Os 200 anos da saga alemã no Brasil
Em 25 de julho de
1824, um grupo de 39 falantes de língua alemã chegou a um assentamento às
margens do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, com o objetivo de começar uma
nova vida. Ali nasceria o município de São Leopoldo. E a data se tornou o marco
oficial do início da imigração alemã no Brasil.
Antes terras dos
índios kaigangs e carijós, ali desde o século 18 havia se formado um povoamento
açoriano. Em 1788, foi fundada no local a Feitoria do Linho Cânhamo, que
plantava a matéria-prima utilizada para a produção de cordas.
Quando os 39 colonos
lá chegaram, há 200 anos, a feitoria estava desativada. Mas a construção serviu
de abrigo inicial, até que eles recebessem seus lotes e pudessem recomeçar a
vida. O governo provincial batizou o povoado de São Leopoldo, em homenagem ao
santo padroeiro da imperatriz Leopoldina (1797-1826), ela própria
germanofalante, nascida em Viena.
Esse grupo original
havia desembarcado no recém-independente Brasil em 4 de junho daquele ano, no
Rio de Janeiro, a bordo do veleiro Anna Louisa. A viagem, iniciada em Hamburgo,
fora de 41 dias. "A maioria deles trabalhava como agricultor ou artesão",
diz a historiadora Daniela Rothfuss, coordenadora cultural do Instituto
Martius-Staden. Protestantes luteranos eram 33; os demais professavam a fé
católica.
Embora tenha se
tornado praxe a referência ao marco como o do início da imigração alemã no
Brasil, é preciso fazer duas ressalvas. A primeira é que naquele momento não
havia uma Alemanha unificada, o que só ocorreria em 1871. Portanto, o que houve
foi a imigração de falantes de língua alemã, vindos de diferentes estados onde
hoje são, principalmente, Alemanha, Áustria e Suíça.
O segundo ponto
importante é que, evidentemente, já havia imigrantes dessas terras no Brasil: a
própria imperatriz Leopoldina é um ilustre exemplo. Outro caso emblemático foi
o navio Argus, que atracou no Brasil em janeiro de 1824 com 284 passageiros teutônicos. "A data de 25 de
julho tornou-se um marco referencial […] porque deu início a um projeto mais
sistemático de estabelecimento de colonos em pequenas propriedades rurais”,
explica o historiador João Klug, professor na Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Ou seja: a partir de então, as levas de imigrantes respondiam a um
projeto do governo brasileiro, que, pós-independência, abria seus portos aos
europeus, buscava povoar regiões vistas como ameaçadas pela América Espanhola —
como o sul do país —, e começava a se preocupar com a substituição da mão de
obra escravista, diante do cenário internacional de pressões pelo fim da
escravidão — que só ocorreria no Brasil, tardiamente, em 1888. "No caso
desses colonos importados para o trabalho, a fixação e o povoamento da terra,
sobretudo, ao sul. tratava-se de assegurar a presença da autoridade monárquica
nas disputas geopolíticas na bacia do rio da Prata”, pontua o historiador Paulo
Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). "A
importação de mão-obra europeia tornou-se basilar para a economia
agroexportadora e a formação do mercado de trabalho e de terras no Brasil.”
·
Turbulência na Europa
Do lado de lá do
Atlântico, um contexto de pobreza tornava a ideia de "fazer a América” muito
atraente. A Europa vivia um momento turbulento, com muitas profissões em crise
por conta da Revolução Industrial. Além disso, as guerras napoleônicas, de 1803
a 1815, haviam devastado social e economicamente boa parte do centro do
continente. "Ocorria o início da industrialização na Alemanha, o
deslocamento de populações do camp para as cidades e um quadro de instabilidade
política”, contextualiza o historiador Arno Wehling, professor emérito da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), titular da Academia
Brasileira de Letras (ABL) e sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB). "Todas essas razões convergem para explicar a presença
do imigrante alemão no Brasil e justificam que o ano de 1824, seu marco
inicial, seja uma espécie de ponta do iceberg desse longo processo que envolve
seis ou sete gerações de alemães, chegados em sucessivas ondas migratórias, e
seus descendentes.”
No total, 300 mil
alemães emigraram para o Brasil. Hoje são mais de 5 milhões os descendentes vivendo no país.
"O lote de terra [cedido pelo governo brasileiro aos colonos] foi a isca
para captar contingentes demográficos excedentes e impulsionar a economia
mercantil em bases capitalistas e altamente lucrativas”, afirma Martinez.
Haveria nas próximas
décadas também uma motivação mais escusa: o branqueamento da população,
majoritariamente formada por indígenas e africanos. "A ideologia do
aprimoramento racial e da superioridade técnica e cultural de camponeses
europeus encarregou-se da legitimação e do disfarce dessa motivação utilitária
e pragmática dos nossos dirigentes econômicos e políticos”, pontua o
historiador.
·
Fases e tensões
A imigração em massa
seria marcada por diferentes fases. A
primeira, no Rio Grande do Sul, seria interrompida nos anos 1830 após a eclosão
da Guerra dos Farrapos e pressões de latifundiários escravistas, descontentes
com a alocação de recursos e terras imperiais para imigrantes.
Mais tarde, a
imigração seria retomada com força nos anos 1850 quando
a responsabilidade financeira foi repassada para as províncias, que
terceirizaram a colonização para grandes companhias, várias delas sediadas na
Alemanha, que passaram a demarcar e vender terras para imigrantes. Nesse
contexto, surgem grandes centros que até hoje são vitrines da colonização alemã
no Brasil, como Blumenau e Joinville, em
Santa Catarina. Nem todas as áreas eram "terras de ninguém", e
em vários casos os colonos ocuparam áreas habitadas por populações indígenas,
contribuindo para o declínio de vários povos.
O período também foi
marcado por outras tensões. A entrada de muitos protestantes alemães no
Brasil gerou debates sobre a conveniência de aceitar essa população num país
praticamente todo católico - algo que ficou mais evidenciado na colonização alemã
no Espírito Santo. Ainda na
década de 1850, notícias sobre as más condições enfrentadas por imigrantes
alemães explorados em fazendas cafeeiras em São Paulo, além do não
reconhecimento de casamentos entre protestantes sob a lei brasileira, levaram a
Prússia - maior estado alemão à época - a limitar a imigração dos seus súditos
ao Brasil. Posteriormente, uma exceção foi feita em relação aos três estados do
Sul do Brasil, favorecendo uma concentração desses imigrantes na região.
Uma terceira fase,
após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
quando a Alemanha - agora já um país unificado - foi tomada pela crise após a
derrota no conflito. Foi justamente entre 1920 e 1929 que ocorreu o maior fluxo
de entrada em termos numéricos de alemães No Brasil. Mas a maior parte dessa leva,
em contraste com as anteriores, dominadas por agricultores, se concentraria em
cidades já estabelecidas, como Curitiba e São Paulo, e se dedicaria a
atividades urbanas. Nos anos 1930, o Brasil ainda receberia judeus alemães que
fugiam do nazismo – que não tiveram recepção amistosa por parte da ditadura
Vargas.
O último período
também foi marcado por novas tensões. A Campanha de Nacionalização do Estado
Novo varguista, que atingiu diferentes comunidades imigrantes, acabaria
por resultar no fechamento de jornais e
escolas comunitárias de língua alemã, provocando um declínio no uso do idioma
entre os imigrantes e descendentes, uma situação que foi intensificada quando o
Brasil declarou guerra à Alemanha nazista em 1942.
·
Marcas na sociedade
Falar do legado desse
fenômeno é lembrar, conforme frisa Martinez, que "são 200 anos de presença
e de intercâmbios mutuamente enriquecedores e criativos”.
Professor na Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e na Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez ressalta que
esses imigrantes trouxeram diferentes técnicas agrícolas e diversas tradições,
como "algumas festas que acabaram ganhando contornos mais fortes em termos
de conhecimento nacional, como a Oktoberfest”. "Os alemães introduziram
[no país] um novo modelo agrícola: as picadas ou pequenas propriedades”, diz
Rothfuss. "Essas picadas eram autossuficientes. Produziam ovos, manteiga,
carne e vendiam ali. Tinham escolas, igrejas, cemitérios, templos, pequenas
vendas e serviços sociais.”
A historiadora
ressalta que as primeiras cooperativas agrícolas do Rio Grande do Sul foram
criadas por alemães e, em São Paulo, foram esses imigrantes quem começaram a
cultivar batata, repolho e rabanete.
Um ponto importante
foi a valorização do ensino, em um tempo de altas taxas de analfabetismo.
"Logo após a chegada, os imigrantes fundaram escolas para ensinar os
filhos e as filhas a ler a e escrever”, afirma Rothfuss. "Nas regiões de
língua alemã, praticamente não havia analfabetos. Isso era algo especial no
Brasil daquela época.”
Um outro impacto
social foi a criação dos primeiros cemitérios não ligados à Igreja Católica.
Como 60% desses imigrantes alemães, de acordo com a historiadora do
Martius-Staden, eram de religião protestante, eles precisaram criar cemitérios
destinados aos não-católicos — que acabaram também sendo utilizados por judeus
e praticantes de outros credos. "O legado material, que salta aos olhos de
qualquer observador, é múltiplo: desenvolvimento da pequena propriedade rural
num país dominado pelo latifúndio, valorização do trabalho livre, num ambiente
escravocrata, presença forte na atividade comercial e industrial, atuação na
área cultural e educacional, opção pela iniciativa individual e pelo
empreendedorismo”, enumera o historiador Wehling. "Por outro lado, a
imigração alemã, como a de tantos outros povos, demonstra como a imigração no
Brasil, gerando miscigenação biológica e cultural, longe de criar guetos e a
substituição de uma identidade pela outra, foi capaz de estimular o surgimento
de uma sociedade afluente e de trazer novos aportes que se incorporaram ao
processo permanente de formação do povo brasileiro, enriquecendo-o e
estimulando atitudes de valorização da complementaridade e da tolerância”,
acrescenta ele.
·
Tradições que resistem
Seja pela organização
quase autônoma das vidas em picadas, seja porque o idioma e as tradições
fizeram das primeiras comunidades alemãs mais fechadas à influência de povos
que já habitavam o Brasil, muito dessa cultura teutônica acabou sendo
preservado. "Os alemães que se estabeleceram no Brasil tinham na língua o
principal aspecto de manutenção da identidade, mesmo levando em conta os
dialetos regionais que caracterizavam os diferentes grupos”, pontua o
historiador Klug. "Ao lado da língua, vinham as várias outras
manifestações culturais. Em parte isso se deve a um certo isolamento vivenciado
nas colônias”, comenta ele, lembrando que associações culturais acabaram sendo
criadas para "a preservação do ‘espírito alemão'” e os imigrantes
protestantes "tinham na igreja um referencial de preservação da língua e
da cultura”.
Isso faz com que hoje,
dentre os imigrantes e seus descendentes, o alemão seja o idioma mais falado no
Brasil. "Estima-se [o total de falantes] corresponda a cerca de 1,9% da
população, seguindo-se de perto o italiano”, diz Wehling. "Embora a língua
inglesa, por outro motivo, o seu caráter de língua franca, ocupe também lugar
importante. As estimativas estatísticas evidenciam que a língua alemã no Brasil
supera as línguas dos demais grupos de imigrantes, […] com maior ou menor
fluência e em diferentes dialetos”, completa Klug.
Em 1940, na última vez
que o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) perguntou sobre "outras línguas faladas no lar”, aferiu-se que
3,94% da população eram bilíngues em casa, sendo 1,56% germanofalante — um
total, na época, de cerca de 650 mil pessoas. "A maioria se concentrava no
Rio Grande do Sul, que tinha praticamente a metade dos bilíngues do Brasil”,
comenta o linguista e germanista Cléo Vilson Altenhofen, professor na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ele conta que em 1990
um projeto da sua universidade fez uma pesquisa e chegou a percentuais
similares. "Pode-se concluir que, baseado nesses levantamentos e nas
projeções possíveis, se uma língua possui o maior número de falantes no Brasil
depois do português, essa língua é o alemão, pois as demais […] tiveram um
processo de perda linguistica ainda mais acelerado [do que o alemão], o que nos
preocupa particularmente no reconhecimento e salvaguarda do patrimônio cultural
imaterial brasileiro”, esclarece Altenhofen.
·
Problema: a pretensa "superioridade”
Mas se toda história
de imigração é eivada de conquistas, esforços e superações, especialistas
frisam que é importante fazer do 25 de julho também uma data de reflexão acerca
dos problemas e conflitos resultantes da chegada dos alemães ao país — justamente
para evitar cair no lugar-comum ufanista que pode legitimar falsos discursos de
superioridade. "A memória da chegada e da instalação de europeus com
origem e destino rural no Brasil, entre 1824 e 1930, cultiva aquelas ideias de
superioridade biológica, moral e técnica de sua ascendência e de sua
propagação, entre os descendentes e a sociedade nacional, como fato grandioso, natural
e automático”, comenta Martinez. "Trata-se de um mito construído e
difundido de forma persistente e insistentemente renovada, agente ativo na
reprodução e perpetuação das desigualdades sociais e econômicas, logo, da
manipulação política autoritária, truculenta e violenta na vida brasileira.”
Klug acrescenta que se
os imigrantes alemães "ajudaram a moldar um certo perfil multiétnico e
multirracial […] isto não pode ser visto como algo que aponte para qualquer
superioridade se comparado a outros grupos”. "No contexto do bicentenário
[…] tenho percebido uma narrativa com tendência a ver o ‘legado alemão'
supervalorizado, às vezes de forma apaixonada, sem qualquer amparo em
evidências históricas”, afirma ele. "Trata-se de um rico legado, diferente
dos demais grupos, mas não superior aos demais grupos.”
Klug acredita que a
maneira como a indústria do turismo "vende” a germanofilia contribuiu para
"superdimensionar” a ideia de típico de uma "pretensa identidade
alemã”. "Este ‘modelo alemão' de sociedade bem sucedida
especialmente no sul do Brasil normalmente é visto apenas na perspectiva
étnica, o que também abre portas para um racismo que nem sempre é visto como
tal, mas com tendência a se solidificar exaltando a uma capacidade inerente a
etnia, que é vista como superior as demais”, problematiza.
¨ Jornais em alemão ajudaram comunidades a se firmar no Brasil
Em 24 de março de
1883, o jornal Germania, periódico em língua alemã editado em São
Paulo, publicou na página 3 uma lista intitulada "Dez mandamentos para
emigrante", com conselhos para os alemães que chegavam ao Brasil ano a ano.
Os preceitos incluíam:
"Você deve suportar com paciência os primeiros revezes e
dificuldades"; "Você deve manter os olhos bem abertos para não ser
enganado por falsos amigos"; "Você não deve permanecer muito tempo na
cidade, mas seguir rapidamente para o campo para trabalhar"; e "Você
deve fazer o máximo possível para aprender a língua do país".
À medida em que
comunidades germânicas foram se estabelecendo no país, jornais em língua alemã
foram sendo criados como suas principais fontes de informação – trazendo
orientações para os imigrantes recém-chegados, como nos mandamentos acima, ou
sobre as regras e burocracias nacionais, e também indo muito além disso,
cobrindo as principais notícias nacionais e internacionais para seus
leitores.
Levantamentos estimam
que 250 títulos de jornais em alemão foram publicados no Brasil entre 1852 e
1941, produzindo 1,3 milhão de páginas em grande formato – daqueles jornalões
de ler com os braços bem esticados, com textos palavrosos e letras miúdas, de
início sem fotos, com poucas ilustrações e por vezes em tipografia gótica.
Professor de língua e
literatura alemã na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Universidade
Federal Fluminense (UFF), Paulo Soethe afirma que esses
jornais tiveram números e tiragens muito significativos e são uma fonte de
pesquisa essencial sobre o passado das colônias alemãs no Brasil até 1941 –
quando Getúlio Vargas proibiu
jornais em língua estrangeira no país, interrompendo o ciclo mais rico dessa
imprensa. "Esses periódicos são um grande espelho da
vida das comunidades alemãs nesse período, permitindo acompanhar os debates que
ocorriam e ter uma visão bastante detalhada do dia a dia", explica
Soethe.
<><>
Temática abrangente
Os jornais eram uma
ponte para os imigrantes alemães se situarem na nova terra. Ajudaram a dar-lhes
voz coletiva e senso de comunidade, mantendo laços culturais e o idioma – mas
iam muito além de um cultivo da germanidade. "Os jornais não eram provincianos
ou de interesse de uma comunidade rural", descreve Soethe. "Continham
discussões interessantíssimas, muito ligadas aos debates
nacionais."
Ele cita debates
contrapondo os modelos de Império ou República; defendendo a filosofia
positivista em reação a correntes religiosas vigentes; ou se posicionando a
favor da abolição da escravatura – um exemplo das visões progressistas de
burgueses liberais que fugiram para as Américas após o fracasso das Revoluções
de 1848.
Soethe é
vice-coordenador do Laboratório de Estudos da Memória Multilíngue Brasileira
(Lemmbra*de), uma iniciativa da UFF e da UFPR com diversos parceiros na
Alemanha. O projeto tem como missão digitalizar jornais guardados em diversos
arquivos e instituições no Sul e no Sudeste para dar sobrevida a esses acervos
e ampliar a produção de estudos sobre essas fontes. A ideia surgiu da percepção
da importância desses jornais para desvendar o legado alemão no Brasil – e do
risco de que se percam com os anos. Das 1,3 milhão de páginas que
foram publicadas, Soethe estima que o projeto consiga digitalizar entre 60% e
70%, porque muito já se perdeu. "A finalidade é dar um futuro a esse
passado", resume o pesquisador paranaense.
<><> Os
"intelectuais" das colônias
Os jornais em idioma
alemão eram fundados por igrejas, burgueses liberais progressistas, famílias
proeminentes, associações, uma ampla gama de atores. Eram pessoas que se
destacavam por ter mais formação e estofo intelectual – como jesuítas, pastores
luteranos ou os Brummer – como foram designados os soldados germânicos
convocados pelo Império do Brasil para lutar na Guerra do Prata, em
1851.
Ao fim dessa disputa
com Argentina e Uruguai em torno do controle no Rio da Prata, muitos desses
soldados se estabeleceram no Rio Grande do Sul, atraídos pela promessa de lotes
de terra ao fim do serviço militar. "Eles se tornaram uma
elite pensante nas comunidades, dando início a alguns dos grandes
jornais", explica o historiador René Gertz, que fez um levantamento dos
títulos editados no RS entre 1850 e 1940, registrando 144 jornais no
estado.
Gertz aponta que a
cobertura internacional nesses jornais costumava dar destaque ao que estava
acontecendo na Alemanha (ou nos reinos precedendo a unificação, em 1871).
Entretanto, a cobertura era "sobre tudo". Trazia notícias do mundo e
do Brasil, com ênfase à política brasileira em todas as esferas – o que ocorria
no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais, nas câmaras
municipais. "São jornais políticos, assim como a imprensa
brasileira. Mas é importante frisar que são jornais brasileiros em língua
estrangeira – não são jornais alemães", ressalta Gertz.
<><> O
Brasil traduzido
A historiadora Isabel
Arendt, professora de Letras na Unisinos, em São Leopoldo (RS), afirma que
esses periódicos frequentemente traziam notícias importantes dos principais
jornais brasileiros, resumidas em alemão. "Eles faziam uma tradução
cultural de tudo o que acontecia no país para essa população, ajudando no
processo de integração", aponta Arendt. "Eles tinham acesso a tudo
que estava acontecendo no país. Ou seja: você não se integra se não
quiser."
Os jornais refletiam
também costumes e eventos culturais, expondo assim a produção literária,
musical, teatral e operística que existia nas colônias alemãs. Havia espaço
também para traduções da literatura brasileira, conta a pesquisadora, como
folhetins apresentando José de Alencar aos imigrantes ou seus descendentes.
Arendt faz parte do
Lemmbra*de e é uma pesquisadoras do Grupo de Estudos da Imprensa em Língua
Estrangeira no Brasil, o Transfopress Brasil. O projeto é internacional e tem
um núcleo brasileiro capitaneado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). O
foco de Arendt são as publicações em alemão, olhando para seu papel não apenas
como fomentadores de uma identidade germânica, mas também como uma ponte
transcultural. "Os jornais foram editados para durar um dia, uma semana,
mas hoje são uma referência sobre essa população e sua história. Eles são o que
permaneceu, trazendo toda a vivência, práticas sociais e educativas que não
teríamos sem esses registros e que acabarão se perdendo se não cuidarmos desses
acervos", ressalta a pesquisadora. "O bicentenário da imigração alemã
deve nos incentivar a cuidar dessa riqueza para viabilizar o acesso a essas
fontes por outros 200 anos", considera.
<><> Duas
guerras, dois golpes
Após décadas de
produção prolífica, essa imprensa enfrentou uma série de baques ao longo da
primeira metade do século 20, a começar pela Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). Os jornais escaparam ilesos nos primeiros anos do conflito, mas
foram proibidos quando o Brasil entrou na guerra, em 1917. Em alguns casos,
Gertz diz que a tendência foi manter as publicações, mas vertendo seus
títulos e textos para o português. Assim, o Urwaldsbote, de
Blumenau, se tornou O Mensageiro da Floresta; e o Deutsches
Volksblatt, de Porto Alegre, virou Folha Popular. As estruturas
de redação e parques gráficos foram mantidos e, ao fim da guerra, os jornais
seguiram em frente. A pá de cal, entretanto, veio durante o Estado Novo, com a
campanha de nacionalização promovida por Getúlio Vargas com objetivo de forçar
a integração de imigrantes e seus descendentes à cultura brasileira. A política
foi implementada a partir de 1938, antes da Segunda Guerra Mundial, começando
por vetar escolas de lecionarem em outras línguas que não o português. Depois,
Vargas vetou jornais em língua estrangeira e proibiu que a língua alemã fosse
usada em público. Em 1942, após o Brasil entrar na guerra,
protestos contra alemães no Brasil incluíram a depredação de jornais e
máquinário da imprensa teuto-brasileira. "A grande imprensa de língua
alemã no Brasil, a que eu chamo de imprensa política, acabou em 1941",
afirma Gertz. Depois da guerra, sobreviveram almanaques anuais, folhas
religiosas ou esportivas e periódicos menores, mas sem a expressividade de
outrora.
<><> A
sombra do nazismo
Um forte entrave para
a retomada dos jornais em alemão após a Segunda Guerra foi a sombra do nazismo
e a influência que emissários de Hitler exercitaram sobre as redações. Segundo
Soethe, a partir de 1933 houve um processo de nazificação de parte dessa imprensa.
"Com sua perspicácia midiática, os nazistas faziam propaganda e tentavam
ganhar os editores dos jornais. Cônsules ofereciam dinheiro e pintavam o que
acontecia na Alemanha como queriam. Houve uma tentativa feroz de nazificação da
mídia por agentes diplomáticos no Brasil", afirma.
Soethe destaca,
entretanto, que a campanha de nacionalização de Vargas começou antes do início
da Segunda Guerra, com motivações nacionalistas que nada tinham a ver com o
nazismo. De início, o regime de Vargas nutria simpatias por Hitler e Mussolini.
Mais tarde, entretanto, Vargas pôde atribuir as restrições que impôs ao
nazismo e à propagação do ideário nazista entre colônias alemãs. "Toda
essa documentação ficou completamento invisível por causa das ações
autoritárias de proibição do idioma a partir de 1938, o que resultou numa
negligência completa com a guarda e a documentação desses jornais", afirma
Soethe, destacando que a maior parte que sobreviveu está em acervos estaduais,
municipais ou privados, enquanto a Biblioteca Nacional tem poucos títulos. "Depois
de um século de imigração constante da Alemanha para o Brasil, uma confluência
de fatores acabaram tornando a própria presença alemã no Brasil uma espécie de
tabu", ressalta o pesquisador. "Isso resultou numa consciência
limitada e superficial da contribuição alemã para o país, muitas vezes restrita
a festas e eventos folclóricos."
Preservar e
disponibilizar esses jornais é uma chave para tirar essa história da
invisibilidade, trazendo à tona o legado dessas comunidades e seu papel na
formação da sociedade brasileira.
Fonte: Deutsche Welle
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