quarta-feira, 24 de julho de 2024

Rodrigo França: A audácia do racismo em uma roda de samba

A noite na Praça Tiradentes parecia encantada. O samba fluía como um rio de alegria, suas ondas de música e dança envolviam a multidão que se reunia para celebrar. A roda de samba do Pede Teresa, ponto de encontro cultural, pulsava com a energia de vozes e instrumentos que ecoavam a ancestralidade e a resistência do povo negro. O ar vibrava com risos, cantos e a percussão envolvente que fazia o chão parecer dançar junto.

No entanto, no meio da celebração, uma sombra de desrespeito se manifestou. Entre os que dançavam e se deixavam levar pela música, um casal, ambos brancos, se destacava. Eles não estavam ali para celebrar, mas para profanar. Em meio à multidão, começaram a imitar gestos e sons de macacos, uma ofensa racista que contrastava brutalmente com o espírito de união e respeito que a roda de samba encarnava.

O homem e a mulher, rindo de forma que seus ecos cortavam o ar da noite, executavam seus movimentos com um desprezo silencioso, mas ensurdecedor. A mulher fingiu tirar algo da cabeça do companheiro e colocar na boca, uma cena que remetia a um racismo visceral, antigo e doloroso. Eles pareciam alheios ao impacto de seus atos, mas suas ações não passaram despercebidas.

Os tambores continuaram, mas o ritmo perdeu a inocência por um momento. Olhares incrédulos e indignados se voltaram para o casal, testemunhando um ato que nenhum dos presentes esperava ver naquele espaço de celebração e resistência. A câmera do telefone da jornalista Jackeline Oliveira capturou o momento, congelando o desrespeito em imagens que mais tarde se espalhariam como fogo pelas redes sociais.

A roda de samba, lugar de encontro e celebração da cultura negra, viu-se manchada por um ato de racismo explícito, relembrando a todos que o racismo não dá descanso, mesmo na hora do descanso.

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Ao perceber o ato racista, os seguranças deveriam ter conduzido o casal diretamente à polícia, possibilitando que a lei fosse aplicada sem hesitação. Esse tipo de ação imediata e resoluta não só interromperia a ofensa, mas também enviaria uma mensagem nítida: o racismo não será tolerado e será tratado como o crime que é.

Naturalizar tal ato é uma traição aos valores de respeito que a roda de samba representa. Permitir que a noite continuasse como se nada tivesse acontecido não só perpetua a violência simbólica, mas também desrespeita todos os presentes, especialmente aqueles que se sentiram diretamente ofendidos e desumanizados. O racismo é crime inafiançável e imprescritível, e não pode ser varrido para debaixo do tapete de uma celebração.

É vital que todos saibam que a roda de samba, espaço de resistência e celebração da cultura negra, não deve permitir que o racismo se perpetue. Precisamos garantir que a indignação se transforme em ação. Qualquer ato de racismo tudo deve parar até que alguma providência (lícita) seja feita. Na escola, no trabalho, no mercado e até mesmo no samba.

<><> Qual o contexto do racismo ao chamar pessoas negras de macaco?

A história de chamar pessoas negras de “macaco” está profundamente enraizada no racismo científico e no colonialismo europeu, que remontam ao século XVIII. Esse insulto desumanizante surgiu da tentativa dos europeus de justificar a escravidão e a colonização, apresentando pessoas negras como inferiores e mais próximas dos animais do que dos seres humanos. Nesse período, surgiram teorias pseudocientíficas que buscavam validar a supremacia branca por meio da biologia.

O conceito de “racismo científico” foi utilizado para criar hierarquias raciais que colocavam pessoas de origem africana no nível mais baixo. Essas teorias desumanizavam pessoas negras, retratando-as como selvagens e associando-as a animais, especialmente macacos, para sugerir uma ligação evolutiva inferior.

Durante o período de escravidão transatlântica, desumanizar pessoas negras era um mecanismo crucial para justificar a brutalidade e a exploração. Os colonizadores europeus usavam essas comparações para negar a humanidade e os direitos dos africanos escravizados, facilitando o tratamento cruel e desumano.

Chamar pessoas negras de “macaco” perpetua a desumanização, um processo que visa retirar a dignidade e a humanidade de um grupo de pessoas. Essa prática reforça estereótipos negativos e cria um ambiente em que a discriminação e a violência são mais facilmente justificadas.

É crucial entender esse contexto histórico para combater efetivamente o racismo.

A necessidade de que este caso não fique na impunidade é fundamental para a manutenção da justiça e do respeito às vítimas do racismo. A sociedade brasileira, marcada por uma longa história de desigualdade racial, não pode permitir que atos de discriminação e desumanização sejam tratados com negligência ou leniência.

Punir os responsáveis por atos racistas é crucial para desencorajar comportamentos semelhantes no futuro. A impunidade envia uma mensagem de tolerância ao racismo, perpetuando um ciclo de discriminação e violência. A aplicação rigorosa da lei mostra que o racismo não será tolerado e que todos são iguais perante a lei.

Caso os criminosos sejam estrangeiros, é essencial que a Polícia Federal e a Polícia Civil trabalhem em conjunto para investigar o caso de maneira completa e eficaz. A cooperação entre essas entidades garante que todos os aspectos legais e diplomáticos sejam considerados, especialmente se os envolvidos retornarem a seus países de origem.

Se confirmado que os criminosos são estrangeiros, um desagravo diplomático (ou uma nota de repúdio) deve ser emitido pelo governo brasileiro, no mínimo. Esse ato formal demonstra a seriedade com que o Brasil trata casos de racismo e exige que os países de origem dos envolvidos tomem medidas apropriadas.

A justiça deve ser feita de acordo com as leis brasileiras, que preveem punições para atos de racismo. A condenação judicial dos responsáveis serve como exemplo de que o sistema jurídico está comprometido com a igualdade e os direitos humanos.

•        Associação defende argentina que imitou macacos em roda de samba

Na manhã desta terça-feira (23), a Associação Orff-Schulwerk Argentina usou as redes sociais para defender a professora de música filmada na última sexta-feira (19) imitando macacos no Centro do Rio, no meio de uma roda de samba.

A mulher é filiada à AAOrff – órgão que se propõe a promover um programa de educação musical baseado nas ideias do compositor alemão Carl Orff –, mas estava no Brasil a convite do Fórum Latino-Americano de Educação Musical. No entendimento da entidade, o que a professora fez não tem conotação racista na Argentina.

O perfil da AAOrff foi inundado de críticas de brasileiros depois do incidente. Os administradores da página desabilitaram os comentários nas postagens.

<><> O que disse a AAOrff

Diante da grande quantidade de mensagens recebidas nas redes sociais relacionadas ao vídeo viralizado recentemente na mídia brasileira, a Associação Orff-Schulwerk Argentina manifesta:

•        Que a Associação Orff-Schulwerk Argentina é uma associação sem fins lucrativos que não possui empregados nem presta serviços.

•        Que a Associação e seus integrantes celebram a diversidade e repudiam categoricamente qualquer ato de racismo ou discriminação.

•        Que a professora implicada na situação é associada à nossa associação há vários anos e participou como expositora em alguns encontros, mostrando sempre uma grande capacidade de trabalho e criatividade.

•        Que a professora foi ao Brasil a convite de outro organismo em caráter pessoal, não em representação da Associação Orff-Schulwerk Argentina.

•        Que na Argentina, no contexto de uma atividade pedagógica, a imitação de animais não tem conotações racistas.

•        Que lamentamos profundamente esta situação, totalmente surpreendente para nós.

•        Que a AAOrff seguirá trabalhando para proporcionar a todos a melhor qualidade de música, com o respeito que todos merecemos.

<><> Polícia busca argentina

Investigadores da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) apuram se a professora de música já deixou o Brasil.

Por estar no Rio de Janeiro para participar do Fórum Latino-americano de Educação Musical, os policiais acreditam que a mulher – que é professora de música e é de Bueno Aires – já tenha voltado para seu país de origem. Entretanto, isso não impediria que ela fosse indiciada futuramente caso comprovasse algum crime.

No final da tarde desta segunda (22), a Decradi encaminhou um ofício ao consulado argentino no Rio pedindo informações sobre a passagem da mulher pelo país. Os investigadores fizeram questionamentos sobre a identidade da suspeita, por quantos duas ela esteve no Rio e onde ficou hospedada.

Após a repercussão, a mulher excluiu suas contas na rede social, assim como o brasileiro que a acompanhava durante o episódio.

Por sua vez, a Polícia Civil já identificou o homem que aparece dançando e imitando macacos junto com a mulher. Ele será intimado e terá que prestar esclarecimentos nos próximos dias.

O caso está sendo investigado como racismo.

<><> Outros argentinos fazendo gestos racistas

Alguns dos seguranças que trabalhavam na roda de samba do Pede Teresa, no dia da dança que está sendo considerada racista, afirmaram aos organizadores que outros argentinos também imitaram macacos na saída do evento.

Esses seriam outros casos de racismo no mesmo local, além do ato flagrado pela jornalista Jackeline Oliveira, que gravou um casal imitando gestos e sons de macacos enquanto músicos se apresentavam no samba.

Segundo o músico e organizador da roda de samba Pede Teresa, Wanderson Luna, os seguranças serão ouvidos na delegacia que investiga o caso de racismo.

"A delegada falou que seria importante o depoimento dos seguranças que viram. A gente foi entrar em contato com os seguranças para tentar entender melhor e pegar mais informações. Eles falaram que havia outros argentinos imitando macacos na saída do evento", relatou Luna.

No vídeo gravado durante o samba é possível ver que o casal flagrado começa a imitar macacos de forma chamativa, no meio de outras pessoas e durante a apresentação dos músicos.

Eles pulam e fazem barulhos como macacos. Em determinado momento, a mulher chega a fingir que cata alguma coisa na cabeça do companheiro e come, imitando mais um gesto comum dos macacos.

O g1 entrou em contato com a embaixada e com o consulado da Argentina no Brasil. No entanto, até a publicação da reportagem os órgãos consulares não haviam respondido aos questionamentos.

 

Fonte: Metrópoles/g1

 

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