quinta-feira, 10 de abril de 2025

Por que o capitalismo precisa da guerra?

A essência do capitalismo consiste em um único ponto. É um sistema social idealmente acéfalo, desprovido de uma liderança política, guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo

  • A essência do capitalismo

A ligação entre capitalismo e guerra não é acidental, mas sim estrutural e inevitável. Apesar da literatura de autopromoção do liberalismo ter sempre tentado argumentar que o capitalismo, traduzido como “doce comércio”, seria uma via preferencial para a pacificação internacional, na realidade isso sempre foi uma evidente falsidade. E isso não porque o comércio não possa ser um caminho para a paz – ele pode ser –, mas porque a essência do capitalismo não é o comércio, que é apenas um de seus possíveis aspectos.

A essência do capitalismo consiste em um único ponto. Trata-se de um sistema social idealmente acéfalo, ou seja, idealmente desprovido de uma liderança política, mas guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo. O núcleo ideal do capitalismo é a necessidade de que o capital gere retorno, quer dizer, que aumente continuamente. A condução desse processo não é atribuída à política – muito menos à política democrática –, mas sim aos detentores de capital, os sujeitos que personificam as exigências do sistema financeiro.

É importante compreender que o ponto crucial para o sistema capitalista não é que “haja cada vez mais capital” em termos objetivos, isto é, que a quantidade total de dinheiro aumente continuamente; em determinados momentos, essa quantidade pode até se contrair. O ponto essencial é que deve existir sempre a perspectiva geral de um aumento do capital disponível. Na ausência dessa perspectiva – por exemplo, em uma condição prolongada de “estado estacionário” da economia –, o capitalismo deixa de existir como sistema social, pois perde-se o “piloto automático” representado pela busca constante por oportunidades de investimento.

O ponto deve ser entendido estritamente em termos de poder. No capitalismo, uma determinada classe detém o poder por ser responsável por conduzir o capital em direção ao crescimento. Se a perspectiva de crescimento desaparece, o resultado é tecnicamente revolucionário, no sentido específico de que a classe que detém o poder precisa cedê-lo a outros – por exemplo, a uma liderança política movida por princípios ou ideais, como ocorreu em maior ou menor medida ao longo da história (perspectivas religiosas, nacionais, visões históricas). O capitalismo é o primeiro e único sistema de vida na história humana que não busca encarnar nenhum ideal e não tende a seguir nenhuma direção específica. Isso abriria uma discussão interessante sobre a relação entre capitalismo e niilismo, mas o objetivo aqui é focar em outro aspecto.

  • A “queda tendencial da taxa de lucro”

Na natureza do sistema, está implícita uma tendência que foi analisada pela primeira vez por Karl Marx sob o nome de “queda tendencial da taxa de lucro”. Trata-se de um processo intuitivo. Por um lado, como já vimos, o sistema exige a busca constante pelo crescimento, transformando o capital em investimento que gera mais capital. Por outro lado, a competição interna ao sistema tende a saturar todas as opções disponíveis para aumentar o capital, consumindo-as. Quanto mais eficiente é a competição, mais rápido ocorre a saturação dos espaços onde é possível obter margem de lucro. Isso significa que, com o passar do tempo, o sistema capitalista gera estruturalmente um problema de sobrevivência para si mesmo.

O capital disponível cresce constantemente e busca aplicações “produtivas”, ou seja, capazes de gerar retorno. O crescimento do capital está vinculado ao aumento das perspectivas de crescimento futuro desse mesmo capital, em um mecanismo que se autoalimenta. É com base nessa dinâmica que surgem situações como a anterior à crise do subprime, quando a capitalização nos mercados financeiros globais equivalia a 14 vezes o PIB mundial. Esse mecanismo produz a constante tendência a “bolhas especulativa”. E esse mesmo mecanismo produz a tendência às chamadas “crises de superprodução”, termo comum, mas inadequado, pois sugere excesso de bens disponíveis, quando na realidade o problema é o descompasso entre produção e capacidade de consumo.

De modo constante e inevitável, o sistema capitalista enfrenta crises geradas por essa tendência: massas crescentes de capital pressionam para serem aproveitadas produtivamente, em um processo exponencial, enquanto as capacidades de crescimento permanecem limitadas. Para que uma crise se manifeste, não é necessário que o crescimento pare — basta que ele não corresponda à demanda crescente por margens de lucro. Quando isso ocorre, o capital — quer dizer, seus detentores ou gestores — começa a se agitar progressivamente, pois sua própria sobrevivência como detentor de poder é colocada em risco.

  • A busca frenética por soluções

Quando a compressão das margens de lucro se aproxima, inicia-se uma busca frenética por soluções. Na versão autopromocional do capitalismo, a solução principal seria a “revolução tecnológica”, ou seja, a criação de uma nova perspectiva promissora de geração de lucro por meio de inovação tecnológica. A tecnologia realmente é um fator que aumenta a produção e a produtividade. Se aumenta também as margens de lucro é uma questão mais complexa, pois não basta haver mais produtos disponíveis para que o capital cresça, mas é necessário que haja mais produtos comprados.

Isso significa que as margens podem realmente crescer em presença de uma revolução tecnológica apenas se o aumento da produtividade também se refletir em um aumento geral do poder de compra (salários), o que não é algo garantido. Contudo, mesmo quando isso ocorre, as “revoluções tecnológicas” capazes de aumentar a produtividade e as margens não são tão comuns. Muitas vezes, aquilo que é apresentado como uma “revolução tecnológica” é amplamente superestimado em sua capacidade de gerar riqueza e acaba sendo apenas um redirecionamento de investimentos que gera uma bolha especulativa.

Enquanto se aguardam eventuais revoluções tecnológicas que reabram a possibilidade de ampliação das margens, a segunda direção na qual se busca uma solução para recuperar margens de lucro é a pressão sobre a força de trabalho. Essa pressão pode se manifestar por meio da compressão salarial e de muitas outras formas que ampliam as áreas de exploração do trabalho. A redução direta dos salários nominais é uma medida adotada apenas em casos excepcionais; mais frequentes e fáceis de implementar são práticas como o não reajuste salarial para compensar a inflação, a “flexibilização” do trabalho para reduzir os “tempos mortos”, o “endurecimento” das condições de trabalho, a demissão de trabalhadores, entre outras.

Esse horizonte de pressão apresenta dois problemas. Por um lado, gera insatisfação, com a possibilidade de que isso resulte em protestos, revoltas etc. Por outro lado, a pressão sobre a força de trabalho, especialmente na dimensão salarial, reduz o poder de compra médio, correndo, assim, o risco de desencadear uma espiral recessiva (menores vendas, menores lucros, maior pressão sobre a massa salarial para recuperar margens, consequente redução nas vendas de produtos, e assim por diante).

Uma forma colateral de conquista de margens ocorre por meio das “racionalizações” do sistema produtivo, que conceitualmente se situam em um meio-termo entre inovação tecnológica e exploração da força de trabalho. As “racionalizações” são reorganizações que, por assim dizer, eliminam as relativas “ineficiências” do sistema. Essa dimensão reorganizativa, na prática, quase sempre resulta em um agravamento das condições de trabalho, que se tornam cada vez mais dependentes das exigências impessoais dos mecanismos do capital.

Um último horizonte de soluções surge quando na equação entra a esfera do comércio exterior. Embora, em princípio, os pontos anteriores esgotem os locais nos quais as margens de lucro podem crescer, ao considerar a esfera externa, as mesmas oportunidades de lucro se multiplicam devido às diferenças entre os países. Em vez de um incremento tecnológico interno, pode-se ter acesso a um incremento tecnológico externo por meio do comércio. Em vez de uma compressão da força de trabalho interna, pode-se obter acesso a mão de obra estrangeira de baixo custo, entre outras possibilidades.

  • O declínio do lucro

A fase atual da breve e violenta história do capitalismo que estamos vivendo é caracterizada pelo progressivo desaparecimento de todas as principais perspectivas de lucro. Sempre haverá espaço para “revoluções tecnológicas”, mas não com a frequência que possa estar por trás das massas infinitamente crescentes de capital que pressionam para serem utilizadas de forma lucrativa. Sempre haverá espaço para novas compressões sobre a força de trabalho, mas o risco de gerar condições de revolta ou reduzir o poder de compra geral impõe limites claros.

Quanto ao processo de globalização, ele atingiu seus limites e iniciou um movimento de relativo recuo; a possibilidade de encontrar oportunidades externas, completamente diferentes e mais vantajosas do que as internas, foi drasticamente reduzida (deve-se considerar que, quanto mais as cadeias de produção se expandem, mais frágeis elas se tornam, aumentando, também, os custos adicionais de transação.

A crise do subprime (2007-2008) marcou um momento decisivo, levando todo o sistema financeiro mundial à beira do colapso. Para sair dessa crise, foram utilizadas duas alavancas. Por um lado, houve uma pressão elevada sobre a esfera do trabalho, resultando na perda de poder de compra e no agravamento das condições de trabalho em nível global. Por outro lado, houve um aumento das dívidas públicas — que, por sua vez, representam uma imposição indireta sobre os cidadãos e a força de trabalho, sendo apresentadas como um ônus a ser compensado.

A crise da Covid (2020-2021) marcou um segundo momento de virada, com características semelhantes à crise do subprime. Também nesse caso, os resultados da crise foram uma perda média do poder econômico das classes trabalhadoras e um aumento das dívidas públicas.

Tanto na crise do subprime quanto na crise da Covid, o sistema aceitou uma redução temporária das capitalizações totais para reabrir novas áreas de lucro. No conjunto, o sistema financeiro saiu de ambas as crises em uma posição comparativamente mais forte em relação à população que vive de seu trabalho. O aumento das dívidas públicas, na prática, representa uma transferência de dinheiro da disponibilidade da cidadania média para os rendimentos dos detentores de capital.

É importante notar que, para neutralizar os espaços de contestação e oposição entre trabalho e capital, o capitalismo contemporâneo tem se empenhado com todas as suas forças para criar uma coparticipação em certos estratos da população, que são relativamente abastados, mas estão longe de exercer qualquer influência no plano do poder capitalista. Forçando as pessoas a adquirirem aposentadorias privadas, apólices de seguro rentáveis e incentivando-as a investir suas economias em algum tipo de título público, busca-se (e consegue-se) criar uma camada da população que se sente “parte interessada” no destino do grande capital. Esses estratos da população funcionam como uma “zona-tampão”, reduzindo a disposição média de se revoltar contra os mecanismos do capital.

A situação atual, especialmente no mundo ocidental, é a seguinte: o grande capital necessita, para sobreviver, acessar continuamente novas áreas de lucro. As populações dos países ocidentais têm visto suas condições de vida serem progressivamente deterioradas, tanto em termos de poder de compra quanto em sua capacidade de autodeterminação, ficando cada vez mais vinculadas a uma multiplicidade de restrições financeiras, trabalhistas e legislativas, todas justificadas pelas necessidades de “racionalização” do sistema.

As possibilidades de encontrar novas áreas de lucro no exterior foram drasticamente reduzidas devido ao alcance dos limites do processo de globalização. Essa é a realidade que os grandes detentores de capital enfrentam hoje. Em sua perspectiva, é urgente encontrar uma solução. Mas qual seria essa solução?

  • “Uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”

Quando, no cânone ocidental, são apresentadas as guerras mundiais – os dois maiores eventos de destruição bélica da história humana –, elas geralmente são associadas a culpados bem definidos: o “nacionalismo” (especialmente o alemão) na Primeira Guerra Mundial e as “ditaduras” na Segunda Guerra Mundial. Raramente se reflete sobre o fato de que esses eventos têm como epicentro o ponto mais avançado de desenvolvimento do capitalismo mundial e que a Primeira Guerra Mundial ocorre no auge do primeiro processo de “globalização capitalista” da história.

Sem entrar aqui em uma análise detalhada das origens da Primeira Guerra Mundial, é útil lembrar que a fase que a antecede e prepara pode ser perfeitamente enquadrada em uma moldura que somos capazes de reconhecer. Por volta de 1872, inicia-se uma fase de estagnação na economia europeia. Essa fase impulsiona decisivamente a busca por recursos e força de trabalho no exterior, principalmente nas formas de imperialismo e colonialismo.

Todos os principais momentos de crise internacional que antecedem a Primeira Guerra Mundial, como o incidente de Fachoda (1898), são tensões decorrentes da disputa internacional pela apropriação de áreas de exploração. A primeira grande iniciativa de rearmamento na Alemanha guilhermina ocorre com o objetivo de criar uma frota capaz de contestar o domínio marítimo (que é domínio comercial) da Inglaterra.

Mas por que a guerra deveria representar um horizonte de solução para as crises geradas pelo capital? A resposta, neste ponto, é bastante simples. A guerra representa uma solução ideal para as crises de “queda da taxa de lucro” sob quatro aspectos principais.

Em primeiro lugar, a guerra surge como uma força não negociável para investimentos massivos, capazes de revitalizar uma indústria enfraquecida. Grandes encomendas públicas, justificadas pelo “sagrado dever da defesa”, conseguem extrair os últimos recursos disponíveis no setor público e direcioná-los para encomendas privadas.

Em segundo lugar, a guerra representa uma grande destruição de recursos materiais, infraestruturas e vidas humanas. Tudo isso, que do ponto de vista do senso comum humano é uma tragédia, do ponto de vista das perspectivas de investimento é uma oportunidade magnífica. De fato, trata-se de um evento que “recarrega o relógio da história econômica”, eliminando a saturação das possibilidades de investimento que ameaça a própria existência do capitalismo.

Após uma grande destruição, abrem-se vastas oportunidades para investimentos fáceis, que não exigem nenhuma inovação tecnológica: estradas, ferrovias, sistemas de abastecimento de água, habitações e todo o setor de serviços associado. Não é por acaso que, há muito tempo, enquanto uma guerra ainda está em curso – do Iraque à Ucrânia –, já se observa uma corrida preliminar para garantir contratos para a futura reconstrução. A maior destruição de recursos de todos os tempos – a Segunda Guerra Mundial – foi seguida pelo maior boom econômico desde a Revolução Industrial.

Em terceiro lugar, os grandes detentores de capital, especialmente o capital financeiro, consolidam comparativamente seu poder sobre o restante da sociedade. O dinheiro, por ter uma natureza virtual, permanece intocado por qualquer grande destruição material (desde que não seja um aniquilamento planetário).

Em quarto e último lugar, a guerra congela e interrompe todos os processos potenciais de revolta e todas as manifestações de descontentamento das classes mais baixas. A guerra é o mecanismo definitivo, o mais poderoso de todos, para “disciplinar as massas”, colocando-as em uma condição de submissão da qual não podem escapar, sob pena de serem identificadas como cúmplices do “inimigo”.

Por todas essas razões, o horizonte bélico, embora atualmente distante dos sentimentos predominantes nas populações europeias, é uma perspectiva que deve ser levada extremamente a sério. Quando hoje alguns afirmam – com razão – que não existem as bases culturais e antropológicas para que a sociedade europeia se predisponha seriamente à guerra, gosto de lembrar o momento em que Benito Mussolini, captando os humores das massas, passou em poucos anos do pacifismo socialista ao famoso encerramento de seu artigo no Il Popolo d’Italia, em 15 de novembro de 1914: “O grito é uma palavra que eu jamais teria pronunciado em tempos normais e que agora elevo forte, em alta voz, sem disfarces, hoje, com fé segura: uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”.

 

Fonte: Por Andrea Zhok, em A Terra é Redonda 

 

A história do primeiro brasileiro eleito para governar o país, há 190 anos

Era um Brasil de cerca de 5 milhões de pessoas aquele de 190 anos atrás. Destas, apenas 6 mil tinham direito a voto — a elite era quem elegia deputados e senadores naquele excludente e censitário regime imperial.

Em 7 de abril de 1835, pela primeira vez, o país elegia alguém como governante. Era a primeira vez, aliás, que o poder ficaria nas mãos não de um português, mas de alguém nascido em solo brasileiro. Tratava-se de um sacerdote católico chamado Diogo Antônio Feijó (1784-1843), padre paulista que havia construído uma sólida carreira política.

Mas um governante eleito dentro de um regime monárquico? Pois é. Houve uma espécie de hiato entre os dois imperadores brasileiros, Pedro I e Pedro II. Tudo porque o primeiro abdicou do trono quando o herdeiro ainda era uma criança.

Feijó se tornaria regente do império, assumindo o posto em 12 de outubro de 1835 até sua renúncia, em 19 de setembro de 1837.

Para entender como isso foi possível é preciso primeiro recordar o momento histórico em que aquele Brasil de poucos anos após a independência de Portugal vivia.

  • Abdicação e regência

Em 1831, Pedro I (1798-1834), o primeiro imperador do Brasil, deixou para trás o Brasil para lutar pela coroa portuguesa. Ficou seu filho homônimo como herdeiro. Mas Pedro II (1825-1891) era uma criança de apenas cinco anos.

A renúncia abrupta do imperador fez com que a jovem nação brasileira experimentasse um período político turbulento. Como previa a Constituição de 1824, formou-se um governo provisório com três senadores: a chamada Regência Trina. Alguns meses depois, a Assembleia Geral Legislativa elegeu três outros nomes que formariam a Regência Trina Permanente.

"Foi no susto", comenta à BBC News Brasil Paulo Rezzutti, biógrafo de diversas personalidades do período imperial e autor de, entre outros livro, 'D. Pedro II: A História Não Contada', cuja reedição revista e atualizada chegou às livrarias no mês passado. "A ideia de três governantes era para tentar equilibrar as forças políticas para conseguir um certo equilíbrio entre os grupos diferentes da sociedade.

"O contexto era de incerteza, de riscos e de indefinição. A abdicação do Imperador Pedro I abriu a temporada de caça ao poder, aos recursos econômicos e financeiros nas províncias dos Império", diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"A forma assumida pela regência foi resultado da reacomodação política e da concentração de poder decisório e de autoridade forte diante de uma realidade social em decomposição e que enfrentava rápidas transformações na dinâmica econômica, cultural e das relações internacionais", analisa o professor.

"Era tripla para evitar uma usurpação do poder político. Os três regentes se controlavam mutuamente", explica à BBC News Brasil o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

A ideia era que o triunvirato permanecesse no poder até que Pedro II se tornasse maior de idade. Mas o que se viu foi uma grave instabilidade que colocava em risco até mesmo a unidade territorial do país. De um lado, os cofres públicos enfrentavam escassez. De outro, revoltas pipocavam de norte a sul, geralmente insufladas por oligarquias regionais que queriam autonomia.

"A questão central é que a abdicação, a eleição e o governo da regência permanente eram resultados de conflitos sociais e políticos que vinham desde a Independência e antagonizavam diferentes grupos de poder, especialmente os setores mais poderosos, associados ao tráfico de escravizados, ao açúcar e ao café, que haviam apoiado o governo de Pedro I, e os setores que, desde 1808, tinham aproveitado as condições abertas com a presença da corte portuguesa, com a abertura comercial e a inserção internacional da produção brasileira para incrementar seus negócios que estavam vinculados, em grande parte, ao mercado interno", contextualiza à BBC News Brasil a a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora na Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Ideias em Confronto − Embates pelo Poder na Independência do Brasil.

"As iniciativas governamentais mais expressivas do momento […] indicavam a elevação da temperatura política e social dos conflitos e da disputa pelo controle e a condução do Estado e das instâncias de governo nacional, provincial e local", comenta Martinez.

Nesse contexto o padre Diogo Feijó foi apresentado como um nome de pulso firme que poderia ajudar a controlar os ânimos. A regência o nomeou Ministro da Justiça. Sua passagem pela pasta foi marcada por rigor e eficiência. Mas sua tendência liberal e, em alguns momentos, flertando com o abolicionismo, fez com que ele não tivesse apoio dos aristocratas que eram a maior parte dos deputados.

Em julho de 1832, logo após completar um ano no cargo, Feijó apresentou carta de renúncia. Era mais um ingrediente para tumultuar o ambiente político.

  • Participação popular muito restrita

O pesquisador Rezzutti conta que o processo eleitoral era realizado em dois níveis. Os eleitores paroquiais escolhiam os eleitores provinciais. E estes podiam votar para postos de relevância nacional — como deputados e senadores. E foi este o modelo seguido para a eleição do regente. "Para ser eleitor paroquial era preciso ter certos rendimentos. Para ser provincial, era preciso rendimentos ainda maiores", comenta.

Apesar de ter sido, portanto, uma participação popular bastante elitista e limitada, é preciso ressaltar que foi um primeiro momento de uma certa "democracia" no Brasil que havia se tornado país independente 13 anos antes.

"Houve uma eleição e isso foi um grande diferencial. Ainda que tenha sido muito restrita, foi de certa forma participativa. Foi o primeiro momento de participação eleitoral que não fosse para escolher somente os deputados", afirma à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie.

"Feijó era a encarnação do simbolismo histórico da monarquia portuguesa e da colonização iniciada no século XVI, a cruz e a coroa, a religião e a monarquia", sintetiza Martinez. "A legitimidade e a autoridade de ambas as instituições estavam ancoradas na fé e na crença da infalibilidade de seus dirigentes supremos, a vontade divina e a ação de seu representante: o monarca."

"A eleição de Feijó partiu de um corpo eleitoral integrado por representantes das províncias, constituído com a finalidade de designar o futuro Regente. Era expressão das províncias mais afinadas com o projeto político de 1822 e autonomia do Brasil", completa o historiador.

O nome de Feijó fazia sentido para aquele contexto político. "Os grupos que obrigaram Pedro I a abdicar estavam ligados a esses novos segmentos emergentes que queriam não só poder político, mas leis e apoio institucional para ampliar seus negócios dentro e fora do país. Feijó estava ligado a eles. Eram conhecidos como 'liberais moderados'", conta a historiadora Oliveira. "O problema é que essa sigla reunia gente de vários matizes e várias condições, entre eles cafeicultores e produtores de açúcar, assim como produtores de gêneros de abastecimento e gado, com ampla rede de contatos no interior do país."

Ela lembra que, quando Ministro da Justiça, Feijó havia buscado atuar para "refrear conflitos armados, revoltas militares e manifestações populares que defendiam pautas como a descentralização do poder, a ampliação do poder dos governos locais, a ampliação do direito de cidadania, entre outras".

A eleição foi em 7 de abril de 1835, mas a posse mesmo só ocorreria em 12 de outubro.

"As datas nos remetem ao ciclo da formação do próprio Império: o 7 de abril, era o marco do novo começo, a abdicação de Pedro I; o 12 de outubro, a sua reafirmação, foi a data de aclamação do príncipe regente dom Pedro e, logo, Imperador do Brasil, em 1822. Significava: rei morto, rei posto. A continuidade da tradição política e a perpetuação da ordem social", analisa Martinez.

Oliveira pontua ainda que essa demora entre eleição e posse indicavam que Feijó "estava indeciso", pois "conhecia os enormes obstáculos que seu governo enfrentaria".

Seu curto governo foi marcado por uma intensa tentativa de garantir a unidade nacional. "Feijó havia se destacado como parlamentar e ministro da Justiça, mas sua regência foi bastante contestada e ele enfrentou oposições de antigos apoiadores", diz a historiadora.

"Foram os últimos suspiros do reformismo de inspiração ilustrada, nascido no século XVIII, […] a tentativa de afirmação de um governo forte e seguro na condução das ações do Estado", diz Martinez. "Não por acaso, Feijó foi celebrado durante a ditadura do Estado Novo, no centenário de sua morte. A mensagem: depois de mim, o caos, o fim das reformas e a perpetuação da instabilidade política e da insegurança econômica."

Rezzutti diz que Feijó "era muito autoritário" e tentou "colocar ordem na casa". "Com isso, criou muitos inimigos. Mas buscou fortalecer o poder central em um cenário de várias revoltas nas províncias", pontua.

"Ele tentou sedimentar um Estado mais uno e coeso. O Estado que Pedro II recebeu quando assumiu o trono foi fruto dessa tentativa de unificação do Brasil em torno de um poder centralizado", analisa o biógrafo.

"Seu governo foi marcado como uma tentativa de conter as rebeliões separatistas que eram contestatórias em relação à centralização do poder político", afirma Ramirez.

  • Pedro II

Enquanto isso tudo acontecia, o menino Pedro II era uma figura simbólica e meramente decorativa, "sem poder decisório algum", como enfatiza o historiador Martinez. "Era apenas um símbolo ostentado pelos monarquistas, uma espécie de fundo de reserva político da dinastia, da centralização política e do próprio regime monárquico", prossegue.

"Um elo entre o passado e o futuro, da perpetuação do escravismo, da concentração da terra e do mandonismo senhorial como pilares do Estado nacional e fundamentos da Nação. A promessa da origem e do vínculo com a civilização europeia nos trópicos."

"Nessa época ele era uma peça de enfeite", resume o biógrafo Rezzutti. "Era um símbolo nacional e vinha sendo tratado como tal, mas sem nenhuma função executiva nem mesmo consultiva."

Mas, evidentemente, ele recebia uma educação própria para em algum momento assumir o império. "Ele estava no gabinete de instrução e vinha sendo preparado para se tornar o futuro imperador", diz Missiato.

  • De 'enjeitado' a primeiro governante eleito

Feijó teve uma infância difícil. Foi o que se costumava chamar de "enjeitado", ou seja, filho provavelmente tido em situação fora do casamento que acabou abandonado criança na casa de um padre. Este o batizou e o criou como padrinho.

Acabou recebendo sólida formação e sendo ordenado ele também sacerdote. Foi professor de gramática e escreveu ele próprio um compêndio de gramática latina. Quando tinha 29 anos vivia em São Carlos, onde começava a ser bem-sucedido. Segundo registros do recenseamento da época, chegou a ter no município paulista uma propriedade rural com 13 escravizados que produziam açúcar, cachaça, milho, feijão e arroz.

De lá, mudou-se para Itu onde, autorizado pelo bispo, dava aulas particulares de filosofia. Foi ali que ele começou a se imiscuir no meio político, passando a integrar a chamada junta eleitoral da cidade — que congregava os poucos e abastados eleitores.

Seu primeiro cargo eletivo foi como deputado enviado às cortes gerais e extraordinárias de Lisboa, naquele Brasil ainda parte do Reino de Portugal.

Após a Independência, foi deputado por São Paulo em duas legislaturas. Mais tarde seria também senador.

Seus últimos anos de vida foram marcados por problemas de saúde. Ele teve um acidente vascular cerebral e acabou hemiplégico, chegando a usar com frequência uma cadeira de rodas.

Quando ele tinha 59 anos e enfrentava uma crise nervosa, decidiu sair para caminhar, caiu e bateu a cabeça em uma pedra. No hospital, acabou morrendo de parada cardiorrespiratória em 10 de novembro de 1843.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

Por que os EUA tentam esconder a covid longa?

Ativistas e pesquisadores da covid longa nos Estados Unidos conseguiram um feito extraordinário. Após uma batalha árdua, foram revogadas algumas das anulações de financiamentos de pesquisas, que haviam sido ordenados pelo governo do presidente Donald Trump. Uma rara vitória para a ciência, num momento em que a equipe do presidente corta verbas e demite pesquisadores que trabalham para órgãos federais.

A crise começou no final de março, quando os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) cortaram o financiamento para dezenas de projetos sobre covid longa. Ativistas e pesquisadores – muitos deles mesmos com covid longa – iniciaram uma campanha incansável. Seu esforço convenceu, na última hora, um membro do Congresso simpático à causa a intervir, segundo um funcionário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), que supervisiona o NIH (ele pediu anonimato por não estar autorizado a falar com a imprensa). Em poucos dias, os cortes foram revertidos.

Mas a decisão do governo de encerrar uma série de pesquisas sobre doenças infecciosas sugere um caminho difícil para os estudos sobre covid prolongada. Agora, cientistas e ativistas sustentam a ansiedade e esperança, enquanto se preparam para lutar contra possíveis novos cortes no financiamento federal.

“A comunidade de pacientes com covid longa está atordoada e chocada com o que está vendo”, afirma Emily Taylor, presidente da Solve ME/CFS Initiative, sediada na Califórnia. “Temos dito aos congressistas: ‘Parem de cortar, antes de tudo. Parem de nos ferir. Parem com a dor’”.

O HHS, que inclui o NIH e outras agências de saúde, não respondeu a um pedido de comentário.

  • O alcance da covid longa

Nos últimos dois meses, o governo do presidente Donald Trump cancelou ou adiou milhares de bolsas de pesquisa biomédica, incluindo as relacionadas à covid-19.

Quando questionado sobre os cortes relacionados à covid-19, um porta-voz do HHS disse à Nature, em 26 de março: “O HHS não vai mais desperdiçar bilhões de dólares dos contribuintes para responder a uma pandemia inexistente que os americanos já superaram”.

Essa resposta assustou pesquisadores da covid longa e pessoas que lutam para seu reconhecimento. “É totalmente chocante e realmente incorreto”, segundo Serena Spudich, neurocientista de doenças infecciosas da Yale School of Medicine, em Connecticut. “As consequências da pandemia de covid ainda afetam milhões de pessoas, a economia e a capacidade de trabalhar e estudar.” Um estudo de 2024 estimou que 11 milhões nos EUA atualmente vivem com covid longa, e que a condição custa ao país mais de US$ 152,6 bilhões em horas de trabalho perdidas por ano.

  • Portas fechadas

O HHS é liderado pelo notório ativista antivacina Robert F. Kennedy Jr, que afirmou, durante sua audiência de confirmação em 29 de janeiro, que se comprometeria a financiar pesquisas sobre covid longa. Isso deu a Ian Simon, então diretor do Escritório de Pesquisa e Prática em Covid Longa do HHS, um “lampejo de esperança”, porque parecia “um endosso total a uma ação governamental séria”. Mas os cancelamentos de financiamento “me fazem questionar se um endosso total diante do Congresso significa alguma coisa, hoje em dia”.

Sob Kennedy, o HHS fechou seu escritório de covid longa, demitiu Simon e outro funcionário. Uma ordem executiva assinada por Trump dissolveu o único comitê consultivo federal sobre covid longa, e o Departamento de Trabalho dos EUA removeu menções à condição de seus sites.

O NIH cortou não apenas pesquisas sobre covid longa, mas também outros trabalhos que poderiam afetar pessoas com a condição. Vários estudos sobre deficiências foram encerrados, conta David Putrino, fisioterapeuta e neurocientista da Icahn School of Medicine em Nova York. E muitas pessoas com covid longa grave vivem com deficiências.

Apesar disso, alguns defensores esperavam que a iniciativa RECOVER, do NIH, de US$ 1,8 bilhão para pesquisa sobre covid longa, estivesse segura – pois o Congresso garantiu seu financiamento direto em 2020. 

Mas no final de março, o NIH cancelou uma série de financiamentos do RECOVER. “Ficamos completamente chocados”, conta Megan Fitzgerald, neurocientista da Pensilvânia, que vive com covid longa e trabalha com o grupo de advocacy Patient-Led Research Collaborative. “Foi quando começamos a nos mobilizar.”

  • Investimento desperdiçado

A investigação de Fitzgerald revelou dezenas de projetos cancelados, a maioria estudos sobre a biologia da covid longa ou sua manifestação em crianças. A perda dos estudos pediátricos seria particularmente dolorosa, diz Fitzgerald, porque a pesquisa em crianças está atrasada em relação aos adultos.

Os estudos biológicos incluíam um projeto sobre disautonomia, uma condição associada à covid longa que afeta o controle da frequência cardíaca e da pressão arterial. Outro projeto encerrado buscava caracterizar anticorpos produzidos contra proteínas do próprio corpo. Esses “autoanticorpos” podem contribuir para alguns casos de covid longa – e ser alvos de medicamentos.

Em muitos casos, os projetos estavam quase concluídos. Encerrá-los pouco antes da publicação seria jogar fora o tempo e dinheiro já investidos, defende Taylor. “É a coisa mais estúpida, pegar todo esse investimento e interrompê-lo no meio”, afirma.

Para combater os cortes, Fitzgerald trabalhou com dedicação para tentar convencer os pesquisadores a relatar suas histórias a parlamentares e à mídia. “Muitos estavam receosos”, diz ela, por temer que divulgar sua situação prejudicasse futuros financiamentos.

No estado de Maryland, Meighan Stone, diretora do Long Covid Campaign, pressionou seus contatos no Congresso e na mídia. Stone, que usa cadeira de rodas devido à covid longa, manteve-se esperançosa. Após a audiência de Jay Bhattacharya para diretor do NIH, ela o abordou. “Ele firmou um compromisso pessoal de trabalhar em tratamentos para covid longa, se confirmado”, diz Stone.

Em 28 de março, pesquisadores do RECOVER tiveram a notícia de que seus financiamentos foram reativados.

  • Poder da comunidade

Foi uma vitória crucial, mas alguns financiamentos não vinculados ao RECOVER permanecem cancelados. Isso inclui um estudo de Serena Spudich sobre os efeitos da covid longa no cérebro e um projeto de Abraam Yakoub, da Harvard University, sobre como a infecção por SARS-CoV-2 no cérebro causa sintomas em outras partes do corpo.

Em 3 de abril, um juiz federal bloqueou temporariamente a tentativa de Trump de cortar US$ 11 bilhões de iniciativas relacionadas à covid−19 no HHS; ainda não está claro como a decisão afetará esses financiamentos.

Se há um lado positivo no estresse, é que o choque dos últimos meses uniu todos os envolvidos na pesquisa sobre covid longa, diz Taylor: “A ameaça de cortes energizou a comunidade científica a se envolver e se manifestar”.

 

Fonte: Por Heidi Ledford e Max Kozlov, na Nature

 

Paulo Kliass: BC - Após a “independência”, a captura

Em meio às turbulências causadas pela iniciativa de Donald Trump e seu tarifaço global, algumas iniciativas na política local acabaram passado meio desapercebidas dos grandes meios de comunicação. Em especial, causou grande preocupação a manifestação pública do líder do Partido dos Trabalhadores (PT) no Senado Federal, Rogério Carvalho, a favor da PEC 65/23. Trata-se de um documento que foi apresentado ao poder legislativo ainda em novembro de 2023 e que foi protocolado pelo senador Vanderlan Cardoso (PSD/GO) em conjunto com uma lista extensa de colegas seus, todos do campo conservador.

A matéria foi assinada por parlamentares claramente identificados com o bolsonarismo, a exemplo de Ciro Nogueira (PP/PI), Damares Alves (REPUBL/DF), Eduardo Girão (NOVO/CE), Flávio Bolsonaro (PL/RJ), Marcos do Val (PODEMOS/ES), Cleitinho (REPUBL/MG), Hamilton Mourão (REPUBL/RS), Sergio Moro (UNIÃO/PR) e Astronauta Marcos Pontes (PL/SP). Além deles, outros políticos da direita também acompanharam o texto, como Esperidião Amin (PP/SC), Rogerio Marinho (PL/RN) Alessandro Vieira (MDB/SE) Eduardo Gomes (PL/TO) e Nelsinho Trad (PSD/MS). O elemento que deu a liga necessária para que esse bloco de oposição ao terceiro mandato do presidente Lula conseguisse tal unidade foi a intervenção do então presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

<><> PEC 65 é iniciativa do bolsonarismo!

O indicado por Jair Bolsonaro para comandar a regulação e fiscalização do sistema financeiro já havia conseguido a aprovação de uma legislação a seu favor, quando a Lei Complementar 179/21 avançou no tema da independência do Banco Central e conferiu mandato a todos os diretores da autarquia que haviam sido nomeados pelo presidente da República que perderia as eleições em outubro de 2022. Não contente com tal golpe legislativo, o neto de Roberto Campos passou boa parte de seu mandato, já com Lula despachando no Palácio do Planalto, a deixar encomendada uma nova armadilha envolvendo o órgão responsável também pela política monetária.

Não é por mero acaso que nenhum membro do Senado que seja identificado com o campo progressista e de esquerda assinou o texto. Afinal, trata-se de uma matéria que fere ainda mais todo e qualquer espírito republicano no trato da coisa pública. O documento foi resultado da articulação de Campos Neto com seus colegas e interlocutores da nata do financismo, assim como havia ocorrido quando da elaboração da proposta do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que terminou sendo encaminhado pelo ministro Fernando Haddad ao presidente Lula. Ou seja, trata-se de uma encomenda para consolidar a “independência” do BC, tema esse tão caro às elites do nosso sistema financeiro e que termina sendo corroborado pelos papagaios de pirata de outros setores de nossas classes dominantes.

Apesar disso, o líder do PT no Senado parece se dispor a trabalhar em prol de tal medida, em clara iniciativa a favor do atual presidente do órgão e sem nenhuma preocupação com as consequências que tal alteração provocaria para o futuro do Brasil. Os argumentos de senador sergipano são, a um só tempo, risíveis e trágicos:

(…) “A finalidade é a gente conseguir tornar o Banco Central efetivamente autônomo, seja do governo, mas também do mercado (…) Autonomia de verdade, um instrumento para exercer a autonomia como autoridade monetária: é isso o que a gente quer e acho que o Galípolo vai conseguir imprimir e vai ter o apoio nosso para que ele tenha uma autonomia de verdade” (…)

O parlamentar mal consegue esconder seu deslumbramento com o novo comandante do BC e parece apoiar a medida que confere independência ao órgão apenas pelas qualidades que ele considera relevantes no seu ídolo:

(…) “Ele tem uma cabeça matemática, ele consegue administrar as variáveis e saber como essas variáveis vão estar daqui a um mês, daqui a 60 dias, daqui a um ano, como um conjunto delas vai interagir para produzir um resultado. É uma mente matemática, uma mente preditiva” (…)

<><> Independência do BC: sonho de consumo do financismo

Ocorre que, na verdade, esse novo desenho de um órgão ainda mais independente atende tão somente aos desejos desse povo do oligopólio privado da banca. O BC passaria a usufruir de uma quase total independência frente aos poderes constituídos e da maioria da população, permanecendo completamente refém dos desejos e das intenções do financismo. A atual excrescência, que conferiu aos dirigentes do órgão um mandato fixo, passaria a ser elevada à enésima potência caso os dispositivos da PEC mencionada acima fossem aprovados.

A proposição que passou a contar com a vergonhosa aprovação por parte do líder do PT no Senado transforma o BC em uma empresa pública. Um completo absurdo! Um órgão com tamanho poder econômico e político, além de imensa responsabilidade institucional, passaria a ser regido também pelas leis do direito privado. Historicamente, o BC sempre foi instituído como autarquia. Um órgão subordinado ao Ministério da Fazenda, mas cuja institucionalidade e organização financeira sempre estiveram nos marcos do arranjo da administração pública federal. Afinal, o BC é responsável pela política monetária e pela política cambial. Ele define, dentre outros aspectos, a taxa oficial de juros e a taxa de câmbio. Não é pouca coisa não!

Além disso, ele é o órgão governamental responsável pela regulação e pela fiscalização dos sistemas bancário e financeiro. Ainda que as mais diversas gestões passadas do BC não tenham cumprido com tais missões, ele deveria cuidar de práticas criminosas verificadas pelas empresas reguladas como “spreads” nas operações de crédito e empréstimo, bem como se ocupar de escândalos como as tarifas abusivas ou práticas de cartel e de abuso econômico contra os interesses da maioria da população. O BC atua, na prática, como defensor dos interesses dos bancos. A conhecida estória do mecanismo de captura, quando os dirigentes do órgão regulador atuam na defesa das empresas reguladas.

<><> Lula precisa impedir tal crime de lesa Pátria

Ora, se em condições normais de pressão e temperatura já existem obstáculos para a implementação de tal comportamento republicano na ação do órgão, caso a PEC seja aprovada, a emancipação do BC se consolidaria a perder de vista. A proposição confere ao BC independência financeira, transformando os atuais ganhos do banco nas operações macroeconômicas em receitas próprias que se tornariam inatingíveis pelos demais poderes da República. A ideia é incorporar como receitas da futura empresa pública volumes bilionários como os derivados da prática da senhoriagem e os ganhos das intervenções no mercado cambial. Ou seja, ao invés de caminhar pela necessária inclusão de tais valores no Orçamento Geral da União (OGU), o projeto avança ainda mais no processo da independentização de tais valores em relação às regras institucionais republicanas.

Os riscos que tal proposição apresentam para um país que se pretende democrático e capaz de atingir padrões de desenvolvimento social, econômico e ambiental são mais do que evidentes. Os economistas e analistas do campo progressista já nos manifestamos a respeito e imaginávamos que a matéria ficaria esquecida nas prateleiras do Congresso Nacional. Entidades do movimento sindical também se apresentam condenando a medida, a exemplo do Sindicato dos funcionários do BC (Sinal) e a própria Central Única dos Trabalhadores (CUT).

É mais do que urgente que o presidente da República se pronuncie contrariamente a mais esta aventura bolsonarista avançando no interior de sua equipe de governo. Os interesses do financismo e da Faria Lima seguem, deforma surpreendente e escandalosa, encontrando eco e apoio junto a seus colaboradores próximos, em oposição às necessidades do país e da maioria da nossa população.

¨      Pipoqueiros e sorveteiros de todos os países… Por Felipe Bueno

…uni-vos, pois é chegada a hora de o Brasil oferecer ao mundo não apenas o milho a partir do qual se faz a pipoca, nem somente os sorvetes consumidos por turistas e locais derretidos pelo nosso calor. É tempo de entregar ao mundo um novo modelo de nossa pauta de exportações de soft power, talvez até um pouco hard, mas é o que temos para o momento: o assédio à verdade.

“Popcorn and ice cream sellers sentenced for coup in Brasil”, proclamou o ex-presidente diante de dois quarteirões de pessoas na Avenida Paulista. Pensando no próprio futuro, ele misturava seus devaneios – e necessidades – aos de alegados verdadeiros representantes do povo, pessoas cujos destinos se uniram desde o dia em que o ex-deputado se metamorfoseou de ninguém a líder de um país trágico.

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Forjados nos gabinetes do poder e nos subterrâneos da sociedade, políticos assim, – a História tem nos contado faz muito tempo – não são nada sem o respaldo de massas que por várias razões enxergam no bezerro de ouro da ocasião a chance de varrer para baixo do tapete as próprias fraquezas e mediocridades – e se houver quem pense diferente, a ponta da praia estará sempre disponível.

O comportamento escancarado da extrema direita não é exclusividade do Brasil; podemos dizer inclusive que nosso país nem é pioneiro no setor. Porém, numa demonstração de rápida “evolução”, em pouco tempo deixamos de ser importadores e passamos a trocar ideias com o mundo fascista de igual para igual, fornecendo estrategistas, financiadores e apoiadores de um futuro pior em nome de uma nação reacionária e uma divindade ressentida.

A fabricação de mentiras transformadas em verdades enfraquece a democracia de baixo para cima. De dentro para fora. Pois alimenta de ódio cada simples pessoa que tem a mais poderosa arma para destruir um país: o direito de votar.

A anistia defendida no último 6 de abril não é para vendedores de sorvete e pipoca. É para uma visão de mundo e para aqueles e aquelas que tentaram perpetrá-la e tentarão novamente.

Falando em soft power, pipoca e sorvete, sugiro a você, caso sobre-lhe tempo, que assista a Popcorn und Himbeereis, obra trash do cinema alemão de 1978. Bem menos pornográfico que usar camisa falsificada da CBF num domingo de garoa na Avenida Paulista.

 

Fonte: Outras Palavras/Jornal GGN

 


 

O colapso global é iminente

Paul Krugman, Prêmio Nobel de economia em 2008, por suas contribuições para a Nova Teoria do Comércio e a Nova Geografia Econômica, analisando o tarifaço imposto aos países que comercializam com os Estados Unidos, em 2 de abril deste ano, argumenta: “Na verdade, é sem dúvida enganoso dizer que Trump começou uma guerra comercial. Pode ser mais preciso dizer que, ao demolir o sistema de comércio mundial, ele desencadeou o caos. E o mundo inteiro pagará o preço”.  As tarifas de Trump não encontram respaldo entre economistas de várias tendências quer seja da ortodoxia, quer seja da heterodoxia.

Internamente, um órgão consultivo foi criado por Donald Trump, o Departamento de Eficiência Governamental (Doge) e foi entregue a  Elon Musk, o homem mais rico do mundo, para implementar a ideia de Estado Mínimo. Musk cortou empregos no governo e outros gastos. A ideia de Musk é reduzir drasticamente a força de trabalho federal e eliminar o que ele vê como desperdício de dinheiro dos contribuintes. Inicialmente, acenou com uma economia de até US$ 2 trilhões. Como parte de uma guerra contra as políticas ‘woke’, Musk disse que sua equipe “economizou aos contribuintes mais de US$ 1 bilhão em contratos DEI [diversidade, equidade e inclusão]”. Atacou a USAID, principal organização de ajuda externa dos Estados Unidos, que financia projetos em dezenas de países. Avançou sobre gastos obrigatórios, incluindo programas populares como Previdência Social e Medicare.

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A reação dos Democratas (partido rival) tem sido tímida. Talvez até de perplexidade como todos nós.

A sociedade americana começa uma reação ainda muito incipiente, protestando em várias cidades. Nem tanto pelo tarifaço, com o qual a população americana parece concordar pois os efeitos sobre os preços ainda não se tornaram claros, leva um tempo para serem sentidos pelas pessoas nos supermercados e nas lojas de varejo. Mas por razões diversas que variam da expulsão de imigrantes, supressão de direitos básicos como o de criticar o governo, ao desmonte das Universidades que viram sua autonomia para o livre pensar ameaçada e recursos públicos direcionados à educação superior e às pesquisas minguarem.

Em várias cidades ocorreram protestos, mas ainda isolados. Na capital Washington, milhares de manifestantes se reuniram, no final de semana, para acompanhar discursos de políticos democratas. Muitos citaram Elon Musk. O deputado da Flórida Maxwell Frost denunciou a “tomada de nosso governo por bilionários”.

Mas o que de fato está em jogo? Parece-me que é um abalo sísmico no modo capitalista de produção e distribuição. É um ataque à globalização e ao neoliberalismo realizado por uma pessoa que o apoia, mas não tem noção do que se trata e a quem realmente beneficia.

Em seu estreito modo de pensar Trump só enxerga que o país mantém um déficit em seu comércio com inúmeros países porque exporta (X) menos do que importa (M) e isso tem que ser combatido país a país. Desconhece todas as teorias sobre vantagens decorrentes do comércio internacional para economias abertas. Ignora o papel dos EUA, obrigações e privilégios, enquanto emissor da moeda hegemônica – o dólar americano.

Richard Wolff, economista marxista e crítico do capitalismo, analisa o período de Donald Trump como um catalisador do declínio estrutural dos Estados Unidos e das contradições do sistema capitalista: a desigualdade social, a exploração do trabalho e a concentração de riqueza. 

As ideias de Wolf sobre o destino do capitalismo na era Trump, com auxílio de IA, podem ser assim resumidas:

1. Aceleração da desigualdade e declínio imperial 

Wolff argumenta que a concentração de bilionários no governo Trump reflete uma oligarquia que aprofunda a desigualdade social, tornando o sistema insustentável. Ele compara o momento atual à Era Dourada (Gilded Age) dos anos 1890, onde a riqueza extrema de elites – como hoje são os Musk, Zuckerber e Bezos – contrastava, com a precariedade da classe trabalhadora. Essa dinâmica, acelera o colapso de um império estadunidense já em declínio, com perda de influência global e desgaste do dólar como moeda hegemônica. 

2. Políticas protecionistas e desespero econômico 

As tarifas comerciais impostas por Trump são vistas por Wolff como medidas desesperadas para conter o declínio econômico dos EUA, mas que, na realidade, agravam crises internas. Ele critica a narrativa de “vitimização” dos norte-americanos, apontando que as elites capitalistas foram as maiores beneficiárias da globalização. As tarifas, além de inflacionarem preços para os trabalhadores, arriscam recessão e perda de mercados externos devido a retaliações, acelerando a erosão da hegemonia estadunidense. 

3. Negação do declínio e teatro político 

Wolff destaca que tanto Trump quanto os Democratas evitam discutir a decadência do imperialismo americano, preferindo culpar “inimigos externos” (como China ou Rússia). Essa negação, associada a políticas beligerantes (ex.: apoio a Israel, guerra na Ucrânia), só aprofunda a crise. Para ele, as eleições são um “teatro da democracia”, onde ambos os partidos perpetuam o capitalismo sem oferecer alternativas reais. 

4. Crise estrutural do capitalismo 

Sob Trump, Wolff identifica problemas como o endividamento público recorde (121% do PIB em 2024), déficits fiscais crescentes (6,4% do PIB) e dependência de empréstimos estrangeiros. Esses fatores, somados à desdolarização global (impulsionada pelos BRICS), tornam o sistema financeiro dos EUA vulnerável a colapsos. A obsessão com gastos militares e a falta de investimentos sociais agravam a instabilidade. 

5. A necessidade de uma alternativa sistêmica 

Wolff defende que o capitalismo, em sua forma atual, é incapaz de resolver suas contradições. Ele critica a falta de democracia nos locais de trabalho e a exploração estrutural, propondo a organização dos trabalhadores para além de reformas pontuais. Para ele, a era Trump evidencia a urgência de um modelo alternativo, como cooperativas ou socialismo democrático, que enfrente as raízes das desigualdades. 

Para Wolff, a era Trump representa um ponto de inflexão: políticas neoliberais e nacionalistas aceleram o fim da hegemonia estadunidense, enquanto o capitalismo se revela cada vez mais disfuncional. Sua análise combina crítica econômica rigorosa com um apelo à transformação radical do sistema, evitando a catástrofe social e geopolítica.

O ganhador do Nobel em economia de 2001 já advogava que repensar a globalização significa repensar as relações entre o Estado e o mercado. Joseph Stiglitz acredita, na esteira de Keynes, que é urgente definir o que ele chama de “terceira via”, entre o neoliberalismo e a coletivização completa da economia, que se mostrou ineficaz. Não há mão invisível, e a intervenção do Estado pode muitas vezes dar resultados melhores do que o livre mercado. Entretanto, atualmente, são os fanáticos do mercado que dão as cartas. As consequências da liberalização financeira e da especulação são catastróficas.

Banqueiros, executivos e traders manifestaram na semana passada, após o anúncio do tarifaço do governo dos Estados Unidos, que vislumbravam flashbacks da crise financeira global de 2007-08, a crise do subprime que derrubou vários gigantes de Wall Street e de outros mercados financeiros mundo afora. Muitos especialistas também viram, no colapso de 2008, uma séria ameaça ao capitalismo, causando uma recessão global e afetando a economia de quase todos os países. A crise além de desestabilizar os mercados financeiros, diminuiu a produção industrial, causou desemprego em vários setores, afetou a confiança dos investidores, abalou a economia mundial. 

Em 15 setembro de 2008, marco da crise, um dos bancos de investimento mais tradicionais dos Estados Unidos, o Lehman Brothers, foi à falência, e as Bolsas despencaram. A data ficou conhecida como ‘segunda-feira de terror’. Em seguida, outros bancos anunciaram perdas bilionárias. Quem os socorreu foram os bancos centrais apelando para sua função de “emprestador de última instância”.

Hoje, nesta segunda-feira, sete de abril de 2025, as Bolsas mais uma vez abrem com os mercados de ações globais cambaleando. Estima-se que as 500 pessoas mais ricas do mundo perderam coletivamente US$ 536 bilhões (£ 417 bilhões) nos dois primeiros dias de negociação, após o anúncio do tarifaço de Trump. Foi a maior perda de riqueza, em dois dias, já registrada pelo índice de bilionários da Bloomberg.

Até agora, neste ano, a riqueza estimada de Musk, apoiador de Trump desde o primeiro momento, e chefe do Doge que quer desmontar o Estado americano, caiu em US$ 130 bilhões, embora ele ainda permaneça confortavelmente como a pessoa mais rica do mundo, com um patrimônio líquido de US$ 302 bilhões. As ações da Tesla caíram quase 5% em Wall Street na tarde de segunda-feira, aumentando essas perdas. Grupos de magnatas que apoiaram Trump ou compareceram à sua posse em janeiro viram sua riqueza diminuir, de forma considerável, atingidos pela turbulência do mercado.

O colapso parece iminente, liderado pelas empresas de big tech. Quem os vai socorrer?  A era Trump exacerba tensões inerentes ao capitalismo – desigualdades, nacionalismo econômico, crises sucessivas – e poderá colocar em risco instituições democráticas. Mas não será suficiente para levar ao fim o sistema capitalista ou nos conduzir para um modelo alternativo, como um modelo de cooperativas ou socialismo democrático, que enfrente as raízes das desigualdades, como sugere Wolff. Mais fácil levar a conflitos de proporções cada vez maiores, como uma Terceira Guerra Mundial, para criar consumidores para produtos bélicos cuja produção se amplia em todos os continentes.

O capitalismo tem uma capacidade imensa de adaptação a novas situações. O que está em jogo, não é o fim do capitalismo, mas sua contínua transformação. Seja para um modelo mais regulado ou para uma versão mais oligárquica e polarizada. Seu núcleo – propriedade privada, lucro e mercado – segue inabalável.

 

Fonte: Por Maria Luiza Falcão Silva, no Jornal GGN