sexta-feira, 26 de julho de 2024

Os 200 anos da saga alemã no Brasil

Em 25 de julho de 1824, um grupo de 39 falantes de língua alemã chegou a um assentamento às margens do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, com o objetivo de começar uma nova vida. Ali nasceria o município de São Leopoldo. E a data se tornou o marco oficial do início da imigração alemã no Brasil.

Antes terras dos índios kaigangs e carijós, ali desde o século 18 havia se formado um povoamento açoriano. Em 1788, foi fundada no local a Feitoria do Linho Cânhamo, que plantava a matéria-prima utilizada para a produção de cordas.

Quando os 39 colonos lá chegaram, há 200 anos, a feitoria estava desativada. Mas a construção serviu de abrigo inicial, até que eles recebessem seus lotes e pudessem recomeçar a vida. O governo provincial batizou o povoado de São Leopoldo, em homenagem ao santo padroeiro da imperatriz Leopoldina (1797-1826), ela própria germanofalante, nascida em Viena.

Esse grupo original havia desembarcado no recém-independente Brasil em 4 de junho daquele ano, no Rio de Janeiro, a bordo do veleiro Anna Louisa. A viagem, iniciada em Hamburgo, fora de 41 dias. "A maioria deles trabalhava como agricultor ou artesão", diz a historiadora Daniela Rothfuss, coordenadora cultural do Instituto Martius-Staden. Protestantes luteranos eram 33; os demais professavam a fé católica.

Embora tenha se tornado praxe a referência ao marco como o do início da imigração alemã no Brasil, é preciso fazer duas ressalvas. A primeira é que naquele momento não havia uma Alemanha unificada, o que só ocorreria em 1871. Portanto, o que houve foi a imigração de falantes de língua alemã, vindos de diferentes estados onde hoje são, principalmente, Alemanha, Áustria e Suíça.

O segundo ponto importante é que, evidentemente, já havia imigrantes dessas terras no Brasil: a própria imperatriz Leopoldina é um ilustre exemplo. Outro caso emblemático foi o navio Argus, que atracou no Brasil em janeiro de 1824 com 284 passageiros teutônicos. "A data de 25 de julho tornou-se um marco referencial […] porque deu início a um projeto mais sistemático de estabelecimento de colonos em pequenas propriedades rurais”, explica o historiador João Klug, professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ou seja: a partir de então, as levas de imigrantes respondiam a um projeto do governo brasileiro, que, pós-independência, abria seus portos aos europeus, buscava povoar regiões vistas como ameaçadas pela América Espanhola — como o sul do país —, e começava a se preocupar com a substituição da mão de obra escravista, diante do cenário internacional de pressões pelo fim da escravidão — que só ocorreria no Brasil, tardiamente, em 1888. "No caso desses colonos importados para o trabalho, a fixação e o povoamento da terra, sobretudo, ao sul. tratava-se de assegurar a presença da autoridade monárquica nas disputas geopolíticas na bacia do rio da Prata”, pontua o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). "A importação de mão-obra europeia tornou-se basilar para a economia agroexportadora e a formação do mercado de trabalho e de terras no Brasil.”

·        Turbulência na Europa

Do lado de lá do Atlântico, um contexto de pobreza tornava a ideia de "fazer a América” muito atraente. A Europa vivia um momento turbulento, com muitas profissões em crise por conta da Revolução Industrial. Além disso, as guerras napoleônicas, de 1803 a 1815, haviam devastado social e economicamente boa parte do centro do continente. "Ocorria o início da industrialização na Alemanha, o deslocamento de populações do camp para as cidades e um quadro de instabilidade política”, contextualiza o historiador Arno Wehling, professor emérito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), titular da Academia Brasileira de Letras (ABL) e sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). "Todas essas razões convergem para explicar a presença do imigrante alemão no Brasil e justificam que o ano de 1824, seu marco inicial, seja uma espécie de ponta do iceberg desse longo processo que envolve seis ou sete gerações de alemães, chegados em sucessivas ondas migratórias, e seus descendentes.”

No total, 300 mil alemães emigraram para o Brasil. Hoje são mais de 5 milhões os descendentes vivendo no país.  "O lote de terra [cedido pelo governo brasileiro aos colonos] foi a isca para captar contingentes demográficos excedentes e impulsionar a economia mercantil em bases capitalistas e altamente lucrativas”, afirma Martinez.

Haveria nas próximas décadas também uma motivação mais escusa: o branqueamento da população, majoritariamente formada por indígenas e africanos. "A ideologia do aprimoramento racial e da superioridade técnica e cultural de camponeses europeus encarregou-se da legitimação e do disfarce dessa motivação utilitária e pragmática dos nossos dirigentes econômicos e políticos”, pontua o historiador.

·        Fases e tensões

A imigração em massa seria marcada por diferentes fases. A primeira, no Rio Grande do Sul, seria interrompida nos anos 1830 após a eclosão da Guerra dos Farrapos e pressões de latifundiários escravistas, descontentes com a alocação de recursos e terras imperiais para imigrantes.

Mais tarde, a imigração seria retomada com força nos anos 1850 quando a responsabilidade financeira foi repassada para as províncias, que terceirizaram a colonização para grandes companhias, várias delas sediadas na Alemanha, que passaram a demarcar e vender terras para imigrantes. Nesse contexto, surgem grandes centros que até hoje são vitrines da colonização alemã no Brasil, como Blumenau e Joinville, em Santa Catarina. Nem todas as áreas eram "terras de ninguém", e em vários casos os colonos ocuparam áreas habitadas por populações indígenas, contribuindo para o declínio de vários povos.

O período também foi marcado por outras tensões. A entrada de muitos protestantes alemães no Brasil gerou debates sobre a conveniência de aceitar essa população num país praticamente todo católico - algo que ficou mais evidenciado na colonização alemã no Espírito Santo. Ainda na década de 1850, notícias sobre as más condições enfrentadas por imigrantes alemães explorados em fazendas cafeeiras em São Paulo, além do não reconhecimento de casamentos entre protestantes sob a lei brasileira, levaram a Prússia - maior estado alemão à época - a limitar a imigração dos seus súditos ao Brasil. Posteriormente, uma exceção foi feita em relação aos três estados do Sul do Brasil, favorecendo uma concentração desses imigrantes na região.

Uma terceira fase, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando a Alemanha - agora já um país unificado - foi tomada pela crise após a derrota no conflito. Foi justamente entre 1920 e 1929 que ocorreu o maior fluxo de entrada em termos numéricos de alemães No Brasil. Mas a maior parte dessa leva, em contraste com as anteriores, dominadas por agricultores, se concentraria em cidades já estabelecidas, como Curitiba e São Paulo, e se dedicaria a atividades urbanas. Nos anos 1930, o Brasil ainda receberia judeus alemães que fugiam do nazismo – que não tiveram recepção amistosa por parte da ditadura Vargas.

O último período também foi marcado por novas tensões. A Campanha de Nacionalização do Estado Novo varguista, que atingiu diferentes comunidades imigrantes, acabaria por resultar no fechamento de jornais e escolas comunitárias de língua alemã, provocando um declínio no uso do idioma entre os imigrantes e descendentes, uma situação que foi intensificada quando o Brasil declarou guerra à Alemanha nazista em 1942.

·        Marcas na sociedade

Falar do legado desse fenômeno é lembrar, conforme frisa Martinez, que "são 200 anos de presença e de intercâmbios mutuamente enriquecedores e criativos”.

Professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez ressalta que esses imigrantes trouxeram diferentes técnicas agrícolas e diversas tradições, como "algumas festas que acabaram ganhando contornos mais fortes em termos de conhecimento nacional, como a Oktoberfest”. "Os alemães introduziram [no país] um novo modelo agrícola: as picadas ou pequenas propriedades”, diz Rothfuss. "Essas picadas eram autossuficientes. Produziam ovos, manteiga, carne e vendiam ali. Tinham escolas, igrejas, cemitérios, templos, pequenas vendas e serviços sociais.”

A historiadora ressalta que as primeiras cooperativas agrícolas do Rio Grande do Sul foram criadas por alemães e, em São Paulo, foram esses imigrantes quem começaram a cultivar batata, repolho e rabanete.

Um ponto importante foi a valorização do ensino, em um tempo de altas taxas de analfabetismo. "Logo após a chegada, os imigrantes fundaram escolas para ensinar os filhos e as filhas a ler a e escrever”, afirma Rothfuss. "Nas regiões de língua alemã, praticamente não havia analfabetos. Isso era algo especial no Brasil daquela época.”

Um outro impacto social foi a criação dos primeiros cemitérios não ligados à Igreja Católica. Como 60% desses imigrantes alemães, de acordo com a historiadora do Martius-Staden, eram de religião protestante, eles precisaram criar cemitérios destinados aos não-católicos — que acabaram também sendo utilizados por judeus e praticantes de outros credos. "O legado material, que salta aos olhos de qualquer observador, é múltiplo: desenvolvimento da pequena propriedade rural num país dominado pelo latifúndio, valorização do trabalho livre, num ambiente escravocrata, presença forte na atividade comercial e industrial, atuação na área cultural e educacional, opção pela iniciativa individual e pelo empreendedorismo”, enumera o historiador Wehling. "Por outro lado, a imigração alemã, como a de tantos outros povos, demonstra como a imigração no Brasil, gerando miscigenação biológica e cultural, longe de criar guetos e a substituição de uma identidade pela outra, foi capaz de estimular o surgimento de uma sociedade afluente e de trazer novos aportes que se incorporaram ao processo permanente de formação do povo brasileiro, enriquecendo-o e estimulando atitudes de valorização da complementaridade e da tolerância”, acrescenta ele.

·        Tradições que resistem

Seja pela organização quase autônoma das vidas em picadas, seja porque o idioma e as tradições fizeram das primeiras comunidades alemãs mais fechadas à influência de povos que já habitavam o Brasil, muito dessa cultura teutônica acabou sendo preservado. "Os alemães que se estabeleceram no Brasil tinham na língua o principal aspecto de manutenção da identidade, mesmo levando em conta os dialetos regionais que caracterizavam os diferentes grupos”, pontua o historiador Klug. "Ao lado da língua, vinham as várias outras manifestações culturais. Em parte isso se deve a um certo isolamento vivenciado nas colônias”, comenta ele, lembrando que associações culturais acabaram sendo criadas para "a preservação do ‘espírito alemão'” e os imigrantes protestantes "tinham na igreja um referencial de preservação da língua e da cultura”.

Isso faz com que hoje, dentre os imigrantes e seus descendentes, o alemão seja o idioma mais falado no Brasil. "Estima-se [o total de falantes] corresponda a cerca de 1,9% da população, seguindo-se de perto o italiano”, diz Wehling. "Embora a língua inglesa, por outro motivo, o seu caráter de língua franca, ocupe também lugar importante. As estimativas estatísticas evidenciam que a língua alemã no Brasil supera as línguas dos demais grupos de imigrantes, […] com maior ou menor fluência e em diferentes dialetos”, completa Klug.

Em 1940, na última vez que o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) perguntou sobre "outras línguas faladas no lar”, aferiu-se que 3,94% da população eram bilíngues em casa, sendo 1,56% germanofalante — um total, na época, de cerca de 650 mil pessoas. "A maioria se concentrava no Rio Grande do Sul, que tinha praticamente a metade dos bilíngues do Brasil”, comenta o linguista e germanista Cléo Vilson Altenhofen, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Ele conta que em 1990 um projeto da sua universidade fez uma pesquisa e chegou a percentuais similares. "Pode-se concluir que, baseado nesses levantamentos e nas projeções possíveis, se uma língua possui o maior número de falantes no Brasil depois do português, essa língua é o alemão, pois as demais […] tiveram um processo de perda linguistica ainda mais acelerado [do que o alemão], o que nos preocupa particularmente no reconhecimento e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial brasileiro”, esclarece Altenhofen.

·        Problema: a pretensa "superioridade”

Mas se toda história de imigração é eivada de conquistas, esforços e superações, especialistas frisam que é importante fazer do 25 de julho também uma data de reflexão acerca dos problemas e conflitos resultantes da chegada dos alemães ao país — justamente para evitar cair no lugar-comum ufanista que pode legitimar falsos discursos de superioridade. "A memória da chegada e da instalação de europeus com origem e destino rural no Brasil, entre 1824 e 1930, cultiva aquelas ideias de superioridade biológica, moral e técnica de sua ascendência e de sua propagação, entre os descendentes e a sociedade nacional, como fato grandioso, natural e automático”, comenta Martinez. "Trata-se de um mito construído e difundido de forma persistente e insistentemente renovada, agente ativo na reprodução e perpetuação das desigualdades sociais e econômicas, logo, da manipulação política autoritária, truculenta e violenta na vida brasileira.”

Klug acrescenta que se os imigrantes alemães "ajudaram a moldar um certo perfil multiétnico e multirracial […] isto não pode ser visto como algo que aponte para qualquer superioridade se comparado a outros grupos”. "No contexto do bicentenário […] tenho percebido uma narrativa com tendência a ver o ‘legado alemão' supervalorizado, às vezes de forma apaixonada, sem qualquer amparo em evidências históricas”, afirma ele. "Trata-se de um rico legado, diferente dos demais grupos, mas não superior aos demais grupos.”

Klug acredita que a maneira como a indústria do turismo "vende” a germanofilia contribuiu para "superdimensionar” a ideia de típico de uma "pretensa identidade alemã”.  "Este ‘modelo alemão' de sociedade bem sucedida especialmente no sul do Brasil normalmente é visto apenas na perspectiva étnica, o que também abre portas para um racismo que nem sempre é visto como tal, mas com tendência a se solidificar exaltando a uma capacidade inerente a etnia, que é vista como superior as demais”, problematiza.

 

¨      Jornais em alemão ajudaram comunidades a se firmar no Brasil

Em 24 de março de 1883, o jornal Germania, periódico em língua alemã editado em São Paulo, publicou na página 3 uma lista intitulada "Dez mandamentos para emigrante", com conselhos para os alemães que chegavam ao Brasil ano a ano.  

Os preceitos incluíam: "Você deve suportar com paciência os primeiros revezes e dificuldades"; "Você deve manter os olhos bem abertos para não ser enganado por falsos amigos"; "Você não deve permanecer muito tempo na cidade, mas seguir rapidamente para o campo para trabalhar"; e "Você deve fazer o máximo possível para aprender a língua do país".  

À medida em que comunidades germânicas foram se estabelecendo no país, jornais em língua alemã foram sendo criados como suas principais fontes de informação – trazendo orientações para os imigrantes recém-chegados, como nos mandamentos acima, ou sobre as regras e burocracias nacionais, e também indo muito além disso, cobrindo as principais notícias nacionais e internacionais para seus leitores.  

Levantamentos estimam que 250 títulos de jornais em alemão foram publicados no Brasil entre 1852 e 1941, produzindo 1,3 milhão de páginas em grande formato – daqueles jornalões de ler com os braços bem esticados, com textos palavrosos e letras miúdas, de início sem fotos, com poucas ilustrações e por vezes em tipografia gótica.

Professor de língua e literatura alemã na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Universidade Federal Fluminense (UFF), Paulo Soethe afirma que esses jornais tiveram números e tiragens muito significativos e são uma fonte de pesquisa essencial sobre o passado das colônias alemãs no Brasil até 1941 – quando Getúlio Vargas proibiu jornais em língua estrangeira no país, interrompendo o ciclo mais rico dessa imprensa.    "Esses periódicos são um grande espelho da vida das comunidades alemãs nesse período, permitindo acompanhar os debates que ocorriam e ter uma visão bastante detalhada do dia a dia", explica Soethe.  

<><> Temática abrangente 

Os jornais eram uma ponte para os imigrantes alemães se situarem na nova terra. Ajudaram a dar-lhes voz coletiva e senso de comunidade, mantendo laços culturais e o idioma – mas iam muito além de um cultivo da germanidade. "Os jornais não eram provincianos ou de interesse de uma comunidade rural", descreve Soethe. "Continham discussões interessantíssimas, muito ligadas aos debates nacionais."  

Ele cita debates contrapondo os modelos de Império ou República; defendendo a filosofia positivista em reação a correntes religiosas vigentes; ou se posicionando a favor da abolição da escravatura – um exemplo das visões progressistas de burgueses liberais que fugiram para as Américas após o fracasso das Revoluções de 1848.

Soethe é vice-coordenador do Laboratório de Estudos da Memória Multilíngue Brasileira (Lemmbra*de), uma iniciativa da UFF e da UFPR com diversos parceiros na Alemanha. O projeto tem como missão digitalizar jornais guardados em diversos arquivos e instituições no Sul e no Sudeste para dar sobrevida a esses acervos e ampliar a produção de estudos sobre essas fontes. A ideia surgiu da percepção da importância desses jornais para desvendar o legado alemão no Brasil – e do risco de que se percam com os anos.   Das 1,3 milhão de páginas que foram publicadas, Soethe estima que o projeto consiga digitalizar entre 60% e 70%, porque muito já se perdeu. "A finalidade é dar um futuro a esse passado", resume o pesquisador paranaense.  

<><> Os "intelectuais" das colônias  

Os jornais em idioma alemão eram fundados por igrejas, burgueses liberais progressistas, famílias proeminentes, associações, uma ampla gama de atores. Eram pessoas que se destacavam por ter mais formação e estofo intelectual – como jesuítas, pastores luteranos ou os Brummer – como foram designados os soldados germânicos convocados pelo Império do Brasil para lutar na Guerra do Prata, em 1851.  

Ao fim dessa disputa com Argentina e Uruguai em torno do controle no Rio da Prata, muitos desses soldados se estabeleceram no Rio Grande do Sul, atraídos pela promessa de lotes de terra ao fim do serviço militar.   "Eles se tornaram uma elite pensante nas comunidades, dando início a alguns dos grandes jornais", explica o historiador René Gertz, que fez um levantamento dos títulos editados no RS entre 1850 e 1940, registrando 144 jornais no estado.  

Gertz aponta que a cobertura internacional nesses jornais costumava dar destaque ao que estava acontecendo na Alemanha (ou nos reinos precedendo a unificação, em 1871). Entretanto, a cobertura era "sobre tudo". Trazia notícias do mundo e do Brasil, com ênfase à política brasileira em todas as esferas – o que ocorria no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais, nas câmaras municipais.   "São jornais políticos, assim como a imprensa brasileira. Mas é importante frisar que são jornais brasileiros em língua estrangeira – não são jornais alemães", ressalta Gertz.  

<><> O Brasil traduzido 

A historiadora Isabel Arendt, professora de Letras na Unisinos, em São Leopoldo (RS), afirma que esses periódicos frequentemente traziam notícias importantes dos principais jornais brasileiros, resumidas em alemão. "Eles faziam uma tradução cultural de tudo o que acontecia no país para essa população, ajudando no processo de integração", aponta Arendt. "Eles tinham acesso a tudo que estava acontecendo no país. Ou seja: você não se integra se não quiser." 

Os jornais refletiam também costumes e eventos culturais, expondo assim a produção literária, musical, teatral e operística que existia nas colônias alemãs. Havia espaço também para traduções da literatura brasileira, conta a pesquisadora, como folhetins apresentando José de Alencar aos imigrantes ou seus descendentes.

Arendt faz parte do Lemmbra*de e é uma pesquisadoras do Grupo de Estudos da Imprensa em Língua Estrangeira no Brasil, o Transfopress Brasil. O projeto é internacional e tem um núcleo brasileiro capitaneado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). O foco de Arendt são as publicações em alemão, olhando para seu papel não apenas como fomentadores de uma identidade germânica, mas também como uma ponte transcultural. "Os jornais foram editados para durar um dia, uma semana, mas hoje são uma referência sobre essa população e sua história. Eles são o que permaneceu, trazendo toda a vivência, práticas sociais e educativas que não teríamos sem esses registros e que acabarão se perdendo se não cuidarmos desses acervos", ressalta a pesquisadora. "O bicentenário da imigração alemã deve nos incentivar a cuidar dessa riqueza para viabilizar o acesso a essas fontes por outros 200 anos", considera.  

<><> Duas guerras, dois golpes  

Após décadas de produção prolífica, essa imprensa enfrentou uma série de baques ao longo da primeira metade do século 20, a começar pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os jornais escaparam ilesos nos primeiros anos do conflito, mas foram proibidos quando o Brasil entrou na guerra, em 1917. Em alguns casos, Gertz diz que a tendência foi manter as publicações, mas vertendo seus títulos e textos para o português. Assim, o Urwaldsbote, de Blumenau, se tornou O Mensageiro da Floresta; e o Deutsches Volksblatt, de Porto Alegre, virou Folha Popular. As estruturas de redação e parques gráficos foram mantidos e, ao fim da guerra, os jornais seguiram em frente. A pá de cal, entretanto, veio durante o Estado Novo, com a campanha de nacionalização promovida por Getúlio Vargas com objetivo de forçar a integração de imigrantes e seus descendentes à cultura brasileira. A política foi implementada a partir de 1938, antes da Segunda Guerra Mundial, começando por vetar escolas de lecionarem em outras línguas que não o português. Depois, Vargas vetou jornais em língua estrangeira e proibiu que a língua alemã fosse usada em público. Em 1942, após o Brasil entrar na guerra, protestos contra alemães no Brasil incluíram a depredação de jornais e máquinário da imprensa teuto-brasileira. "A grande imprensa de língua alemã no Brasil, a que eu chamo de imprensa política, acabou em 1941", afirma Gertz. Depois da guerra, sobreviveram almanaques anuais, folhas religiosas ou esportivas e periódicos menores, mas sem a expressividade de outrora.

<><> A sombra do nazismo

Um forte entrave para a retomada dos jornais em alemão após a Segunda Guerra foi a sombra do nazismo e a influência que emissários de Hitler exercitaram sobre as redações. Segundo Soethe, a partir de 1933 houve um processo de nazificação de parte dessa imprensa. "Com sua perspicácia midiática, os nazistas faziam propaganda e tentavam ganhar os editores dos jornais. Cônsules ofereciam dinheiro e pintavam o que acontecia na Alemanha como queriam. Houve uma tentativa feroz de nazificação da mídia por agentes diplomáticos no Brasil", afirma.

Soethe destaca, entretanto, que a campanha de nacionalização de Vargas começou antes do início da Segunda Guerra, com motivações nacionalistas que nada tinham a ver com o nazismo. De início, o regime de Vargas nutria simpatias por Hitler e Mussolini. Mais tarde, entretanto, Vargas pôde atribuir as restrições que impôs ao nazismo e à propagação do ideário nazista entre colônias alemãs. "Toda essa documentação ficou completamento invisível por causa das ações autoritárias de proibição do idioma a partir de 1938, o que resultou numa negligência completa com a guarda e a documentação desses jornais", afirma Soethe, destacando que a maior parte que sobreviveu está em acervos estaduais, municipais ou privados, enquanto a Biblioteca Nacional tem poucos títulos. "Depois de um século de imigração constante da Alemanha para o Brasil, uma confluência de fatores acabaram tornando a própria presença alemã no Brasil uma espécie de tabu", ressalta o pesquisador. "Isso resultou numa consciência limitada e superficial da contribuição alemã para o país, muitas vezes restrita a festas e eventos folclóricos."

Preservar e disponibilizar esses jornais é uma chave para tirar essa história da invisibilidade, trazendo à tona o legado dessas comunidades e seu papel na formação da sociedade brasileira.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário