Drogas e “subversão” na ditadura militar
Em 11 de novembro de
1970, o general Emílio Garrastazu Médici, então presidente do Brasil por meio
dos processos da ditadura militar, recebeu no Palácio do Planalto uma comitiva
de estudantes das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo. Entre perguntas
sobre futebol e entrega de presentes, o general foi informado de que a
universidade estava preparando “um simpósio sobre os problemas do tóxico”. Foi
a deixa para que Médici manifestasse a preocupação do seu governo com essa
questão: “Não se trata apenas de combater o tráfico de entorpecentes. Antes de
mais nada, é preciso acabar com o vício. E esta não será uma tarefa fácil”.
Seguiu-se o silêncio e
o grupo logo mudou de assunto. Mas estavam dados os delineamentos de como a
ditadura militar entendia o uso de drogas, percebido como uma mancha social
característica de pobres e jovens. É a partir da repressão a esses grupos sociais
que o regime combatia as drogas e, ainda, uma contracultura, como sugere uma
pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PGSocio) da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Com base em 51
matérias jornalísticas da Folha de São Paulo publicadas entre abril de 1964 e
março de 1985, o pesquisador Júlio César Rigoni Filho procurou entender quais
foram as representações sociais sobre o uso de drogas e a política pública do
tema. Dessa forma, foi traçada uma dinâmica que mostra como a política de
criminalização se somou a uma visão do uso de drogas como patologia também
tratável com segregação social.
Essa ordem das coisas
tinha focos específicos, sendo um deles a juventude — para usar uma expressão
do general Médici — e ambientes onde ela se reunia, especialmente os de
educação (escolas e universidades). Segundo Rigoni Filho, durante a ditadura a
repressão às drogas parece ter contribuído com a repressão à “subversão” para
justificar ainda mais a presença do governo nos espaços universitários.
“Em relação às
universidades havia uma lógica de vigilância, muitas vezes apoiada pelas
próprias instituições, a fim de combater o comunismo e ideias que desviassem os
jovens. Os jovens dessa juventude burguesa eram considerados potenciais
subversivos e mereciam atenção para não serem corrompidos”, diz o pesquisador à
Ciência UFPR.
Durante a ditadura, o
ensino superior era mais excludente no Brasil, portanto os espaços acadêmicos
eram território das classes mais altas. As drogas foram apresentadas pelos
governos da época como uma das ameaças a serem combatidas nesses espaços,
juntamente com as ideias políticas “antagônicas” que já estavam criminalizadas
pelas diversas versões da Lei de Segurança Nacional (LSN).
Política de drogas
como proteção à segurança nacional
A pesquisa sugere que
a mídia ajudou a reforçar a relevância dessa postura. No caso da Folha, o uso
de drogas era mostrado como um tipo de subversão que leva à queda moral e
social do indivíduo, que passa a se aproximar de condutas inadequadas como
crimes e prostituição, tornando-se assim um inimigo do Brasil.
“A Folha destacava
muitos casos de jovens de classe média que se envolviam com drogas, sejam
usuários ou potenciais criminosos. Então, as discussões sobre drogas pareciam
ser pouco baseadas em evidências concretas e mais opiniões difusas que, muitas
vezes, geravam pânico e acendiam a opinião pública”, diz Rigoni Filho.
As representações
sociais do usuário de drogas nas páginas do jornal os apresentavam como
criminoso, sendo ele traficante originário da pobreza e responsável por uma
diversidade de outros crimes; ou doente que compromete a vida em sociedade,
logo deve se afastar dela para ser curado.
Havia, então, três
tipos de sujeito da cobertura jornalística de drogas. O sujeito criminoso, um
“terrorista” que trafica e faz parte de atos de vandalismo e violência, foi
identificado em assassinatos de repercussão da época, como o da menina Ana
Lídia e o da jovem Cláudia Lessin. Esse perfil explica a “ação criminógena”,
indutora de crimes, do uso de drogas.
O sujeito dependente,
em geral estudante, é o que não sabe tomar decisões de vida por si mesmo, tem
uma personalidade deformada. Por isso, precisa de ajuda médica. Esse padrão foi
reforçado pelos especialistas ouvidos na CPI dos Tóxicos, de 1974. É da década
de 1970 a história de Canto dos Malditos, o livro em que o autor, Austregésilo
Carrano Bueno, narra o seu aprisionamento em hospícios pelo próprio pai por
causa de alguns cigarros de maconha — história que baseou o filme Bicho de Sete
Cabeças.
“Além de manicômios,
havia clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas, muitas das quais
financiadas pelo governo, que retiravam o indivíduo do convívio social”,
explica Marisete Hoffmann Horochovski, professora especialista em sociologia da
saúde que orientou a pesquisa no PGSocio.
Todos esses sujeitos,
porém, estão suscetíveis a ser um sujeito prisioneiro, aquele que é torturado
nas delegacias ou morto em confronto com a polícia. Assim, fica registrada no
estudo uma intenção do status quo da ditadura em justificar prisões e torturas
— violações de direitos humanos em geral — como política antidrogas.
<><> Da
contracultura à “subversão”
A pesquisa também
registra como termos usados na cobertura de temas de drogas da época —
toxicômano, viciado, drogado, etc. —, hoje pouco usuais na mídia, serviam para
qualificar “subversivos”, a expressão que cabia aos considerados inimigos do
governo.
Um exemplo: ao
publicar uma lista de procurados pela polícia em 1972, a Folha destacou sobre
um deles, abaixo de informações como codinome e atos ilícitos a ele imputados,
a explicação “é toxicômano: fuma maconha”. Dessa forma, o jornal procurava
orientar a população no que prestar atenção ao delatar os foragidos.
Trata-se de um indício
de que o discurso da repressão às drogas se uniu ao discurso anticomunista nas
páginas de jornal. Assim foi feita a escolha de parte da mídia, aí incluída a
Folha, de em regra ignorar a expressão do uso de drogas como uma prática da
contracultura que questionava as estruturas capitalistas, o que estava no cerne
de movimentos como o hippie e o punk.
“No Brasil, foi mais
cômodo associar e reduzir o uso de drogas à influência do comunismo, prova
disso é que, inicialmente, as práticas da contracultura foram chamadas de
desbunde, termo pejorativo utilizado pelos grupos de esquerda e que se refere
aos sujeitos que valorizam os interesses e sentimentos pessoais em detrimento
da organização e da opção pela revolução socialista”, avalia Rigoni Filho.
No entender do
pesquisador, essa interligação de significados — drogas e subversão — explica a
lógica de uma política de repressão que deixou herança.
“O principal, em minha
opinião, é a lógica da suspeição que a ditadura fez emergir na sociedade
brasileira, todos eram suspeitos, até que se provasse o contrário. Ou seja, já
havia uma condenação prévia de certos grupos sociais e sujeitos, marginalizados
e pertencentes às classes mais pobres, ou jovens desviados. Isso mescla as
figuras do traficante e do usuário, sendo que o ‘viciado’ torna-se um
traficante para sustentar seu vício”.
Fonte: Por Thiago
Fedacz e Camille Bropp, no Ciência UFPR
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