele autorize o envio da matéria para a Comissão de Meio Ambiente (CMA). O presidente da Casa ficou de analisar.

“O governo vai tentar de todas as formas postergar a tramitação aqui no Congresso. O objetivo é ganhar tempo para apresentar uma proposta alternativa” declarou Randolfe.

Já o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), avaliou que o Supremo decidir antes do Legislativo “não resolve o problema”.

Wagner também fez referência ao voto do ministro Alexandre de Moraes, considerado um “meio termo”, que estipula indenização da União a produtores rurais que adquiriram terras indígenas regularmente. “A decisão do Alexandre fala em indenizar, mas quem terá dinheiro para pagar? Já falei para os ruralistas que eles vão receber um monte de precatórios”, disse o líder, que sugere um prazo de cinco anos para a manutenção das regras vigentes.

Pacheco está sob forte pressão da bancada ruralista para pautar a matéria. A senadora Tereza Cristina (PP-MS) defende que o Senado se antecipe ao Supremo. Ela é responsável por um requerimento de urgência para que a proposta vá diretamente ao plenário, mas o presidente da Casa não o submeteu à deliberação.

“Eu imagino que a coerência seria votar aqui, porque, afinal de contas, esse assunto só está lá [no STF] porque a gente não decidiu. Assim como outros acabam indo para lá, ou porque a minoria perde e vai questionar”, pontuou Tereza.

Tereza também faz ressalvas ao voto de Alexandre de Moraes. “O voto dele é um voto do meio, mas não crava o marco temporal. Fica faltando essa pecinha chave que é essa bendita data.”

Nas últimas semanas, o presidente do Senado tem criticado o STF por invadir a competência do Legislativo, como por exemplo, na deliberação sobre a descriminalização do porte de drogas. Ele voltou a falar sobre o assunto nessa terça. Interlocutores de Pacheco, no entanto, acreditam que os dois casos são distintos.

Para Tereza, a escolha do presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), pelo senador oposicionista Marcos Rogério (PL-RO) e não por um parlamentar próximo ao governo, é mais um indicativo de que o Senado não quer adiar a apreciação da matéria, como deseja o Planalto, e deve deliberar sobre o tema antes do Supremo.

A escolha foi criticada por Randolfe. Para ele, deveria ter sido escolhido alguém mais moderado.

 

       Zanin pode ser responsável por vitória do Marco Temporal

 

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira (29) o julgamento sobre a definição de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas com os holofotes voltados para o novato da Corte, o ministro Cristiano Zanin Martins.

Após despistar os senadores ao ser confrontado cinco vezes sobre o tema durante a sua sabatina, em junho deste ano, Zanin finalmente terá de se posicionar sobre o assunto e revelar sua opinião.

E mais: caso Zanin siga trilhando o caminho conservador que vem adotando até aqui, deverá desempatar o julgamento, criando maioria provisória a favor dos ruralistas.

Por enquanto, o placar do julgamento está em 2 a 1 contra a tese do marco temporal, ou seja, contra a utilização da data de promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988 – para a definição da ocupação da terra por comunidades indígenas.

A discussão foi interrompida no início de junho por um pedido de vista de André Mendonça, cujo voto vai reabrir a discussão nesta quarta-feira à tarde.

A expectativa no STF é a de que Mendonça se alinhe a Kassio Nunes Marques a favor da tese do marco temporal, empatando o julgamento em 2 a 2.

Pela ordem de votação, Zanin se manifestará logo depois de André Mendonça.

Caso vote a favor do marco temporal, Zanin vai se alinhar à posição defendida por Jair Bolsonaro, que, durante o período em que ocupou o Palácio do Planalto, ameaçou descumprir a decisão da Corte caso fosse a favor dos direitos dos povos indígenas.

“Não é ameaça, é uma realidade. Só nos restam duas alternativas: pegar a chave da Presidência, me dirigir ao presidente do Supremo e falar: ‘administra o Brasil’. Ou, a outra alternativa: não vou cumprir”, disse Bolsonaro durante um culto evangélico em Goiânia em maio de 2022.

A fixação do marco temporal, defendida pela bancada ruralista, já foi aprovada em projeto pela Câmara dos Deputados, mas o tema ainda está pendente de análise no Senado.

No STF, a análise da controvérsia foi iniciada em setembro de 2021. Desde então, o relator do caso, Edson Fachin, e o ministro Alexandre de Moraes, já se manifestaram contra a tese do marco temporal.

Não há, porém, nenhuma garantia de que o julgamento vá ser concluído agora. Qualquer outro ministro pode pedir vista, da mesma forma que Mendonça fez – incluindo Zanin, que está sob pressão da esquerda em razão de seus votos alinhados aos conservadores.

Como cada período de vista tem prazo máximo de 90 dias e, contando com Zanin, ainda há oito ministros para votar, a definição do Supremo sobre o caso do marco temporal ainda pode demorar bastante tempo.

Conforme informou a coluna, a preocupação da esquerda com a postura de Zanin nesse julgamento é grande – não só porque os votos dele em apenas três semanas de Supremo foram contra suas pautas, mas também porque na sabatina que enfrentou no Senado antes de ser nomeado ele também evitou responder a respeito.

O tema sempre foi trazido na sabatina por parlamentares ligados a Bolsonaro, e não por aliados do presidente Lula, que em momento algum quiseram saber a opinião do indicado sobre o tema – mas agora se dizem frustrados com as posições conservadoras do ministro.

“Com relação ao marco temporal, também é um assunto que está em discussão tanto neste Senado como também no Supremo Tribunal Federal. Cada instituição, ao seu tempo e modo, terá que sopesar aquilo que está previsto na Constituição, os valores que estão ali previstos e que, aparentemente, podem estar em conflito e que terão que ser conciliados, como é o caso do direito à propriedade e do direito aos povos originários”, enrolou Zanin em sua sabatina.

 

Fonte: Por Anna Beatriz Anjos, da Agencia Pública/Valor Econômico/O Globo

 

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