segunda-feira, 1 de abril de 2024

Lula perde carisma, e 'horror da ditadura' não pode ser esquecido, diz Fábio Konder Comparato

O advogado Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP e um dos principais juristas do país, afirma que Luiz Inácio Lula da Silva já não tem o carisma de outrora e que o PT já deveria começar a preparar o ministro Fernando Haddad (Fazenda) para sucedê-lo na Presidência.

Referência da esquerda sobretudo na área de direitos humanos, após um início de carreira voltado também ao direito comercial, Comparato atuou na defesa de presos políticos e por reparação aos perseguidos pela ditadura.

Esteve à frente de causas simbólicas dos familiares e mortos e desaparecidos, como as da família Almeida Teles e Luiz Eduardo Merlino contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e de Inês Etienne Romeu contra a União Federal. Assinou também a ação da OAB no Supremo Tribunal Federal sustentando que a Lei da Anistia não poderia impedir a punição de crimes contra a humanidade perpetrados na ditadura.

"Vivemos uma situação em que é importantíssimo que haja uma figura carismática no governo. E, infelizmente, o Lula está perdendo o seu carisma. E eu penso que talvez fosse o caso de se começar a atuar no sentido de fazer do Fernando Haddad uma espécie de bom sucessor do Lula", disse Comparato à Folha de S.Paulo.

"Agora, eu não sei como se pode fazer isso, porque antigamente havia partidos políticos, hoje não existem mais partidos, existem personalidades. E as personalidades que contam na política vão diminuindo, podemos contá-las com os dedos de uma só mão."

Segundo o jurista, os atuais partidos já não têm força para fazer a sociedade avançar. "Precisamos criar um grupo de políticos, de intelectuais e gente com capacidade e experiência para reformular as atividades daquilo que nós chamávamos outrora esquerda, que pressuponha uma oposição ao que parece ser a única realidade política atual, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, que é a direita."

Comparato deu as declarações no contexto do posicionamento de Lula em relação ao passivo da ditadura. Ele disse que discorda da recente declaração do presidente de que a ditadura "faz parte da história" ("não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente", afirmou Lula) e da determinação do petista para que órgãos do governo não lembrem os 60 anos do golpe, neste 31 de março.

"Eu acho que não se pode esquecer esse horror. E, sobretudo, é preciso levar em consideração o fato de que toda a juventude brasileira nasceu depois do golpe não viveu nada daquilo. Qualquer que seja a nossa posição quanto ao governo Lula, é preciso não esquecer o horror do golpe de 64. É preciso, antes de mais nada, não perder este horror na nossa memória coletiva."

Ainda assim, observou Comparato, é preciso que Lula tenha diálogo com os militares e, nesse sentido, o advogado defende que o presidente siga "os conselhos do ministro José Múcio [Defesa]".

"Evidentemente, ele está mais ligado aos militares do que o presidente, mas, sobretudo, ele parece consciente de que nós estamos vivendo um momento difícil. E a minha impressão é de que o Lula não tem consciência disso. É preciso que haja um interregno, uma conversa séria do governo com o grupo militar."

Comparato considera que os desdobramentos quanto às tentativas de golpe por parte de Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados e aos ataques de 8 de janeiro "têm que continuar como o ministro Alexandre de Moraes determinou. Ou seja, nós não podemos esquecer esse assunto. É preciso pelo menos iniciar os processos penais".

Aos 87 anos, Comparato não advoga mais, e diz que não tem saído de casa por questões de saúde. Mas continua, apesar das limitações, a tomar parte no debate público. Ao conversar com a reportagem por telefone no último dia 20, acabara de participar de uma reunião por vídeo da Comissão Arns, da qual é um dos ilustres integrantes --como diz fazer semanalmente.

"Eu estou sujeito àquela praga que se chama velhice. De qualquer maneira, eu espero que outras pessoas mais jovens tenham a convicção de que nunca se pode esquecer os horrores de governos ditatoriais que duraram pelo menos duas décadas no Brasil."

 

       Ministro de Lula ligou ditadura a nazifascismo antes de veto sobre 60 anos do golpe

 

Se neste 2024, quando se completam 60 anos do golpe militar de 1964, o Ministério do Direitos Humanos (MDH) foi proibido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de promover eventos para lembrar a data (assim como todos os órgãos do governo), um ano atrás foi diferente.

Em 2023, sem a proibição, a pasta liderada por Silvio Almeida lançou, às vésperas do aniversário do golpe, a campanha "Semana do Nunca Mais - Memória Restaurada, Democracia Viva" com ações para repudiar ditaduras.

O MDH inclusive lançou um selo alusivo à iniciativa.

Em um vídeo, um recém-empossado Silvio Almeida se referiu à ditadura militar 1964-1985 como "essa página nefasta de nossas histórias [que] não deve ser esquecida para que nunca mais se repita". "O Brasil ainda possui dificuldades no campo sociopolítico para ultrapassar essa página drástica de nossas vidas, que, vez por outra, parece querer ameaçar nossas liberdades."

Ele e Nilmário Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia e História e da Verdade do ministério, participaram de atos organizados pela sociedade civil para rememorar a data.

Num discurso ao final da Caminhada do Silêncio, em São Paulo, o ministro afirmou que é possível traçar uma linha contínua entre os colonialismos, o nazifascismo e as ditaduras da América Latina.

"As técnicas de tortura, de sevícias, de violência têm uma ligação direta que faz com que escravidão, nazifascismo e ditaduras militares sejam parte do mesmo evento", afirmou Almeida.

Citando o pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940) em uma das "Teses sobre o Conceito de História" (a sexta), disse o ministro: "O passado tem que ser parte de um processo de construção, para que nós nos lembremos da urgência do passado, dos perigos que o passado encerra, para que possamos de alguma forma fazer com que as reminiscências nos liguem a propósitos de esperança e de construção de um novo mundo".

E completou: "Se os nossos inimigos vencerem, nem os mortos estarão a salvo".

São ideias que se chocam de frente com o que defendeu Lula recentemente, ao dizer que a ditadura "faz parte da história".

"Não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente", afirmou o presidente, que desde então tem sido criticado por entidades de direitos humanos, familiares de mortos e desaparecidos políticos e até integrantes do governo, como a presidente da Comissão de Anistia, Enéa de Stutz e Almeida --o colegiado é subordinado ao MDH.

Neste ano, o veto imposto por Lula obrigou o ministério a cancelar um ato já programado.

Ainda no discurso após a Caminhada do Silêncio, Silvio Almeida mencionou a violência urbana e mortes na periferia como uma das heranças da ditadura. Disse que seu objetivo era fazer com que direitos humanos passem a ser uma política de Estado, não uma política de governo.

E arrematou: "Os quatro anos que nos antecederam são resultado de um país que não consegue lidar com os seus traumas. Nós precisamos lidar com esse trauma, precisamos falar disso o tempo todo e construir políticas para que isso seja lembrado, para que a verdade apareça e que possamos fazer justiça em relação aos nossos mortos".

•        Para 63%, data do golpe de 1964 deve ser desprezada, mostra Datafolha

A maioria dos brasileiros quer que a data que marcou o início de 21 anos de ditadura militar no país, o 31 de março de 1964, seja desprezado. Pensam assim, segundo o Datafolha, 63% dos ouvidos em 19 e 20 de março. Veem motivo para celebração 28%, e 9% não sabem responder.

Aos 60 anos de sua implementação num golpe promovido pelo Exército com apoio de setores da sociedade civil, a ditadura de 64 segue gerando polêmicas. As mais recentes devido à posição do presidente Lula (PT), ele mesmo um preso na ditadura, vista na esquerda como leniente sobre o período.

O governo protela a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, num aceno aos militares. Lula disse recentemente que o regime militar "faz parte da história", gerando protestos, e determinou que ministérios não façam alusões à data do golpe.

O Datafolha aferiu uma mudança na opinião do eleitor brasileiro nesta pesquisa. Na ocasião anterior em que propôs a questão, em abril de 2019, o instituto registrou 36% dos entrevistados afirmando que a data deveria ser celebrada, ante 57% que sugeriam o desprezo e 7% que não sabiam opinar.

Àquela altura, o capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro (hoje no PL) estava no início de seu turbulento mandato. Ele havia sido eleito sem negar sua simpatia pela ditadura, que o fizera um personagem entre o folclórico e o sinistro no baixo clero da Câmara dos Deputados por quase 30 anos, e chamando o notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015) de seu ídolo.

Durante seu governo, ficaram famosas as notas do Ministério da Defesa sobre o golpe, como no texto de 2020 em que ele era citado como um "marco para a democracia". Os textos buscavam relativizá-lo e colocá-lo no contexto da disputa global da Guerra Fria, em que os fardados alinhavam-se aos EUA contra a esquerda de inspiração soviética.

Do ponto de vista de adesão política, 58% dos bolsonaristas autodeclarados dizem que a data deve ser desprezada e 33%, que merece celebração. Os índices caem para 51% e 39%, respectivamente, quando o entrevistado diz ser eleitor do PL, partido do ex-presidente.

Já entre os petistas, 68% querem o desprezo à data do golpe e 26%, o elogio ao 31 de março. Para aqueles que se declaram neutros na polarização brasileira, 60% defendem desprezar e 26%, celebrar.

Há grande homogeneidade nos demais estratos socieconômicos do levantamento, com uma notável exceção: os 2% mais ricos da amostra, que ganham 10 salários mínimos ou mais por mês, são os que mais defendem o desprezo (80%) ante a celebração (20%).

O Datafolha entrevistou, em 147 cidades, 2.002 pessoas com 16 anos ou mais. A margem de erro do levantamento é de dois pontos percentuais para mais ou menos.

 

       Filme lembra chefe da reforma agrária do governo Jango em meio aos 60 anos do golpe

 

Em meio à efeméride dos 60 anos do golpe militar, muito se fala sobre os principais vitoriosos, como os generais Castello Branco e Costa e Silva, e sobre alguns derrotados, como o presidente deposto João Goulart (PTB), o Jango, e o então deputado federal pelo Rio Grande do Sul Leonel Brizola.

Entre esses últimos, um nome pouco lembrado é o de João Pinheiro Neto (1928-2006), que comandou uma área tida como essencial por Jango, a política agrária, um dos pontos centrais das chamadas reformas de base.

Um novo documentário deve contribuir para tirar Pinheiro Neto do esquecimento. Com direção de Barbara Goulart (neta de Jango) e Caio Bortolotti, "Terra Revolta" tem sessão para convidados no dia 4 de abril no Rio e estreia nos cinemas de São Paulo e do Rio em 2 de maio.

Nascido em uma família de expoentes da política mineira, esse advogado e professor foi assessor de Juscelino Kubitschek (PSD) ao longo dos anos 1950 e teve uma breve passagem como ministro do Trabalho e da Previdência durante o período parlamentarista (1961 e 1962), com Jango como presidente e Tancredo Neves como primeiro-ministro.

A fase mais relevante da sua vida pública veio em seguida, quando, depois de um plebiscito, o Brasil retomou o sistema presidencialista, com Jango no Planalto. De meados de 1963 ao golpe militar, iniciado em 31 de março de 1964, Pinheiro Neto esteve à frente da Supra (Superintendência da Reforma Agrária).

Homem culto e de porte quase aristocrático, nunca foi um extremista de esquerda. Ao seu modo, decidiu enfrentar a desigualdade social.

Entre os entrevistados do filme, estão Maria Thereza Goulart, viúva de Jango, e Almino Affonso, ministro do Trabalho de Goulart em 1963, além de familiares e amigos de Pinheiro Neto.

"De maneira paradoxal, Jango, um proprietário de terras, passou a sustentar a necessidade da reforma agrária como uma das bandeiras do seu governo", lembra Affonso.

Tanto é assim que, no famoso comício da Central do Brasil, o presidente assinou o "decreto da Supra", que, em linhas gerais, determinava a desapropriação das terras de mais de 500 hectares localizadas em uma faixa de dez quilômetros à margem de ferrovias e rodovias federais.

Numa entrevista concedida à cineasta Lúcia Murat nos anos 1990, com trechos exibidos em "Terra Revolta", Pinheiro Neto comentou as incessantes pressões vindas de fazendeiros, mas não só. Muitos empresários e militares também estavam indignados com o "decreto da Supra".

JK, uma espécie de mentor de Pinheiro Neto, se distanciou do governo Jango neste momento.

Era "uma proposta reformista, modernizadora, que nós jamais saberemos a que teria nos levado", diz a historiadora Angela de Castro Gomes sobre aquele plano de política agrária.

Com o golpe instalado nos palácios e nas ruas, Pinheiro Neto passou algumas semanas na prisão. Foi a julgamento e, defendido por Sobral Pinto, acabou absolvido. Nunca mais retomou a vida pública.

TERRA REVOLTA - JOÃO PINHEIRO NETO E A REFORMA AGRÁRIA

Quando: sessão para convidados: às 20h do dia 4 de abril (quinta) no Estação Net do shopping Gávea, no Rio de Janeiro; estreia para o público prevista para 2 de maio em São Paulo e no Rio

Produção: Brasil, 2023

Direção: Barbara Goulart e Caio Bortolotti

Duração 73 min.

 

Fonte: FolhaPress

 

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