quinta-feira, 28 de dezembro de 2023


 Tuberculose: a primeira e última comunhão

A Primeira e Última Comunhão, pintura a óleo do artista venezuelano Cristóbal Rojas, mostra um recinto desalentador e tomado pela desesperança, na qual uma menina, de roupas brancas e reclinada em uma poltrona vermelha, recebe a primeira e provavelmente última comunhão. Em sua face emergem sinais de uma tuberculose de alto grau consumptivo, que a condena à expressão caquética, devastada, à espera do fim. A comunhão, na obra, torna-se um ato para o sacramento da morte. Em 1890, o próprio Rojas deixa o mundo em decorrência da tuberculose.

A tuberculose, retratada há séculos no universo das artes, é uma das doenças mais antigas do mundo. Descoberta em 1882 pelo bacteriologista alemão Robert Koch, seus resquícios foram encontrados em ossos humanos pré-históricos na Alemanha e há registros datados de 8.000 anos antes de Cristo. Desconhecida na época, a doença era compreendida como um castigo divino, e só foi desmistificada por Hipócrates, na Grécia, no século IV antes de Cristo. A tuberculose passou a ser considerada algo natural e chamada de Tísica, e sua expansão se deu com o advento das guerras, que estreitavam o contato entre pessoas. 

A doença passou a ser melhor compreendida nos séculos XVII com o surgimento da Anatomia, recebendo seu nome atual. A partir do final do século XVIII, a enfermidade foi vinculada a duas representações: como uma doença romântica, que acometia poetas e intelectuais; e uma enfermidade vinculada ao mal social, visão que permaneceu no século XX. Desde o século XIX a doença foi tratada com a terapêutica higieno-dietética, que consistia em boa alimentação, repouso e isolamento. Para isso, os pacientes eram reclusos em sanatórios, distante do convívio com a sociedade. 

Embora a prevenção e o tratamento da doença tenham evoluído nas últimas décadas, ainda muitas pessoas morrem por tuberculose. Só em 2020, acometeu 9,9 milhões de pessoas no mundo e foi responsável por 1,3 milhão de óbitos. Até 2019, a doença era a primeira causa de óbito por um único agente infeccioso. No Brasil, em 2021, foram notificados 68.271 casos novos, o que equivale a 32 casos por 100 mil habitantes. Ainda, 4.543 foram a óbito no país em 2020, o que corresponde a 2,1 óbitos a cada 100 mil habitantes (WHO, 2021).  

Os números mostram que tratar do tema é urgente. Para a Organização Humanitária Internacional Médicos Sem Fronteiras, é essencial que as corporações norte-americanas Johnson & Johnson e Cepheid tomem medidas robustas para melhorar o acesso à bedaquilina – medicamento para tuberculose – e ao teste para diagnóstico GeneXpert. Essas ferramentas médicas precisam ser disponibilizadas para todos que precisem delas, onde houver necessidade, ressalta Francisco Viegas, assessor de inovação médica da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras. 

Segundo Viegas, a bedaquilina, medicamento desenvolvido pela Johnson & Johnson, é o principal remédio recomendado pela Organização Mundial da Saúde para regimes de tratamento contra a tuberculose resistente a medicamentos, o que permite um tratamento melhor, mais curto, mais tolerável e mais eficaz para pessoas com essa forma da doença. No entanto, o acesso em muitos países a versões genéricas acessíveis do medicamento continua bloqueado pelas “patentes secundárias” adicionais que a empresa obteve. A prática de registrar patentes adicionais de medicamentos, conhecida como evergreening, para estender o monopólio sobre o remédio, é revoltante, uma vez que o investimento público para o desenvolvimento da bedaquilina foi até cinco vezes maior do que o da própria corporação. 

Recentemente, a Johnson & Johnson anunciou um acordo com a Stop TB Partnership/Global Drug Facility – que é um mecanismo global de medicamentos – permitindo o acesso a genéricos em muitos países e anunciou uma queda de preço do tratamento de seis meses para US$ 130. No entanto, o acordo ainda exclui países com alta carga de tuberculose, e a Johnson & Johnson detém o poder para decidir quais localidades serão beneficiadas e quais serão os laboratórios autorizados a produzir o medicamento. Com isso, algumas nações ficaram de fora da lista, que, de certa forma, manteve muito controle sobre o produto. Por exemplo, muitos países do Leste europeu não serão beneficiados. 

Já a tecnologia de testes de diagnóstico GeneXpert, produzida pela empresa norte-americana Cepheid, revolucionou o teste de tuberculose desde que entrou no mercado, em 2010. Contudo, por causa do alto preço, ampliar a testagem da doença para todas as pessoas que necessitam segue um desafio, que força muitas localidades a utilizar testes mais baratos, mas menos sensíveis. Estima-se que custa à Cepheid menos de US$ 5 para fabricar um teste de tuberculose GeneXpert. Enquanto isso, a empresa tem cobrado de Médicos Sem Fronteiras e de países de baixa e média renda até o triplo desse preço. Com base nisso, Médicos Sem Fronteiras fez um apelo para que a Cepheid reduzisse o preço da unidade de cartucho GeneXpert para US$ 5 para todos os tipos de doenças. No entanto, a empresa anunciou uma redução de apenas 20%.  

Os avanços no cuidado à tuberculose são notáveis nos últimos anos, mas ainda há muito a ser feito. Viegas aponta que continuarão a pressão pública e o monitoramento se as promessas feitas em relação à bedaquilina serão cumpridas em termos de acesso concreto, observando se algum país encontrará barreira para obter o medicamento a um preço mais justo e se houve de fato redução do valor dos testes para diagnóstico. É preciso um maior monitoramento da sociedade para ver se essas promessas serão cumpridas. 

Cristóbal Rojas tinha razão. Entre o mercado e o direito à vida, entre a primeira e a última comunhão, há ainda muita gente à espera do sacramento, moribundas no leito da morte pela falta de acesso a direitos básicos: diagnóstico e tratamento. É preciso resistir. 

 

Fonte: Por Roger Flores Ceccon, no Le Monde

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