Por
que o capitalismo precisa da guerra?
A
essência do capitalismo consiste em um único ponto. É um sistema social
idealmente acéfalo, desprovido de uma liderança política, guiado por um único
imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo
- A essência do
capitalismo
A
ligação entre capitalismo e guerra não é acidental, mas sim estrutural e
inevitável. Apesar da literatura de autopromoção do liberalismo ter sempre
tentado argumentar que o capitalismo, traduzido como “doce comércio”, seria uma
via preferencial para a pacificação internacional, na realidade isso sempre foi
uma evidente falsidade. E isso não porque o comércio não possa ser um caminho
para a paz – ele pode ser –, mas porque a essência do capitalismo não é o
comércio, que é apenas um de seus possíveis aspectos.
A
essência do capitalismo consiste em um único ponto. Trata-se de um sistema
social idealmente acéfalo, ou seja, idealmente desprovido de uma liderança
política, mas guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a
cada ciclo produtivo. O núcleo ideal do capitalismo é a necessidade de que o
capital gere retorno, quer dizer, que aumente continuamente. A condução desse
processo não é atribuída à política – muito menos à política democrática –, mas
sim aos detentores de capital, os sujeitos que personificam as exigências do
sistema financeiro.
É
importante compreender que o ponto crucial para o sistema capitalista não é que
“haja cada vez mais capital” em termos objetivos, isto é, que a quantidade
total de dinheiro aumente continuamente; em determinados momentos, essa
quantidade pode até se contrair. O ponto essencial é que deve existir sempre a
perspectiva geral de um aumento do capital disponível. Na ausência dessa
perspectiva – por exemplo, em uma condição prolongada de “estado estacionário”
da economia –, o capitalismo deixa de existir como sistema social, pois
perde-se o “piloto automático” representado pela busca constante por
oportunidades de investimento.
O ponto
deve ser entendido estritamente em termos de poder. No capitalismo, uma
determinada classe detém o poder por ser responsável por conduzir o capital em
direção ao crescimento. Se a perspectiva de crescimento desaparece, o resultado
é tecnicamente revolucionário, no sentido específico de que a classe que detém
o poder precisa cedê-lo a outros – por exemplo, a uma liderança política movida
por princípios ou ideais, como ocorreu em maior ou menor medida ao longo da
história (perspectivas religiosas, nacionais, visões históricas). O capitalismo
é o primeiro e único sistema de vida na história humana que não busca encarnar
nenhum ideal e não tende a seguir nenhuma direção específica. Isso abriria uma
discussão interessante sobre a relação entre capitalismo e niilismo, mas o
objetivo aqui é focar em outro aspecto.
- A “queda
tendencial da taxa de lucro”
Na
natureza do sistema, está implícita uma tendência que foi analisada pela
primeira vez por Karl Marx sob o nome de “queda tendencial da taxa de lucro”.
Trata-se de um processo intuitivo. Por um lado, como já vimos, o sistema exige
a busca constante pelo crescimento, transformando o capital em investimento que
gera mais capital. Por outro lado, a competição interna ao sistema tende a
saturar todas as opções disponíveis para aumentar o capital, consumindo-as.
Quanto mais eficiente é a competição, mais rápido ocorre a saturação dos
espaços onde é possível obter margem de lucro. Isso significa que, com o passar
do tempo, o sistema capitalista gera estruturalmente um problema de
sobrevivência para si mesmo.
O
capital disponível cresce constantemente e busca aplicações “produtivas”, ou
seja, capazes de gerar retorno. O crescimento do capital está vinculado ao
aumento das perspectivas de crescimento futuro desse mesmo capital, em um
mecanismo que se autoalimenta. É com base nessa dinâmica que surgem situações
como a anterior à crise do subprime, quando a capitalização nos mercados
financeiros globais equivalia a 14 vezes o PIB mundial. Esse mecanismo produz a
constante tendência a “bolhas especulativa”. E esse mesmo mecanismo produz a
tendência às chamadas “crises de superprodução”, termo comum, mas inadequado,
pois sugere excesso de bens disponíveis, quando na realidade o problema é o
descompasso entre produção e capacidade de consumo.
De modo
constante e inevitável, o sistema capitalista enfrenta crises geradas por essa
tendência: massas crescentes de capital pressionam para serem aproveitadas
produtivamente, em um processo exponencial, enquanto as capacidades de
crescimento permanecem limitadas. Para que uma crise se manifeste, não é
necessário que o crescimento pare — basta que ele não corresponda à demanda
crescente por margens de lucro. Quando isso ocorre, o capital — quer dizer,
seus detentores ou gestores — começa a se agitar progressivamente, pois sua
própria sobrevivência como detentor de poder é colocada em risco.
- A busca
frenética por soluções
Quando
a compressão das margens de lucro se aproxima, inicia-se uma busca frenética
por soluções. Na versão autopromocional do capitalismo, a solução principal
seria a “revolução tecnológica”, ou seja, a criação de uma nova perspectiva
promissora de geração de lucro por meio de inovação tecnológica. A tecnologia
realmente é um fator que aumenta a produção e a produtividade. Se aumenta
também as margens de lucro é uma questão mais complexa, pois não basta haver
mais produtos disponíveis para que o capital cresça, mas é necessário que haja
mais produtos comprados.
Isso
significa que as margens podem realmente crescer em presença de uma revolução
tecnológica apenas se o aumento da produtividade também se refletir em um
aumento geral do poder de compra (salários), o que não é algo garantido.
Contudo, mesmo quando isso ocorre, as “revoluções tecnológicas” capazes de
aumentar a produtividade e as margens não são tão comuns. Muitas vezes, aquilo
que é apresentado como uma “revolução tecnológica” é amplamente superestimado
em sua capacidade de gerar riqueza e acaba sendo apenas um redirecionamento de
investimentos que gera uma bolha especulativa.
Enquanto
se aguardam eventuais revoluções tecnológicas que reabram a possibilidade de
ampliação das margens, a segunda direção na qual se busca uma solução para
recuperar margens de lucro é a pressão sobre a força de trabalho. Essa pressão
pode se manifestar por meio da compressão salarial e de muitas outras formas
que ampliam as áreas de exploração do trabalho. A redução direta dos salários
nominais é uma medida adotada apenas em casos excepcionais; mais frequentes e
fáceis de implementar são práticas como o não reajuste salarial para compensar
a inflação, a “flexibilização” do trabalho para reduzir os “tempos mortos”, o
“endurecimento” das condições de trabalho, a demissão de trabalhadores, entre
outras.
Esse
horizonte de pressão apresenta dois problemas. Por um lado, gera insatisfação,
com a possibilidade de que isso resulte em protestos, revoltas etc. Por outro
lado, a pressão sobre a força de trabalho, especialmente na dimensão salarial,
reduz o poder de compra médio, correndo, assim, o risco de desencadear uma
espiral recessiva (menores vendas, menores lucros, maior pressão sobre a massa
salarial para recuperar margens, consequente redução nas vendas de produtos, e
assim por diante).
Uma
forma colateral de conquista de margens ocorre por meio das “racionalizações”
do sistema produtivo, que conceitualmente se situam em um meio-termo entre
inovação tecnológica e exploração da força de trabalho. As “racionalizações”
são reorganizações que, por assim dizer, eliminam as relativas “ineficiências”
do sistema. Essa dimensão reorganizativa, na prática, quase sempre resulta em
um agravamento das condições de trabalho, que se tornam cada vez mais
dependentes das exigências impessoais dos mecanismos do capital.
Um
último horizonte de soluções surge quando na equação entra a esfera do comércio
exterior. Embora, em princípio, os pontos anteriores esgotem os locais nos
quais as margens de lucro podem crescer, ao considerar a esfera externa, as
mesmas oportunidades de lucro se multiplicam devido às diferenças entre os
países. Em vez de um incremento tecnológico interno, pode-se ter acesso a um
incremento tecnológico externo por meio do comércio. Em vez de uma compressão
da força de trabalho interna, pode-se obter acesso a mão de obra estrangeira de
baixo custo, entre outras possibilidades.
- O declínio do
lucro
A fase
atual da breve e violenta história do capitalismo que estamos vivendo é
caracterizada pelo progressivo desaparecimento de todas as principais
perspectivas de lucro. Sempre haverá espaço para “revoluções tecnológicas”, mas
não com a frequência que possa estar por trás das massas infinitamente
crescentes de capital que pressionam para serem utilizadas de forma lucrativa.
Sempre haverá espaço para novas compressões sobre a força de trabalho, mas o
risco de gerar condições de revolta ou reduzir o poder de compra geral impõe
limites claros.
Quanto
ao processo de globalização, ele atingiu seus limites e iniciou um movimento de
relativo recuo; a possibilidade de encontrar oportunidades externas,
completamente diferentes e mais vantajosas do que as internas, foi
drasticamente reduzida (deve-se considerar que, quanto mais as cadeias de
produção se expandem, mais frágeis elas se tornam, aumentando, também, os
custos adicionais de transação.
A crise
do subprime (2007-2008) marcou um momento decisivo, levando
todo o sistema financeiro mundial à beira do colapso. Para sair dessa crise,
foram utilizadas duas alavancas. Por um lado, houve uma pressão elevada sobre a
esfera do trabalho, resultando na perda de poder de compra e no agravamento das
condições de trabalho em nível global. Por outro lado, houve um aumento das
dívidas públicas — que, por sua vez, representam uma imposição indireta sobre
os cidadãos e a força de trabalho, sendo apresentadas como um ônus a ser
compensado.
A crise
da Covid (2020-2021) marcou um segundo momento de virada, com características
semelhantes à crise do subprime. Também nesse caso, os resultados
da crise foram uma perda média do poder econômico das classes trabalhadoras e
um aumento das dívidas públicas.
Tanto
na crise do subprime quanto na crise da Covid, o sistema
aceitou uma redução temporária das capitalizações totais para reabrir novas
áreas de lucro. No conjunto, o sistema financeiro saiu de ambas as crises em
uma posição comparativamente mais forte em relação à população que vive de seu
trabalho. O aumento das dívidas públicas, na prática, representa uma
transferência de dinheiro da disponibilidade da cidadania média para os
rendimentos dos detentores de capital.
É
importante notar que, para neutralizar os espaços de contestação e oposição
entre trabalho e capital, o capitalismo contemporâneo tem se empenhado com
todas as suas forças para criar uma coparticipação em certos estratos da
população, que são relativamente abastados, mas estão longe de exercer qualquer
influência no plano do poder capitalista. Forçando as pessoas a adquirirem
aposentadorias privadas, apólices de seguro rentáveis e incentivando-as a
investir suas economias em algum tipo de título público, busca-se (e
consegue-se) criar uma camada da população que se sente “parte interessada” no
destino do grande capital. Esses estratos da população funcionam como uma
“zona-tampão”, reduzindo a disposição média de se revoltar contra os mecanismos
do capital.
A
situação atual, especialmente no mundo ocidental, é a seguinte: o grande
capital necessita, para sobreviver, acessar continuamente novas áreas de lucro.
As populações dos países ocidentais têm visto suas condições de vida serem
progressivamente deterioradas, tanto em termos de poder de compra quanto em sua
capacidade de autodeterminação, ficando cada vez mais vinculadas a uma
multiplicidade de restrições financeiras, trabalhistas e legislativas, todas
justificadas pelas necessidades de “racionalização” do sistema.
As
possibilidades de encontrar novas áreas de lucro no exterior foram
drasticamente reduzidas devido ao alcance dos limites do processo de
globalização. Essa é a realidade que os grandes detentores de capital enfrentam
hoje. Em sua perspectiva, é urgente encontrar uma solução. Mas qual seria essa
solução?
- “Uma palavra
assustadora e fascinante: guerra!”
Quando,
no cânone ocidental, são apresentadas as guerras mundiais – os dois maiores
eventos de destruição bélica da história humana –, elas geralmente são
associadas a culpados bem definidos: o “nacionalismo” (especialmente o alemão)
na Primeira Guerra Mundial e as “ditaduras” na Segunda Guerra Mundial.
Raramente se reflete sobre o fato de que esses eventos têm como epicentro o
ponto mais avançado de desenvolvimento do capitalismo mundial e que a Primeira
Guerra Mundial ocorre no auge do primeiro processo de “globalização
capitalista” da história.
Sem
entrar aqui em uma análise detalhada das origens da Primeira Guerra Mundial, é
útil lembrar que a fase que a antecede e prepara pode ser perfeitamente
enquadrada em uma moldura que somos capazes de reconhecer. Por volta de 1872,
inicia-se uma fase de estagnação na economia europeia. Essa fase impulsiona
decisivamente a busca por recursos e força de trabalho no exterior,
principalmente nas formas de imperialismo e colonialismo.
Todos
os principais momentos de crise internacional que antecedem a Primeira Guerra
Mundial, como o incidente de Fachoda (1898), são tensões decorrentes da disputa
internacional pela apropriação de áreas de exploração. A primeira grande
iniciativa de rearmamento na Alemanha guilhermina ocorre com o objetivo de
criar uma frota capaz de contestar o domínio marítimo (que é domínio comercial)
da Inglaterra.
Mas por
que a guerra deveria representar um horizonte de solução para as crises geradas
pelo capital? A resposta, neste ponto, é bastante simples. A guerra representa
uma solução ideal para as crises de “queda da taxa de lucro” sob quatro
aspectos principais.
Em
primeiro lugar, a guerra surge como uma força não negociável para investimentos
massivos, capazes de revitalizar uma indústria enfraquecida. Grandes encomendas
públicas, justificadas pelo “sagrado dever da defesa”, conseguem extrair os
últimos recursos disponíveis no setor público e direcioná-los para encomendas
privadas.
Em
segundo lugar, a guerra representa uma grande destruição de recursos materiais,
infraestruturas e vidas humanas. Tudo isso, que do ponto de vista do senso
comum humano é uma tragédia, do ponto de vista das perspectivas de investimento
é uma oportunidade magnífica. De fato, trata-se de um evento que “recarrega o
relógio da história econômica”, eliminando a saturação das possibilidades de
investimento que ameaça a própria existência do capitalismo.
Após
uma grande destruição, abrem-se vastas oportunidades para investimentos fáceis,
que não exigem nenhuma inovação tecnológica: estradas, ferrovias, sistemas de
abastecimento de água, habitações e todo o setor de serviços associado. Não é
por acaso que, há muito tempo, enquanto uma guerra ainda está em curso – do
Iraque à Ucrânia –, já se observa uma corrida preliminar para garantir
contratos para a futura reconstrução. A maior destruição de recursos de todos
os tempos – a Segunda Guerra Mundial – foi seguida pelo maior boom econômico
desde a Revolução Industrial.
Em
terceiro lugar, os grandes detentores de capital, especialmente o capital
financeiro, consolidam comparativamente seu poder sobre o restante da
sociedade. O dinheiro, por ter uma natureza virtual, permanece intocado por
qualquer grande destruição material (desde que não seja um aniquilamento
planetário).
Em
quarto e último lugar, a guerra congela e interrompe todos os processos
potenciais de revolta e todas as manifestações de descontentamento das classes
mais baixas. A guerra é o mecanismo definitivo, o mais poderoso de todos, para
“disciplinar as massas”, colocando-as em uma condição de submissão da qual não
podem escapar, sob pena de serem identificadas como cúmplices do “inimigo”.
Por
todas essas razões, o horizonte bélico, embora atualmente distante dos
sentimentos predominantes nas populações europeias, é uma perspectiva que deve
ser levada extremamente a sério. Quando hoje alguns afirmam – com razão – que
não existem as bases culturais e antropológicas para que a sociedade europeia
se predisponha seriamente à guerra, gosto de lembrar o momento em que Benito
Mussolini, captando os humores das massas, passou em poucos anos do pacifismo
socialista ao famoso encerramento de seu artigo no Il Popolo d’Italia,
em 15 de novembro de 1914: “O grito é uma palavra que eu jamais teria
pronunciado em tempos normais e que agora elevo forte, em alta voz, sem
disfarces, hoje, com fé segura: uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”.
Fonte:
Por Andrea Zhok, em A Terra é Redonda