Marcelo Zero: ‘Não há soberania e
democracia sem o controle nacional das redes de informação e comunicação’
O recente caos criado
por uma mera falha na atualização no software
de uma única empresa de cibersegurança que presta serviços à
gigante Microsoft demonstra a grande fragilidade de uma economia e de um mundo
extremamente dependente das tecnologias de informação e comunicação.
O problema,
entretanto, não está nas tecnologias em si mesmas, mas na enorme concentração
desse domínio tecnológico em pouquíssimas empresas, principalmente as de origem
estadunidense.
Isso cria problemas
econômicos e políticos muito sérios, que afetam diretamente, e de forma
multidimensional, a soberania nacional e as democracias.
A internet e as poucas
empresas que a dominam tornaram-se o oposto daquilo que fora imaginado no
início da popularização da rede mundial de computadores.
Com efeito, na década
de 1990, o boom da internet nos países mais desenvolvidos, notadamente nos EUA,
suscitou a falsa esperança de que a rede mundial de computadores, um espaço em
tese neutro e democrático, propiciaria a todos os cidadãos oportunidades únicas
e homogêneas para informa-se, formar-se e cooperar ativamente, de forma
horizontal.
São dessa época,
note-se, os principais escritos de Manuel Castells sobre a sociedade em redes,
em tese não hierarquizadas e mais democráticas.
Não obstante, com o
passar do tempo foi ficando claro, para outros pensadores da rede e do mundo
digital, que a internet está muito longe de ser um espaço efetivamente livre e
democrático.
Obras como “Who
Controls The Internet?” de Tim Wu e Jack Goldsmith, “The Net Delusion”, de
Evgeny Morosov e, sobretudo, “The Digital Disconnect: How Capitalism is Turning
The Internet Against Democracy”, de Robert McChesney, começaram a compor uma
visão mais realista e mais sombria da internet e de suas redes.
Essa última obra, em
particular, demonstra como o mundo da internet é dominado pelos interesses de
grandes companhias, principalmente estadunidenses, que efetivamente moldam e
dominam a rede mundial de computadores.
Essas grandes
companhias, com suas tecnologias proprietárias e seu imenso poder de produzir e
controlar informações, poder agora “turbinado” pela inteligência
artificial, transformam a internet numa grande plataforma de afirmação
crescente de seus interesses próprios e particulares, em detrimento do
interesse público e das democracias.
O X de Elon Musk, que
se recusou a obedecer às decisões judiciais do Brasil, é exemplo bem-acabado
dessa crescente ameaça.
Mas não se trata
somente de interesses comerciais e econômicos. Há também os interesses
políticos.
As denúncias de Edward
Snowden revelaram ao mundo que as grandes companhias que controlam o fluxo de
informações da internet, como Google, Microsoft, Apple, Meta, Yahoo etc.
contribuíam ativamente, através do sistema de espionagem PRISM, controlado pela
NSA norte-americana, para transformar a internet numa gigantesca plataforma de
controle político.
Nenhum cidadão do
mundo que esteja conectado à rede está livre desse sistema ubíquo e bastante
invasivo de espionagem, que devassa e-mails, ligações telefônicas, mensagens de
texto, arquivos e postagens nas redes sociais. Tudo isso, diga-se de passagem, é
feito ao abrigo das leis norte-americanas, principalmente do Patriot
Act, e, como o grosso do fluxo de informações da internet passa por
servidores que estão nos EUA, torna-se praticamente impossível contestar
juridicamente essas atividades.
As denúncias de
Snowden também revelaram que os fluxos internacionais de informações da rede
mundial não apenas são devassados, mas também manipulados. Frise-se que não há
algoritmos inteiramente neutros. Todos têm intencionalidade e são produtos
humanos.
O domínio
econômico-político da internet e das redes sociais por parte dos EUA e suas
empresas pode resultar facilmente em ataques “ciberpolíticos” contra países,
governos, empresas e indivíduos.
A “primavera árabe”, a
“Praça Maidan”, as manifestações de 2013, no Brasil, entre vários outros
fenômenos políticos aparentemente “espontâneos”, tiveram, sem dúvida, o dedo
político de agências de inteligência dos EUA.
Justiça seja feita,
após as denúncias de Snowden, Obama, muito pressionado pelo escândalo mundial,
tentou rever alguns processos e normas.
Criou, em agosto de
2013, o Review Group on Intelligence and Communications
Technologies especificamente tal finalidade.
Disso, resultou
o USA Freedom Act, que modificou e substituiu cláusulas do Patriot
Act.
A nova lei impôs
alguns limites à recolha em massa de metadados de telecomunicações sobre
cidadãos dos EUA pelas agências de inteligência americanas, incluindo a NSA.
Mas, por outro lado, restaurou a autorização para escutas telefônicas e o
rastreamento de terroristas “lobos solitários”.
Na prática, ficou tudo
praticamente igual, especialmente para estrangeiros, que não gozam da proteção
leis norte-americanas concernentes ao direito à privacidade. Os novos limites e
regras sobre o colhimento de metadados aplicam-se às interceptações de comunicações
estadunidenses.
Ademais, surgiram
novos sistemas e programas tecnológicos de espionagem massiva.
De acordo com o
Washington Post, o programa MUSCULAR, muito menos conhecido, que explora
diretamente os dados não criptografados dentro das nuvens privadas do Google e
do Yahoo, coleta mais que o dobro de pontos de dados, em comparação com o
PRISM. Como as nuvens do Google e do Yahoo abrangem todo o globo e como a
captação é feita fora dos Estados Unidos, ao contrário do PRISM, o
programa MUSCULAR não exige garantias e controles jurídicos.
Todo esse cenário
indica a mais premente necessidade de o Brasil se preparar para diminuir sua
dependência em relação às bigtechs. Ao mesmo tempo, precisamos
criar um sistema de defesa cibernética que seja realmente robusto e abrangente.
Atualmente, nossa
defesa cibernética é feita pelo Exército, sob o controle do Comando de Defesa
Cibernética (ComDCiber), sediado em Brasília (DF). Mas isso não é suficiente,
pois esta defesa está muito centrada na área militar.
O Senado criou uma
Subcomissão permanente de Defesa Cibernética, no âmbito da Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional. Na primeira audiência pública feita nessa
subcomissão, sugeriu-se que o Brasil tenha uma agência estatal civil que cuide
do assunto. Poderá ser um passo importante.
O fato é que, hoje em
dia, estamos extremamente vulneráveis. Em todos os sentidos.
Em especial, no campo
democrático. Acordemos.
¨ Apagão digital. Por Sérgio Amadeu
A sociologia da
modernidade produziu um conjunto de reflexões que precisam ser aprofundadas,
principalmente nestes tempos de espraiamento das ondas reacionárias que
convivem e se alimentam da ascensão de tecnologias que se propõe mediadoras de
todas as atividades humanas. O sociólogo Ulrich Beck em Sociedade do
risco, publicado na Alemanha em 1986, alertava que os riscos e as
incertezas haviam se tornado centrais nas sociedades modernas embaladas pelo
progresso tecnológico e industrial.
Ulrich Beck já
apontava que tais riscos seriam cada vez mais invisíveis e sua percepção seria
conformada pelas instituições científicas e pela mídia. A dinâmica do risco
seria incorporada e a busca constante por responsáveis e culpados pelos
desastres nos conduziria para certa política sustentada pela gestão de riscos.
A percepção de Ulrich
Beck não poderia ser mais realista, uma vez que as tecnologias digitais
dominaram a economia e grandes empresas que as controlam e comandam o seu
desenvolvimento impuseram um estilo de gestão de riscos. O filósofo Yuk Hui
abriu seu texto Algorithmic catastrophe – the revenge of contingency,
de 2020, as catástrofes tecnológicas não são simplemente falhas materiais, mas
são falhas da razão. Inspirando-se em Paul Virilio, Yuk Hui pensa os sistemas
tecnológicos contemporâneos como portadores de catástrofes e de técnicas de
mitigação das próprias tragédias que suas dinâmicas e finalidades geram.
As catástrofes são
inevitáveis pela própria natureza das tecnologias de automação e automatização.
Nossos sistemas caminham para o uso crescente de soluções de inteligência
maquínica baseadas em estatística e probabilidade convertidos em sistemas
algorítmicos que operam a partir de um gigantesco poder computacional gerando
modelos que são utilizados para automatizar atividades e o risco das mesmas.
Norbert Wiener, no
texto Some moral and technical consequences of automation, publicado
em maio de 1960 na revista Science, declarou que se as máquinas
poderiam desenvolver estratégias imprevistas, uma vez que portavam algoritmos
de aprendizado o que nem sempre poderia ser compreendido e acompanhado por seus
programadores.
O que aconteceu no dia
18 e 19 de julho de 2024 é exemplo de uma catástrofe algorítmica. O sistema de
gestão de risco, mais precisamente de mitigação de ataques cibernéticos falhou.
Uma incorreção na atualização de software da empresa de segurança cibernética
CrowdStrike que é aplicada no sistema operacional da Microsoft gerou o que a
imprensa mundial nomeou de apagão cibernético ou digital. Uma mensagem da
Microsoft no antigo Twitter, atual X, dizia: “Estamos cientes de um problema
com os PCs em nuvem do Windows 365 causado por uma atualização recente do
software CrowdStrike Falcon Sensor”.
Todo sistema digital
incorpora de alguma forma a tentativa de detecção e de contenção de erro,
falha, ataque, ou seja, de riscos e incidentes. Por isso, existem outros
sistemas algorítmicos que atuam o tempo todo para analisar falhas, erros e
ataques. Antivírus são um exemplo de atuação preventiva para proteger um
sistema de envio de arquivos maliciosos que podem destruir informações e até
encriptar base de dados para a obtenção de resgate pelos criminosos que
detenham a chave para decifrar as informações. Curiosamente, o problema
ocorrido e chamado de “apagão” se deu quando o sistema de proteção ou de
prevenção de ataques acabou promovendo um ataque ao sistema de deveria
defender.
Anthony Giddens e
Ulrich Beck escreveram que na modernidade tardia, os riscos são, em grande
parte, produzidos pela própria sociedade, principalmente pela tecnologia,
industrialização e globalização. Todavia já estamos há muito tempo na
modernidade tardia, estamos em um sistema capitalista em putrefação. O sonho do
capitalista é distópico e busca substituir ao extremo o trabalho humano pelos
sistemas automatizados com o objetivo de reduzir custos e aumentar a qualidade
e a precisão dos serviços e produtos com a elevação da produtividade.
Assim, no capitalismo
contemporâneo as grandes empresas de tecnologia avançam na coleta incessante de
dados para aprimorar a extração de padrões dos processos humanos, sociais e
maquínicos. Mas, esse sonho tem consequências sociotécnicas não previsíveis e
não controláveis.
É importante destacar
aqui que os riscos se amalgamam com objetivos que os ampliam, entre os quais,
está a busca pelo domínio do mercado promovida pelos oligopólios digitais, as
chamadas Big Techs. Já na primeira década do século XXI, o modelo de negócios
baseado na chamada computação em nuvem se alastrou acelerando a concentração de
poder computacional, de armazenamento de dados, e consequentemente, ampliando a
concentração econômica.
Como é o negócio de
nuvem? O que significa a frase “meus dados estão na nuvem”? Nuvem é uma
metáfora para o negócio de armazenamento e processamento de dados e sistemas
que estão localizados em data centers que são acessados
remotamente pela internet. Como diz a piada “nuvem é o computador dos outros”.
Algumas poucas
empresas se especializaram e acabaram dominando o negócio de provimento de
nuvem. A Amazon Web Server e a Microsoft Azure, em 2021, detinham 60% do
mercado mundial de nuvem que ofereciam a infraestrutura como serviço. O que
isso quer dizer. Que diversas empresas, instituições, governos substituíram
suas próprias infraestruturas de processamento e armazenamento de dados locais
por contratos para que a Amazon e a Microsoft “cuidassem” e “alugassem” espaço
de armazenamento de dados e serviços computacionais.
Os custos de
contratação da nuvem para as empresas e governos eram convidativos. Isso levou
a um crescimento gigantesco desse mercado. A consequência foi mais concentração
econômica.
Segundo o Gartner
Group, a concentração no mercado de Infraestrutura de nuvem como serviço (IaaS)
era a seguinte em 2023: a Amazon detinha 39%, a Microsoft 23 %, o Google 8,2%,
o Alibaba 7,9%, a Huawei 4,3%. Essas cinco empresas dominavam 82,4% do mercado
global de nuvem. Além disso, esse cenário está se agravando devido ao
treinamento dos grandes modelos de linguagem, o LLMs, que necessitam de muitos
computadores disponíveis com altíssima capacidade de processamento ou poder
computacional. Portanto, a Inteligência Artificial Generativa baseada na
extração de padrões de grande quantidade de dados está contribuindo para a
concentração de poder computacional que implica em poder econômico.
No dia do apagão,
muitas empresas foram acessar seus aplicativos e sistemas na nuvem da Microsoft
e deram de cara com a famosa tela azul, ou seja, o sistema operacional não
conseguia funcionar. Muitas pessoas que tinham o Microsoft 365 também tiveram o
acesso aos seus arquivos bloqueados. O Microsoft 365 é como um serviço de
assinatura que dá aos usuários o acesso ao pacote Office e demais serviços pela
internet, em vez de instalá-los localmente em suas próprias máquinas.
Isso significa que os
dados e arquivos dos usuários são armazenados na nuvem da Microsoft, permitindo
que eles acessem seus documentos e informações de qualquer lugar com uma
conexão à internet. Exceto quando a própria empresa que oferece o serviço tenha
uma falha, um ataque ou promova um bloqueio, intencional ou não.
O apagão demonstrou o
poder gigantesco que possui um mediador das relações digitais e um operador de
tratamento de dados como a Microsoft. Sem dúvida, a falha não intencional gerou
o apagão. Mas, fica evidente que a Microsoft tem o poder de bloquear o acesso
de empresas e instituições a seus próprios dados localizados nos seus data
centers, bem distante da nossa jurisdição e de nossa capacidade de acesso
físico.
Temos aí um problema
de soberania digital. Os dirigentes do Estado brasileiro precisam avaliar os
riscos de continuar hospedando seus dados estratégicos e usando softwares de
uso cotidiano em infraestruturas fora do nosso país. Nossas universidades precisam
debater se não seria fundamental manter os dados de sua comunicação e de suas
pesquisas em infraestruturas instaladas em nosso país, em nossa jurisdição e
submetidas aos nossos comitês de ética. A autonomia necessária ao
desenvolvimento cada vez mais passa pela soberania digital.
Fonte: Brasil 247/A
Terra é Redonda
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