“Escola virou
depósito de criança”, diz psicóloga
Especialista
em atender emergência e situações de crise, a psicóloga Luciana Inocêncio estava na
linha de frente do tratamento de vítimas do massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na
Grande São Paulo, que terminou com 10 mortos e 11 feridos, em março de 2019.
O
ataque que chocou o país também marca uma onda de violência nas escolas
brasileiras, com casos cada vez mais
frequentes desde
então. De lá para cá, foram mais quatro atentados em São Paulo e outros 14 nos
demais estados. O mais recente aconteceu no Colégio Estadual
Professora Helena Kolody, em Cambé, no Paraná, na última segunda-feira (19/6).
Em
entrevista ao Metrópoles,
Luciana fala da sua experiência em Suzano, reflete sobre o que está por trás da
série de ataques e explica o que o Brasil ainda não aprendeu, mesmo com esses
episódios.
“Não
é só a hora do ataque que importa. Você reforma a escola, acolhe em um primeiro
momento, isso dura alguns meses, mas e depois? Para quem perdeu o filho, a dor
não dura um mês, dois meses ou um ano.”
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Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
·
Só em 2023, o Brasil já registrou sete ataques em
escolas, um recorde absoluto, e a gente ainda nem chegou à metade do ano. O que
está acontecendo?
Antigamente,
a escola era sinônimo de segurança. O pai deixava o filho, o seu bem mais
precioso, e podia ficar tranquilo. Agora, ele não sabe se vai buscá-lo em um
caixão. Esses ataques são resultados de vários fatores. O problema já vem há
mais de 20 anos no Brasil, sempre com a questão do bullying por trás, mas
piorou. O quadro de hoje é o seguinte: há um adoecimento psíquico maior,
principalmente de crianças e adolescentes, e uma enorme dificuldade por causa
da desestruturação familiar. Tudo isso acaba recaindo sobre a escola, que já
era sobrecarregada e agora tem responsabilidades a mais.
·
Se a escola está sobrecarregada, quem deve
socorrê-la?
Todo
mundo, mas principalmente as famílias. A função da escola é desenvolver o
aprendizado, a cidadania e a socialização das pessoas. A educação de regras,
limites e tolerância deveria vir de casa. Todo ataque é praticado por uma
pessoa que, enquanto sujeito pensante, tem ética, moral e limites. Não adianta
só levar o filho às 7h e ir pegá-lo às 19h. A escola em si virou depósito de
criança. Precisando lidar com uma sala de 40 alunos, como o professor vai
conseguir ensinar, alfabetizar, corrigir e, ainda por cima, ver se a criança
tem algum problema de comportamento? Ele precisa ser mãe, médico, psicólogo,
policial… Não dá conta.
·
Bullying é uma realidade das escolas desde sempre.
Por que não havia tantos casos antes?
A
adolescência é conflituosa por si só, mas a forma emocional e comportamental
como os nossos jovens lidam com os conflitos mudou. O adoecimento psíquico está
maior, os números são muito claros. O bullying ganhou mais peso em quem pratica
e em quem é vítima. Como a vítima já está fragilizada, ela adoece
psicologicamente, com transtornos de ansiedade, fobia social, depressão. Muitas
vezes, acaba desenvolvendo um sentimento de vingança, ira, ódio. Aí que está o
problema. O ataque é uma das maneiras que ela encontra para lidar com aquilo e
pedir socorro.
·
Foram 25 atentados registrados em escolas do Brasil
desde 2002. Em todas as vezes, o agressor era do sexo masculino. Por que sempre
é um homem?
Talvez,
isso esteja associado à cultura do homem de falar menos e ter mais dificuldade
de expor o que sente. Alguns perfis de agressores são de pessoas muito
introspectivas, fechadas no próprio mundo. Mas não vejo necessariamente que os
ataques em escolas sejam próprios do masculino. Se a gente for analisar cada
um, vai ver que a desestruturação familiar é um elemento presente. Essa criança
não tem abertura em casa para dizer que está passando por problemas.
·
Toda vez que há um novo ataque, voltamos a discutir
medidas de segurança nas escolas, como contratação de policiais, botão do
pânico, câmeras. Isso resolve?
Por
que ninguém conseguiu formar protocolos efetivos de segurança até hoje? Só isso
não adianta. A escola deveria ser um lugar de liberdade e, daqui a pouco, nós
vamos transformá-la em presídio, com grades, detector de metal… Falta o diálogo
entre políticas de educação, de segurança pública e de saúde mental. As três
são importantes e precisam andar juntas. Se a família e a escola não conseguem
perceber que o estudante está diferente e anda com comportamento estranho, isso
é um problema de saúde mental.
·
Para um ataque se concretizar, precisamos ter deixado
de identificar um possível agressor. Depois, ele ainda tem que entrar na escola
e conseguir machucar as pessoas. Quer dizer: quando um ataque acontece,
significa que nós falhamos muitas vezes?
Entende
que há consequências em cadeia? O sujeito não faz o ataque de uma hora para
outra, ele fica meses ou até anos planejando. O caso mais recente, em Cambé
(PR), foi assim. O rapaz tinha 21 anos e saiu da escola em 2014; ele não matou
pessoas que fizeram bullying com ele. Na Raul Brasil (em Suzano) aconteceu
a mesma coisa. A questão toda é o que a escola representa. O ataque é uma
vingança contra o que a instituição representa, e não contra um indivíduo. E
por que na escola? Porque é lá onde tudo aconteceu na vida daquele sujeito, as
coisas boas e as coisas ruins.
·
Então, qual é a solução?
Trabalhar
com prevenção. A escola precisa ter abertura para dizer: “Olha, o seu filho não
está bem”. Só que, para perceber isso, a escola tem que ter profissionais
adequados. É necessário ter uma equipe de psicólogos que façam trabalhos
preventivos, grupos terapêuticos, treinamento de professores. O problema é que
a gente só olha para a questão com o viés da segurança. A solução para esses
ataques envolve trazer as famílias para perto, fortalecer a comunidade escolar,
cuidar da saúde mental. É um conjunto de coisas.
·
A senhora atendeu vítimas do massacre da Raul
Brasil, em Suzano, um dos mais violentos. Desde então, o número de ataques só
cresce, e muitos agressores citam aquele episódio como “inspiração”. O que a
gente não aprendeu em 2019 e continua sem aprender até agora?
Não
aprendemos a prevenir. Assim que aconteceu o ataque na Raul Brasil, colocaram
psicólogos na escola. Depois, o que São Paulo fez para a prevenção em outras
unidades? Cadê as equipes multidisciplinares trabalhando em conjunto nas
escolas? O que as escolas oferecem de combate ao bullying? Quais são os
programas? Como estão sendo implementados? O que estados, prefeituras e governo
oferecem de proteção? Porque o que tem, os números mostram, não está sendo eficaz.
·
O jornalismo falha na cobertura dos ataques? Como
equilibrar o noticiário, dando a devida relevância a um fato como esse e
minimizando os riscos de a divulgação ser um gatilho para novos casos?
Eu
acho que falha, porque mantém o foco na segurança pública, nunca na saúde
mental. A discussão fica em cima da questão de como o ataque foi realizado e
qual era o planejamento, quando, na verdade, ela deveria estar direcionada para
tratar da prevenção. Não divulgar detalhes de quem cometeu o ataque já ajuda.
·
Como a senhora ficou sabendo do ataque em Suzano?
Ao
vivo e a cores. Eu estudei naquela escola e moro a um quarteirão de lá. Naquela
manhã, fui para a academia, estava voltando para casa e estranhei porque
encontrei a minha rua fechada. Tinha muito helicóptero e equipes de televisão
na hora. Veio um policial civil, muito apavorado, e me falou do ataque: “Eu
nunca vi um negócio desses”. Ele tremia. Aquele policial me marcou muito.
·
Em que momento a senhora começou a atuar no caso?
Eu
tenho especialidade em situações de emergência e, assim que entrei em casa,
recebi um telefonema em que perguntavam se poderia eu dar um auxílio na base de
apoio que havia sido montada na rua de trás. Quando cheguei lá, estava tudo
cru. Havia equipes de saúde mental do município, os psicólogos da rede, e era
isso. A gente ainda não sabia quem eram as vítimas, e foram colocando todos os
familiares lá… Imagina a bagunça. Fomos ligando para as pessoas, chamando
voluntários, formando as equipes.
·
Isso no dia do ataque?
Na
hora do ataque, coisa de 40 minutos depois de acontecer. No primeiro momento, a
gente foi levando os familiares para uma sala, com psicólogo e assistente
social, para dar a notícia sobre as vítimas. O cenário era o pior possível,
todo o quadro era terrível, mas nós conseguimos tornar aquilo mais humano.
·
O que se fala para as famílias numa hora dessas?
O
desespero maior foi na hora do ataque. Muitos alunos correram, os vizinhos
saíram abrindo as portas para protegê-los, ninguém sabia direito onde as
pessoas estavam. Quando montaram a base de apoio, o pior momento já havia
passado. Se o filho ainda não tinha chegado em casa ou o celular tocava e
ninguém atendia, os pais já sabiam que podiam receber aquela notícia. No
coração deles, eles já sabiam. De toda forma, o acolhimento faz toda diferença,
e a informação foi dada da maneira mais humana possível. Eu me lembro da filha
de uma das vítimas, que me dizia: “Só queria poder ter abraçado minha mãe antes
de sair de casa, nunca mais vou poder abraçar a minha mãe”. Eu me lembro de
cada angústia, de cada olhar… É um cenário inesquecível. Eu dizia a todos eles
que queria tirar a dor que estavam sentindo, mas que não tinha esse poder.
·
Quando a escola reabriu, a senhora também estava lá?
Sim,
acompanhei a reabertura por algumas semanas, fiz rodas de conversa com alunos e
funcionários. Quem não tinha condições de ir para a escola, por questões
psíquicas, a gente ia atender em casa. É importante lembrar que não é só a hora
do ataque que importa. Você reforma a escola, acolhe em um primeiro momento,
isso dura alguns meses, mas e depois? Para quem perdeu o filho, a dor não dura
um mês, dois meses ou um ano. É fundamental estar atento a isso. Existem
familiares de vítimas da Raul Brasil que se suicidaram depois.
·
Trauma tem cura?
Tem
cura e tem tratamento. Eu abri meu consultório voluntariamente para quem
quisesse se tratar. Por muito tempo, a história da Raul Brasil não saiu da
minha sala. E, se você quer saber, muitos ex-alunos que passaram pelo
tratamento estão bem, fazem faculdade e conseguiram seguir a vida.
Fonte:
Metrópoles
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