Você sabe o que é cultura alimentar? O Ministério
da Cultura também não
Imagine uma mesa de
café da manhã. Qualquer que seja a composição desta refeição na sua cabeça, é
certo que ele estará lá: o café. A naturalidade com que o brasileiro encara uma
xícara para começar o dia é uma construção histórica. Como toda tradição, é o
resultado da repetição ao longo dos tempos, que traz a sensação de que essa é
não só uma escolha inata, como também a mais adequada a esse tipo de refeição e
momento do dia. A resposta varia de acordo com a cultura alimentar de cada um –
um indiano diria que é o chá preto com especiarias; um chinês optaria por chá
verde. Esse exemplo, ainda que genérico, é um bom exercício para
compreender as diferenças culturais ligadas à alimentação. Quanto mais se
aproxima a lupa da mesa da nossa população, mais particularidades se encontram:
pão, banana-da-terra, mandioca, cuscuz ou tapioca podem ser as bases. Ovo,
geleia, fruta fresca, linguiça ou queijo podem ser os complementos. “No Ceará,
o café da manhã genérico é café, leite, cuscuz com sal, queijo coalho ou carne
de sol. A menos de 500 quilômetros daqui, ainda na região Nordeste, o
pernambucano come de manhã inhame, carne guisada e macaxeira”, exemplifica a
antropóloga Vanessa Moreira, coordenadora do Laboratório de Criação em Cultura
Alimentar e Gastronomia da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, em
Fortaleza. O jeito que se come é uma característica tão complexa quanto o
desenvolvimento de uma língua, segundo o historiador da alimentação Massimo
Montanari. Assim como as línguas e dialetos evoluem e se transformam, as formas
de produzir alimentos, prepará-los e consumi-los também. Manter operante essa
variedade de conhecimentos ligados à comida é uma forma de manter viva a
cultura de um povo. E o Brasil tem múltiplas culturas alimentares. “A cultura é
o produto da capacidade sem igual de criação e de transmissão de conhecimentos
do Homo sapiens. A alimentação humana, portanto, é antes de tudo um ato
cultural, o que quer dizer diverso, associado a diferentes formas de conceber o
mundo”, define Paulo Eduardo Moruzzi Marques, professor de Socioantropologia da
Alimentação da Universidade de São Paulo (USP). A partir de recursos
naturais disponíveis, conhecimentos compartilhados e necessidades, os grupos
humanos construíram estratégias para produzir e consumir alimentos, criando
significados e padrões – em outras palavras, identidade. Quando se dificulta ou
se retira de um sujeito o acesso a alimentos que ele reconhece como comida, é
também sua humanidade que está sendo negada. Por isso, não se mata a fome com
uma ração, como a farinata proposta por João Dória em 2017. “Quando se
toma a cultura alimentar como orientação para a ação política, a intenção
consiste em valorizar a diversidade cultural em torno da alimentação, diante de
tendências homogeneizantes impostas por interesses econômicos poderosos”,
completa Moruzzi Marques. Quanto mais se aproxima a lupa da mesa da nossa
população, mais particularidades se encontram. Na foto, um exemplo de café da
manhã pernambucano, com carne guisada, cuscuz, inhame e macaxeira. Foto:
Reprodução/nidelins.com.br Ministério da Cultura sem cultura alimentar Apesar
de conter a palavra “cultura”, o conceito de cultura alimentar é mais
encontrado em debates e políticas públicas da área de segurança alimentar e
nutricional do que nas políticas culturais brasileiras. Na área cultural, tem
prevalecido outro termo: “gastronomia”. Embora seja uma parcela da cultura
alimentar, a gastronomia está intrinsecamente ligada à economia e à
comercialização de produtos. É por isso que, desde o primeiro momento, a luta
de vários movimentos da sociedade civil tem sido promover o conceito de cultura
alimentar e reduzir a participação da gastronomia em espaços de discussão de
políticas culturais. “Quando falamos de cultura alimentar, não estamos falando
da dimensão econômica e do trabalho como dimensões prioritárias. Estamos
falando de cultura como dimensão prioritária”, frisa Tainá Marajoara,
cozinheira e fundadora do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá, em Belém, Pará.
Essa luta teve um primeiro ponto alto em 2013, durante a 3ª Conferência
Nacional de Cultura (CNC). No modelo de participação social brasileiro, as
conferências são o ápice: é nelas que são definidas as diretrizes pelas quais
os agentes políticos devem se pautar nos próximos anos. Tainá, em conjunto com
outras pessoas, apresentou uma moção no encontro solicitando que, dali pra
frente, o termo “gastronomia” fosse substituído por “cultura alimentar”, e que
fosse incluído no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) um setorial, ou
seja, um grupo de representantes da área. Os participantes da conferência
aprovaram a mudança, e a cultura alimentar passou a ser um tema do
conselho. O CNPC, criado em 1992, é um órgão colegiado do Ministério da
Cultura que se reúne a cada três meses. Composto por representantes de diversas
linguagens artísticas e patrimônios culturais – como teatro, dança, museus,
chamados de setoriais – além de membros do poder público, o conselho serve como
um espaço onde a sociedade civil orienta as ações do ministério, analisa
editais, além de formular recomendações e propostas para diretrizes e programas
de governo. O CNPC também é responsável por criar planos com estratégias
específicas para cada área cultural, e o Plano Nacional de Cultura (PNC),
atualizado a cada dez anos para definir as metas e prioridades das políticas
culturais do país. A participação social nas políticas federais foi
praticamente extinta pelo governo Bolsonaro em 2019, quando o MinC foi
rebaixado à Secretaria Especial da Cultura. Foi nesta mudança que o Conselho
Nacional de Política Cultural foi eliminado, e os representantes da sociedade
civil ficaram sem espaço de articulação junto ao governo. Bolsonaro
também dissolveu o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),
ligado à Presidência da República, no qual a diversidade cultural alimentar era
uma pauta trazida pela sociedade civil. Em 2023, as atividades do Consea, assim
como o MinC, foram retomadas pelo governo Lula. A expectativa dos
movimentos sociais era que o MinC retomasse a composição do conselho com todos
os setoriais que estavam em operação até sua extinção, mas a escolha do
ministério foi a estaca zero: por meio de uma portaria em março de 2023, o CNPC
foi restituído na sua versão sem representantes da sociedade civil e o órgão
colegiado está passando por um processo de reestruturação a partir de reuniões
com conselheiros de cultura estaduais. Em novembro de 2023, a Conferência
Livre Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional sobre Cultura Alimentar,
ligada ao Consea, teve a presença da secretária de Comitês de Cultura, Roberta
Martins, que sinalizou que organizaria uma reunião sobre cultura alimentar
junto à ministra Margareth Menezes. Segundo Tainá Marajoara, em um ano, o MinC
nunca os recebeu. O MinC não respondeu sobre esta questão até o fechamento
desta reportagem. E aí a sociedade civil voltou a bater na tecla: a mesma
solicitação de substituição da gastronomia por cultura alimentar foi feita por
Tainá Marajoara, Socorro Almeida e Sulamita Santos com a moção 46 na 4ª CNC, em
março de 2024. “O Ministério da Cultura tem uma resistência ao termo
‘cultura alimentar’ e à complexidade que ele abrange. Entendemos isso como
racismo estrutural, uma vez que é defendido por mulheres de povos originários e
negras” diz Tainá, citando que a luta pela cultura alimentar é protagonizada
por lideranças como Edna Marajoara e a mãe Rita Santos, da Associação Nacional
das Baianas de Acarajé. “Quando esse ministério assume e retoma os
processos [interrompidos no governo Bolsonaro], reduz o significado do conceito
de cultura alimentar, apartando-o da gastronomia. Isso abre brechas para
práticas que não têm a dimensão cultural como prioritária sejam passíveis de
serem contempladas pelos editais”, aponta Tainá. Como exemplo, ela citou a categoria
Gastronomia/Alimentação, do Edital Escolas Livres de Formação em Arte e Cultura
do Programa Olhos d’Água, lançado pelo MinC em agosto de 2023. O
documento não cita nem define cultura alimentar e, da forma como foi redigido,
a categoria permite a inscrição e aprovação de iniciativas sem teor cultural.
Em nota, o MinC respondeu que tem “a linha de atuação cultura alimentar que
aponta para as ‘práticas educativas na área de gastronomia e alimentação'”. A
citação é parte do descritivo da categoria Gastronomia/Alimentação, que não
menciona em momento algum cultura alimentar. A falta de conceituação de cultura
alimentar em um edital como o do Programa Olhos d’Água é um sintoma de que a
cultura alimentar é vista como algo distinto da gastronomia, e que se expressaria
em grupos específicos, quando na verdade ela permeia a alimentação de todos os
seres humanos. Em políticas culturais, a gastronomia precisa estar atrelada ao
saber-fazer de um grupo, seguindo um entendimento antropológico da cultura, ou
seja, reconhecendo que a culinária vai além do ato de cozinhar e inclui
tradições, histórias e identidades compartilhadas. Para Tainá Marajoara, o
Ministério da Cultura tem resistência ao conceito de cultura alimentar — e isso
é traço de racismo estrutural. Na foto, receitas da comunidade Quilombola do
Córrego do Sossego, que fica em Guaçuí (ES). Foto: Léo Ola/Prefeitura Desse
ponto de vista, a cozinha do imigrante italiano na Serra Gaúcha poderia ser
enquadrada como gastronomia, mas antes de ser algo comercializado, é uma
tradição ligada ao território. Um festival de cozinha de imigrantes italianos,
portanto, poderia ser realizado no Sul do país, mas estaria descontextualizado
em uma região como o Norte. Esta é a principal questão apontada por Tainá
Marajoara: quando o edital cita apenas o termo gastronomia, os critérios para
seleção dos projetos ficam mais frouxos, e propostas puramente comerciais podem
se valer da brecha. Caso o Conselho Nacional de Políticas Culturais
tivesse sido restituído com os setoriais, esse edital (e outros documentos)
poderiam ter sido revisados e discutidos pelos representantes de cultura
alimentar. Teria sido possível, por exemplo, propor a mudança de nome da
categoria e a redação de uma definição mais específica. A exceção, na análise
de Tainá, é o entendimento e definições de cultura alimentar pela Secretaria da
Cidadania e Diversidade Cultural. A partir da Lei Cultura Viva, a secretaria
reconhece e incentiva espaços e iniciativas ligados à manutenção da cultura
alimentar, como o financiamento de projetos que preservam receitas e práticas
culinárias ancestrais. É possível pensar que categorias como Cultura dos
Povos Indígenas, Culturas Populares e Expressões Artísticas Culturais
Afro-Brasileiras trazem, intrinsecamente, o conceito de cultura alimentar – o
que não deixa de ser verdade. Mas elas não exaurem a diversidade de culturas do
Brasil. O conceito, por ser interdisciplinar, precisa ser discutido em
diferentes instâncias para basear políticas de áreas distintas para que se
complementem e se reforcem. E aí a participação popular é fundamental. “É
num setorial de cultura alimentar em um conselho de cultura que vai ter a
participação desses povos em coletivos: indígenas, quilombolas, pescadores,
povo de terreiro, ribeirinhos, ciganos. Todos se unem para discutir estratégias
e apresentar ações e sugestões para o ministério, para que eles apreendam o
patrimônio alimentar brasileiro. É necessário ampliar os setoriais de cultura
alimentar dentro do MinC, do Ministério da Educação, do Desenvolvimento
Agrário, em que as sementes crioulas e estratégias alimentares de resgate e de
salvaguarda são parte dessa forma de fazer agricultura”, exemplifica agricultor
e pesquisador indígena Mateus Tremembé, membro do Conselho Estadual de Política
Cultural do Ceará no assento de Gastronomia e da Cultura Alimentar. Os
conselhos de cultura são divididos por “setoriais”, que podem ser de teatro,
cinema, por aí vai. No Ceará, há um setorial específico para cultura alimentar.
Na foto, mulheres Kisêdjê processam a castanha de pequi. Foto: Rogério
Assis/ISA Fortalecimento na área de segurança alimentar e nutricional A
fome e inanição dos Yanomami, no início de 2023, é um exemplo de como a cultura
alimentar de povos originários corre mais riscos em momentos de crise. Como
ação emergencial, o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) fez uma compra
de cestas básicas cuja composição foi listada em nota técnica pela Funai e pela
Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai). Mesmo que
o documento recomendasse alimentos que fazem parte da cultura alimentar
Yanomami, a dificuldade foi encontrar fornecedores de proteínas adequadas.
Resultado: charque e sardinha em lata foram as opções. “O charque foi uma
péssima escolha, a sardinha em lata teve menos rejeição. Esses alimentos
estavam longe de serem os ideais para a população, mas era para resolver a
emergência”, relembra Lilian Rahal, titular da Secretaria Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Sesan). Em momentos de emergência, como a crise
Yanomami, faz falta um plano de cultura alimentar. A compra de charque para uma
população não familiarizada com sal é considerada uma “péssima escolha” por
Lilian Rahal. Foto: Luiz Cláudio e Bruno Pereira/Sesai/MS O MDS recebeu uma
série de críticas pela falta de contexto dos produtos. Os Yanomami são
caçadores e agricultores e, sem a possibilidade de plantar, pescar e caçar até
se restabelecerem, eles terão de receber cestas básicas para sua alimentação.
“É difícil comprar mil cestas de cada tipo de composição porque há muitos
produtos que não têm escala para atender a uma grande compra. Logo em seguida,
começamos a nos organizar para prover o que as pessoas precisam para recuperar
sua capacidade produtiva, produzir os grupos alimentares que consomem via
agricultura, pesca e caça”, completa a secretária. A partir do Programa
de Aquisição de Alimentos (PAA) indígena, a Sesan espera ter uma rede de
fornecedores mais adequada para as próximas ocasiões e, segundo Rahal, um grupo
da secretaria está sistematizando os sistemas alimentares indígenas para
tomá-los como referência para novas políticas públicas. Mesmo com percalços
como o envio de charque para o povo Yanomami, o conceito de cultura alimentar
aparece com mais nitidez e como balizador de políticas públicas no Ministério
do Desenvolvimento Social (MDS), via Sistema Integrado de Segurança Alimentar e
Nutricional (Sisan). “Durante minha pesquisa de mestrado [em 2017], observei
como a cultura alimentar vinha sendo levantada e aprofundada muito mais pelos
militantes, ativistas e representantes governamentais de diversas áreas ligadas
à alimentação no âmbito de políticas de segurança alimentar e nutricional, e
não em políticas culturais”, conta Gabriella Pieroni, diretora da Associação
Slow Food do Brasil, mestre em preservação do patrimônio cultural pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e doutoranda em
gestão da cultura e do patrimônio na Universidade de Barcelona. Ainda que
não contenha a expressão cultura alimentar, a ideia está difundida na lei que
cria o Sisan – o conceito de segurança alimentar e nutricional é
fundamentado pelo respeito à diversidade cultural e pelo direito à alimentação
adequada. A legislação é considerada um arcabouço que protege as diferentes
expressões alimentares do Brasil, e essa foi a base para a recente definição da
nova cesta básica, sem ultraprocessados e com uma proposta de respeito às
culturas alimentares. “O processo de ampliação da participação popular na
formulação de políticas públicas abriu espaço para que outros saberes e
conhecimentos sejam incluídos nas definições. Você abre espaço para trazer
aspectos culturais ligados à forma de produzir alimentação, de pensar a vida e
o mundo”, analisa Juliana Casemiro, professora do Instituto de Nutrição da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, conselheira do Consea representando o
Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar. Peixe assado na folha,
banana verde assada e beiju com pimenta em pó. Foto: ISA/Enciclopédia dos
alimentos yanomami (sanöma): peixes, crustáceos e moluscos. A experiência do
Ceará Uma discussão dentro da Secretaria da Juventude do Ceará (SEJUV) sobre
como profissionalizar jovens em condições socioeconômicas vulneráveis resultou
na criação de uma escola pública de gastronomia. “A ideia inicial era construir
uma política pública que desse oportunidade em uma linguagem que fizesse
brilhar o olho. A juventude é a fase mais criativa e produtiva do ser humano, e
por isso muitas vezes criam coisas extraordinárias em moda, tecnologia e
gastronomia”, recorda Selene Penaforte, que esteve na assessoria da SEJUV à
época. A Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco (construída pelo Grupo
M. Dias Branco, detentor de marcas de ultraprocessados, que também doou o
terreno e equipamentos ao governo do Ceará) foi inaugurada em 2018 como uma
primeira experiência dessa política pública, ligada à Secretaria da Cultura.
Uma das atividades da Escola é o Laboratório de Criação em Cultura Alimentar e
Gastronomia, que está em sua sétima edição e já fomentou 24 projetos de
pesquisa, muitos em territórios de povos e comunidades tradicionais no Ceará,
como a criação de um sorvete usando mandioca da comunidade quilombola Conceição
dos Caetanos, e a sistematização do processo tradicional de produção do óleo de
batiputá do povo Tremembé. “Ninguém consegue vislumbrar a formação em
gastronomia sem passar pela discussão da cultura alimentar. Tem que conhecer
quem planta, quem pesca, quem está construindo na raiz aquilo que a gente
historicamente come. Entendemos a escola de gastronomia social como um lugar
que estuda e pesquisa para ajudar as pessoas a melhorar suas vidas com inovação
e tecnologia social sem perder de vista a valorização da tradição “, diz
Selene. A gastronomia, nesse entendimento, está a serviço da manutenção da
cultura alimentar, tendo espaço para a criação, mas sem invisibilizar o
conhecimento de uma população. Alinhada à ideia de considerar a cultura
alimentar a base para políticas públicas, em 2021, entrou em vigor no Ceará a
Lei nº 17.608, que institui a Política Estadual da Gastronomia e da Cultura
Alimentar. A legislação cria um marco para desenvolvimento de políticas
públicas integradas e que salvaguardam a diversidade de expressões culturais na
alimentação do estado. A partir daí, a Secretaria de Desenvolvimento
Agrário (SDA) do estado começou a desenvolver inventários participativos da
cultura alimentar. A metodologia é uma adaptação da identificação de patrimônio
imaterial do Iphan para sistemas agrícolas tradicionais e de cultura alimentar.
Os dois projetos-piloto, do povo Tremembé e do povo Tabajara, receberam o
Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade do Iphan no ano passado. “Essas
conquistas todas estão dentro desse processo histórico em que a sociedade civil
se movimenta. Nada vem de mão beijada de cima para baixo, é sempre a sociedade
civil construindo e refletindo em políticas públicas”, arremata Gabriella
Pieroni, que presta consultoria da metodologia para a SDA. O Ceará é um bom
exemplo com sua Política Estadual da Gastronomia e da Cultura Alimentar. Nas
fotos, estudantes da Ivens Dias Branco preparam alimentos regionais. Fotos:
Governo do Ceará Diversidade homogênea das cidades Morar em um grande centro é
ser inundado pela variedade a cada esquina. É possível que uma mesma pessoa
tome um café da manhã ao estilo estadunidense, almoce uma massa italiana e
jante um churrasco coreano. Compre um pão de fermentação natural à francesa,
uma pasta de gergelim árabe, um chutney indiano. Prepare um cuscuz com manteiga
de garrafa, cozinhe com tucupi amazônico e escolha um cacho de uvas vindos de
Petrolina, no sertão pernambucano, tudo na mesma semana, na mesma cidade.
O gosto adquirido, esse fenômeno de adaptação do paladar e construção de
preferência por alimentos, é um processo individual e bastante urbano. O acesso
à variedade das metrópoles dá a impressão de que há diversidade e
representatividade de culturas alimentares, e que basta saber navegar para
acessar cada uma delas. Mas é uma falácia: em cidades menores, menos
cosmopolitas – como era a maior parte do Brasil quatro décadas atrás
– os restaurantes são menos onipresentes no dia a dia e a oferta nos
supermercados é mais comedida. Padarias, feiras e mercearias são os comércios
que abastecem a população com ingredientes e produtos cotidianos, e a variedade
e disponibilidade sofrem influências externas. “A diversidade se sustenta
pelo mercado local. É um desafio apontar pro ser urbano como é essa perda de
cultura alimentar, como seria para eles perceberem. Para a geração nova, a
memória já é do supermercado, de uma diversidade que acaba sendo igual no mundo
todo: as mesmas espécies de banana, de manga, de uva”, diz Bibi Cintrão,
pesquisadora autônoma na área de segurança alimentar do Centro de Referência em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, vinculado ao Programa de
Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Para a antropóloga Vanessa
Moreira, a cultura alimentar não é assunto de especialistas: deve ser discutida
nos centros urbanos diante do aumento das doenças crônicas decorrentes da
alimentação. “Com o crescimento da fome e o aumento da alimentação
industrializada, é preciso que existam instâncias apropriadas para essa
discussão. A cultura alimentar não é uma oposição à alimentação
industrializada, porque nessa quantidade de pessoas que temos no mundo,
precisamos dessa escala, e processos de inovação na produção são importantes”,
pontua. Na praça de alimentação de um shopping, opções de comida
japonesa, brasileira, italiana e fast food dos EUA. Foto: Divulgação A produção
local e a manutenção de uma sociobiodiversidade ativa são o caminho apontado
por Vanessa, ao que Bibi Cintrão faz coro. “À medida que se incentiva o mercado
local, com o PAA, você reforça a cultura local. Às vezes, são efeitos
colaterais. Quando o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar] foi
lançado, o objetivo não era reforçar a cultura local, mas fazer circular o
dinheiro localmente. Por isso é chamado de investimento estruturante, porque
gera um ciclo positivo de fortalecimento local. E um efeito colateral foi
fortalecer a cultura alimentar”, analisa. O efeito colateral também
acontece por omissão, como no caso da reforma agrária ou da demarcação de
terras de povos tradicionais. “A principal estratégia hoje para a manutenção de
muitas culturas alimentares depende da demarcação de terras e territórios. Os
povos e comunidades tradicionais vêm reforçando em suas incidências políticas
que sem terra e território não existe cultura alimentar, sociobiodiversidade,
patrimônio genético, conhecimentos tradicionais associados… E isso está se
perdendo muito rápido”, alerta Gabriella Pieroni. O Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) não retornou ao pedido de entrevista e informações
do Joio até o fechamento desta reportagem. “Num país que tem a
possibilidade de ter uma produção de alimentos para exercer consumo local de
forma sustentável, temos diretrizes que levam para outro lugar. A possibilidade
de ter a cultura alimentar como base de uma política pública reverbera nas
práticas alimentares de acordo com as identidades. Pensar a cultura alimentar
de forma estratégica em políticas públicas é uma forma de adiar o fim do
mundo”, destaca Vanessa Moreira..
Fonte: O Joio e O
Trigo
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