quarta-feira, 29 de março de 2023

O legado de Joenia Wapichana, a primeira deputada federal indígena do Brasil

No dia 16 de janeiro de 2023, Joenia Wapichana e nós, da sua equipe parlamentar, tivemos um momento reservado às margens do sagrado lago Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, local da Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima. O lugar e a ocasião escolhidos eram simbólicos porque foi ali que, anos atrás, o nome dela foi aprovado para concorrer às eleições de 2018. Naquele momento, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) completava 50 anos de muita luta. E foi dessa luta que Joenia Wapichana nasceu como liderança quando a presença das mulheres ainda era rara.

Com a voz trêmula e emocionada, Joenia começou: “Chamei vocês aqui porque esta é a nossa última atividade enquanto mandato. Quero agradecer pelo trabalho, pela dedicação…”. A conversa durou uns 40 minutos, e todos falaram um pouco. Nós nos abraçamos, sorrimos e ali fizemos a despedida de um ciclo que marcou vidas e histórias. Sabíamos que a luta continuaria em outros espaços. Mas terminava ali, na terra dos nossos ancestrais, o mandato da primeira mulher indígena a se tornar deputada federal no Brasil.

·         Mas como foi que tudo começou?

A primeira vez que ouvi o nome de Joenia Wapichana surgir como possibilidade de concorrer à Câmara dos Deputados foi na madrugada de 16 de março de 2014. Era uma noite de definições e impasses durante uma assembleia indígena, e uma liderança disse: “Vamos indicar a doutora Joenia”. Na época, ela coordenava o departamento jurídico do CIR e respondeu: “Quem sabe em 2018?”. Guardei a impressão de que tinha falado sem previsão política, mas não esqueci.

Em fevereiro de 2017, seu nome foi apresentado outra vez na assembleia indígena da região Serra da Lua, com 23 comunidades de dois municípios de Roraima, Bonfim e Cantá, e uma população de mais de 10 mil indígenas dos povos Wapichana e Macuxi. Joenia aceitou a indicação e começou a caminhada que a levaria ao mandato inédito no Congresso Nacional.

Depois da Serra da Lua, viriam apresentações em outras regiões, até a consolidação do seu nome. Esse processo de indicação deveria ser aplicado em todas as esferas sociais: lançar candidaturas que de fato vêm da base, têm legitimidade e envolvem interesses coletivos, e não individuais. Quando foi indicada, Joenia disse: “Eu não tenho dinheiro, mas tenho trabalho”. Do meio [da assembleia], dona Tereza Macuxi, da comunidade Maturuca, mulher de expressão forte, respondeu: “Mas Raposa Serra do Sol tem [dinheiro]”. Para nós, recurso para fazer campanha não é propriamente dinheiro, mas recurso político, intelectual, cultural, organizacional. Foi isso que elegeu Joenia, a começar pelos seus 22 anos de vida dedicados ao trabalho, ao compromisso e à causa indígena.

No primeiro semestre de 2017, ela ainda não tinha partido político. Analisando o cenário de esquerda e direita, nós nos identificamos com a Rede Sustentabilidade. Além de ser formada por defensores da causa indígena, ambiental e social comprometidos com um ideal político coerente com o que buscamos, a Rede foi fundada por Marina Silva, atual ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. E Marina é nossa mantenedora de utopias, a principal referência política e a razão decisiva para a filiação de Joenia.

·         Política com damurida

O principal opositor de Joenia era a velha prática política que, desde crianças, era incutida em nós: “Parente não vota em parente”. No nosso caso, parente é o termo usado para designar a nossa relação como indígenas. Para nós era claro que a política está em tudo, nas relações sociais, culturais, econômicas. Erguer aquele projeto em 2017 era ao mesmo tempo um desafio e uma oportunidade de construção própria, legítima e original, capaz de se distanciar dos velhos modelos e dos vícios impregnados até hoje.

Para essa construção, atendendo ao chamado de Joenia, começamos a realizar o café coletivo em sua casa. Cada um levava algo para comer, mas não podia faltar damurida (comida típica à base de peixe cozido, pimenta e farinha ou beiju), feita por Evilene Tomaz, do povo Patamona. Em um desses encontros de damurida, Joenia nos perguntou: “E aí, gente, aceito ou não?”. Respondemos: “Sim. E estaremos juntas”. Reunimos voluntários e construímos grupos de apoio. E assim conseguimos colocar na rua, nas comunidades e em todo o estado, a campanha da nossa candidata a deputada federal.

Em janeiro de 2019, nós chegávamos a Brasília. Abençoadas pelos ancestrais, fomos acolhidas no Santuário dos Pajés, um território indígena no Setor Noroeste da capital federal onde é mantida a moradia do líder e pajé Santxiê Tapuya (in memoriam), que sempre lutou contra a expansão imobiliária e a favor da preservação desse lugar originário dos povos indígenas. É um espaço de reza, de conexão com os ancestrais, a natureza e as manifestações culturais. E lá nos encontrávamos com parentes indígenas nos fins de semana para apaziguar a saudade e, claro, para comer damurida.

·         Alguns minutos ou 500 anos?

O de Joenia Wapichana foi um mandato diferente dos mandatos dos não indígenas, desde a decisão de participar da disputa eleitoral até a atuação. Em suas falas no Parlamento, Joenia costumava dizer: “Estou aqui por uma decisão de assembleia e não por mim. Não fui eu que decidi entrar na política, foram as comunidades indígenas que me indicaram. Partiu de uma decisão coletiva, e não individual”.

Em 1º de fevereiro de 2019, dia da posse, presenciei sua chegada ao Congresso Nacional. Por volta das 8 da manhã, um pequeno e representativo grupo começou a se reunir na rua das Bandeiras. Enquanto os demais parlamentares passavam em carrões de luxo, os apoiadores de Joenia – lideranças indígenas e amigos – seguiam junto ao povo.

Descemos a rampa da chapelaria do Congresso entoando cantos tradicionais. Caminhamos junto à deputada, muito emocionada – logo ela, que por fora é muito forte, ou precisa ser. Eu também chorei. Eram apenas alguns minutos de caminhada, mas foi preciso mais de cinco séculos de luta para que esses passos para dentro do Parlamento fossem possíveis.

A imprensa nacional e internacional noticiava a posse. No plenário, Joenia jurava defender a Constituição e os direitos indígenas. Eu me senti especialmente agraciada porque naquele dia ela usou meu cocar – um adereço para momentos importantes, de celebração e atos de defesa das causas coletivas. Desde então, eu o usei poucas vezes. Ficará guardado para a memória desse ciclo, como símbolo de luta, resistência e conquista no Parlamento.

Joenia nunca andou só, é importante dizer. Logo no início, a deputada criou o Conselho de Mandato, formado por amigos e parceiros indígenas e não indígenas, para sugerir ideias, propostas e informações que contribuíssem com sua atuação no Congresso Nacional. Foi uma ideia muito importante e bem-sucedida. Sempre que surgiam uma pauta polêmica, um projeto anti-indígena de Bolsonaro ou outros atos do Executivo, ela chamava uma reunião para analisar e propor encaminhamentos. Desse coletivo participavam 93 pessoas – de antropóloga a advogados e advogadas, passando por defensores socioambientais, representantes de organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas. Essa dinâmica vai permanecer e, sem dúvida, será muito útil para a atuação da primeira presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

·         Gabinete 231

Joenia escolheu para seu gabinete o número 231, o mesmo do artigo da Constituição que trata dos direitos indígenas. Deu certo. O espaço virou referência no segundo andar do anexo 5 da Câmara dos Deputados e recebeu povos indígenas do Brasil inteiro para apresentar demandas, fazer visitas, conhecer, conversar.

Na segunda semana de mandato, a primeira comitiva a chegar foi de representantes dos povos Guarani Mbyá e Xokleng, do município de Palhoça, em Santa Catarina. Eles tinham ido a Brasília por causa do processo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, no Supremo Tribunal Federal, e buscavam apoio. Esperávamos dez lideranças, mas, quando vimos, eram 30. Não havia espaço para todo mundo nem no gabinete nem na sala de reunião da deputada. Só naquele momento descobrimos que Joenia tinha direito a um plenário para reuniões com a estrutura necessária, com café e água para os que chegavam de longe. Foi nossa estreia.

A primeira vez que eu ouvi falar na “advogada de índios” foi no início dos anos 2000, durante a luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Mas só anos mais tarde eu trabalharia com Joenia no Conselho Indígena de Roraima, ainda sem sonhar que um dia seria testemunha de um momento histórico. Mais do que isso, seria assessora da primeira deputada indígena do Brasil.

Muitas vezes, engoli o choro ao acompanhar comitivas indígenas nas reuniões. Presenciei emoções felizes e tristes de parentes. Dos 513 deputados, Joenia era a única voz indígena que podia se fazer ouvir na tribuna. E para lá ela levou a denúncia de muitas violações. Foi assim no caso da menina de 12 anos, vítima de estupro e morte, denunciado pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi/Yanomami). Ela disse: “Hoje novamente os jornais estampam notícias de terror que estão acontecendo com os povos indígenas. Não é na Ucrânia e na Rússia, mas aqui no Brasil”.

·         Missão: barrar as maldades de Bolsonaro

Uma das primeiras realizações do mandato de Joenia Wapichana no Congresso foi a criação da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, composta de 237 parlamentares (27 senadores e 210 deputados). Não foi fácil para um grupo estreante como o nosso sair pelos corredores e reunir no mínimo 170 assinaturas. Mas conseguimos.

A frente foi lançada em abril de 2019, em um ato ao mesmo tempo tenso e incrível no Salão Negro da Câmara, com senadores, deputados, pessoas da sociedade civil e de organizações indígenas. Foi o primeiro evento organizado a partir do gabinete 231.

Já a primeira vitória marcante dessa frente parlamentar foi o arquivamento da Medida Provisória nº 870. Desde o início, o governo Bolsonaro pretendia levar a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e repassar a atribuição de demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. O embate, tanto na Câmara quanto no Senado, foi grande, mas a pressão, as estratégias e a mobilização dos povos indígenas, indigenistas e apoiadores fizeram a diferença e a Constituição venceu. Bolsonaro continuou atacando e em seguida apareceu com o Projeto de Lei nº 191, que autoriza a mineração em terras indígenas. Foi engavetado.

·         A diplomacia Wapichana

A presença de Joenia contribuiu para que até o fim do mandato as investidas de Bolsonaro fossem bloqueadas. Vivíamos alertas e, nos momentos mais dramáticos, a deputada usava a “diplomacia Wapichana”, como ela costuma dizer. Ela se referia – e ainda se refere – a enfrentar os opositores e os temas espinhosos com uma tranquilidade firme – avançando sempre, mas sem jamais perder a calma.

Como a única indígena e a única parlamentar da Rede Sustentabilidade na Câmara, a ex-deputada começava a agenda às 9 da manhã e terminava à meia-noite. Sempre que preciso, seguia até 2 ou 3 da madrugada. Joenia sempre cumpriu a agenda legislativa nas comissões e no plenário. Não havia quem a substituísse, principalmente nas votações de propostas e reformas. Também participava das reuniões no gabinete, dos eventos virtuais e das muitas entrevistas.

Atender jornalistas e intermediar entrevistas foi, para mim, uma das atribuições gratificantes do mandato, pois, ao mesmo tempo em que exercia minha função, eu também aprendia muito. Quando a pauta era sobre representatividade indígena no Congresso Nacional, esta era uma das frases mais frequentes da deputada: “Posso ser a primeira deputada federal indígena no Brasil, mas não quero ser a única nem a última”. E isso se concretizou nas eleições de 2022, com a eleição de três mulheres indígenas alinhadas à causa: Sonia Guajajara (PSOL-SP), Célia Xakriabá (PSOL-MG) e Juliana Cardoso (PT-SP). Só Juliana ainda não conheço pessoalmente.

Em Brasília, na pandemia de covid-19

Enclausurada em um apartamento, eu acompanhava a situação da pandemia em Roraima e no restante do Brasil. Trabalhava de casa, entre o cuidado para não contrair o coronavírus, o medo pelos que amava e a morte de pessoas próximas. Foram mais de 30 notas de condolências em poucos meses, semanas, dias. A primeira morte foi a do professor Fausto Mandulão, do povo Macuxi, morador da comunidade indígena Tabalascada. Liderança, o professor foi pioneiro na luta em defesa de uma educação escolar indígena específica e diferenciada.

Depois vieram mais mortes, como a de Marcos Braga, professor e diretor do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima, um dos maiores incentivadores do mandato de Joenia. Ficamos órfãs: de carisma, de alegria, de amizade e de luta. Mas as perdas não acabavam, como a da famosa vovó Bernaldina, do povo Macuxi, da comunidade indígena Maturuca, anciã e detentora de saberes tradicionais.

Além de dar amparo e conforto familiar, o mandato precisava ajudar o povo, que sentia o abandono e a falta de assistência aumentar. O cerco ia se fechando em torno dos indígenas. A deputada, então, acionou instituições públicas e entidades parceiras para uma ação urgente. Foram feitas diversas reuniões virtuais para tentar acelerar os processos e fazer com que os órgãos responsáveis, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena e o Ministério da Saúde, agissem rápido.

Diante da lentidão deliberada do governo, iniciamos uma corrida para elaborar e aprovar o Projeto de Lei (PL) 1.142/20, de autoria da deputada Rosa Neide (PT-MT) e com relatoria de Joenia Wapichana. O projeto garantia um Plano Emergencial para Enfrentamento da covid-19 para povos indígenas e tradicionais, buscando assegurar o acesso à água potável e a distribuição de cestas básicas, materiais de higiene e limpeza – itens básicos de sobrevivência. Depois de sua aprovação, o PL foi enviado para sanção presidencial. Jair Bolsonaro vetou 22 itens, entre eles o mais essencial: água potável.

Os vetos produziram revolta, e de novo Bolsonaro foi derrotado. A resposta veio em forma de aprovação da proposta. Nascia a Lei nº 14.021. Na sessão virtual do dia 8 de julho de 2020, a deputada usou o tempo de liderança da Rede, no plenário virtual, para expressar sua indignação com os vetos do extremista de direita: “O presidente retirou do texto da lei inclusive a obrigatoriedade de acesso à água potável, senhoras e senhores. Isso é grave, realmente. Nós estamos lidando com seres humanos, com pessoas que têm os seus direitos protegidos na Constituição, como os demais brasileiros. Nós temos as nossas diferenças culturais, geográficas, étnicas, mas sobretudo há uma necessidade de responder a essa situação de emergência. Não é uma situação ideológica, tampouco de responsabilidade de um partido. Não se trata de esquerda ou direita. Trata-se de proteger vidas”.

‘Desculpa, mas não sou a deputada’

Nos quatro anos em que esteve no Congresso Nacional, Joenia Wapichana teve sua atuação reconhecida pelo prêmio Congresso em Foco, concedido pelo site de notícias, que desde 2006 acompanha o dia a dia dos parlamentares em Brasília. Na primeira premiação, houve uma confusão divertida: desci do Uber vestida de vermelho e logo vi vários fotógrafos se aproximando: “Uma foto, deputada”. E isso mesmo faltando a mim a tradicional franjinha de Joenia. Meio sem graça, tive que ficar repetindo: “Desculpa, mas não sou a deputada”.

Essa confusão aconteceu várias vezes. Sempre pensei que aquele ambiente não era acostumado à presença indígena e só naquele momento começava a reconhecer nossa existência. Nossa percepção, no Parlamento, era de que a maioria ou achava que não existiam mais indígenas ou que todos eram iguais. Tinham a imagem de 1500, na floresta e de tanga, congelada na cabeça. Não nos viam vestidas e na Câmara dos Deputados, como parlamentares e servidoras. Acredito que fizemos a nossa parte para nos fazer existir e também educar os não indígenas.

‘O seu elevador é aquele ali’, apontou a ascensorista

Joenia gosta de contar uma experiência vivida no elevador privativo, destinado a parlamentares. Certo dia, ela foi abordada pela ascensorista, que lhe apontou o elevador de visitantes: “O seu é aquele ali”. Joenia mostrou o broche de deputada, mas a senhora não olhava para ela, apenas dizia que o elevador que ela deveria usar era o público. Joenia insistiu, até que ela finalmente notou o broche.

A ascensorista, então, disse: “Desculpa, deputada. É que geralmente aqui só andam homens”. Joenia respondeu: “A senhora é machista”. A ascensorista rebateu: “Não, deputada. É que as mulheres, geralmente, andam de saltinhos e blazer”. Joenia, sempre afiada, retrucou: “Nossa, a senhora é classista”. Mas a ascensorista não conseguia aceitar: “Aqui só anda gente como a gente”. Abismada, a deputada reafirmou: “A senhora é racista”.

Um pouco de comida para cada filho

Joenia Wapichana atuou incansavelmente na distribuição e na fiscalização de emendas e recursos durante seu mandato. Sua representação em Roraima recebia os pedidos, fazia a análise, e a decisão era coletiva, tomada a partir do debate com lideranças indígenas, instituições públicas e outros agentes. “Dividir o recurso é igual uma mãe que divide um pouco de comida para cada filho”, ela costumava dizer.

Em agosto de 2021, a inauguração da primeira Unidade Básica de Saúde (UBS) na comunidade indígena do Campinho, na Terra Indígena Canauanim, mostrou que é possível ter parlamentares comprometidos com políticas públicas e identificados com a população. A imagem das crianças recebendo Joenia e segurando suas mãos, assim como a emoção no sorriso e no olhar das pessoas, me fez lembrar a minha infância. Mas pelo avesso. Quando eu era menina, em vez de receber representantes indígenas, meu povo recebia políticos sem compromisso e anti-indígenas.

Finalmente, essa realidade foi quebrada. Joenia, nosso exemplo de mudança, era recebida com a parixara (dança tradicional), os cantos, a defumação do maruwai (resina utilizada pelos pajés para proteção) e muita, muita alegria.

Depois de Brasília, a volta para a cruviana

Eu tinha saído da minha comunidade indígena em Roraima, Malacacheta, a 37 quilômetros da capital, Boa Vista, aos 14 anos. Fui viver em Maloca Grande. Depois de anos superando desafios da vida urbana durante minha formação escolar, pude participar de um mandato parlamentar e tive a oportunidade de fazer morada em Brasília. Em 2022, por causa da eleição, deixei os corredores da Câmara dos Deputados e a capital federal para estar perto da cruviana – o vento forte da madrugada – e do lavrado de Roraima, nosso ecossistema único, de vegetação aberta e importante para a conservação da nossa biodiversidade. Voltei a estar junto de parentes indígenas, amigos e apoiadores da causa porque, mais uma vez, era tempo de eleição.

O território de Roraima é 46% indígena – a população, de 79 mil pessoas, inclui dez povos, entre eles os isolados que vivem na Terra Indígena Pirititi, ainda em processo de regularização. Mas Roraima é, também, bolsonarista. Nas eleições de 2022, Bolsonaro ganhou em 14 dos 15 municípios do estado e conseguiu 76% dos votos, a maior votação entre os estados do Brasil. Isso favoreceu a eleição e a reeleição de muitos aliados, entre eles o governador Antonio Denarium. Apenas Uiramutã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, elegeu Luiz Inácio Lula da Silva.

Foram 45 dias de trabalho intenso, mas não atingimos o quociente eleitoral necessário. Em 2018, Joenia obteve 8.491 votos. Em 2022, 11.221. Isso reflete uma eleição limpa, justa, sem alinhamento a políticos com histórico de corrupção e de posições anti-indígenas e antidemocráticas. Mas o desfecho não significou o fim. Pelo contrário. Os processos eleitorais passam, mas a prática política continua. Quem mais sofre o impacto de um exercício político sem compromisso são as comunidades indígenas e a população sem acesso à informação e à formação.

Em seu último discurso na tribuna da Câmara dos Deputados, no dia 21 de dezembro de 2022, ela disse: “Não é uma despedida, mas um até breve, porque a luta continua”. E continuou mesmo, ao se tornar a primeira presidenta indígena da Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Mais uma vez, Joenia Wapichana não anda só.

 

Fonte: Por Mayra Wapichana, em Sumaúma 

 

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