quarta-feira, 26 de junho de 2024

LIBERDADE DE IMPRENSA: Julian Assange, um homem livre

O caso Assange se arrasta há 14 anos, tendo adquirido uma dimensão política e jurídica que vai muito além dos documentos secretos publicados em sua plataforma, Wikileaks. A seguir, um resumo de sua trajetória.

·        De hacker a jornalista premiado

Julian Assange nasceu em 3 de julho de 1971 em Townsville, Queensland, Austrália. Cedo ele se interessou por informática e aprendeu a programar. Nos anos 90, fez nome no meio dos hackers australianos, e em 1996 foi processado por cometer ciberataques. O juiz o condenou, porém lhe atestando "curiosidade intelectual".

Em 2006, fundou a plataforma online Wikileaks, que em seu website se define como "Wiki incensurável para publicação e análise em massa de documentos, sem que sua origem seja identificável": "Nosso objetivo principal é expor regimes opressivos na Ásia, antiga União Soviética, África Subsaariana e Oriente Médio, mas também contamos ser uma ferramenta útil a quem, em qualquer parte do mundo, deseje revelar comportamento antiético em seus governos e empresas."

E, de fato, o Wikileaks revelou numerosos documentos denunciando atividades ilegais de governos e empresas. Em 2009, Assange recebeu o Amnesty International Media Award por seu trabalho, e a ele seguiram-se diversos outros prêmios.

·        "Assassinato colateral"

Em abril de 2010, o Wikileaks publicou um vídeo intitulado Collateral murder (Assassinato colateral). A tomada é a partir de um helicóptero de combate das Forças Armadas dos Estados Unidos, em Bagdá, em 2007, durante a guerra no Iraque. Vê-se civis sendo circundados e por fim alvejados a partir do veículo. Entre as vítimas estão dois jornalistas da agência de notícias Reuters. Os soldados haviam confundido com uma arma a câmera que um deles levava consigo.

Além desse vídeo, a plataforma de revelações divulgou no mesmo ano centenas de milhares de documentos militares secretos, relativos às guerras no Iraque e no Afeganistão. Como afirmou Assange numa entrevista à imprensa em Londres, eles provam "claros crimes de guerra".

A fonte era Chelsea Manning, que, na época, ainda Bradley, de sexo masculino, trabalhava como analista de dados das Forças Armadas americanas. Mais tarde ela foi condenada a 35 anos de prisão por espionagem e traição, mas perdoada pelo presidente Barack Obama, então em fim de mandato.

As revelações são extremamente incômodas para o governo americano, pois mostraram ao mundo um lado sangrento do procedimento de seus militares, em que crimes de guerra são acobertados, e o número de vitimas civis é muito maior do que nos dados maquiados do Pentágono.

Washington criticou Assange com rigor: como chefe do Wikileaks, ele teria posto vidas em perigo ao revelar segredos de Estado. De fato: inicialmente os documentos não estavam anonimizados. Na época vice-presidente, Joe Biden o classifica como "terrorista high tech".

À parte as críticas, de início nada acontece. Assange é um cidadão australiano, mora em Londres e conquistara o status de jornalista investigativo. Aparentemente o governo Obama era da opinião que uma persecução judicial poderia ser entendida como um sinal de que também jornalistas de outros meios poderiam ser processados por divulgar informações sensíveis.

·        Acusações de delitos sexuais

Paralelamente às ocorrências relativas ao Wikileaks, vem à tona que duas suecas acusaram Assange de as molestar sexualmente. Mais tarde a acusação passa a ser de estupro. O Ministério Público de Estocolmo expede um mandado de prisão e exige a extradição do Reino Unido. Em 2010, Assange é preso em Londres, mas nega as imputações e é liberado sob fiança.

Começa um cabo-de-guerra político. Quando, em 2012, a Suprema Corte do Reino Unido, em Londres, defere o pedido de extradição para a Suécia, Assange se refugia na embaixada do Equador, onde obtém asilo político.

Em 2015 as autoridades suecas abandonam o inquérito, pois as acusações haviam se reduzido a assédio e coerção sexual e haviam prescrito. Ainda assim, o jornalista australiano permanece na embaixada, tendo adquirido a cidadania equatoriana.

·        Liberdade de imprensa sob ameaça

Em junho de 2016, durante a campanha presidencial de Hillary Clinton e Donald Trump, os "Clinton e-mails" apareceram no Wikileaks, revelando que, durante o mandato de secretária de Estado, ela utilizara um servidor privado para comunicações oficiais, em vez das contas do Departamento de Estado. O caso é considerado um dos motivos por que a candidata democrata perdeu para Trump.

Embora o novo presidente republicano elogiasse a plataforma por suas revelações, o Departamento retoma o inquérito de 2010 contra Assange, acusando-o de conspiração, junto com Chelsea Manning, para hackear computadores do Pentágono. Além disso, há 17 outras acusações envolvendo espionagem e quebra de sigilo.

Ao todo, Assange estava ameaçado com uma pena de até 175 anos de prisão. Os EUA solicitaram ao Reino Unido sua extradição, ao mesmo tempo que tentaram anular o status de jornalista do australiano: como divulgara grandes volumes de dados sem contextualizar, ele não passaria de um hacker.

Organizações conceituadas de direitos humanos, civis e de jornalismo, desde a Anistia Internacional à Repórteres Sem Fronteiras, passando pelo Committee to Protect Journalists (CPJ), se engajam por Assange, argumentando que uma democracia viva deve poder resistir a revelações como as do Wikileaks.

Em declaração conjunta, a Federation of Journalists (IFJ) e a European Federation of Journalists (EFJ) advertem que essa persecução ameaça a liberdade de imprensa em todo o mundo. A presidente da EFJ, Maja Sever, comenta: "Jornalistas e seus sindicatos reconheceram, desde o princípio, que Julian Assange havia entrado na mira por cumprir tarefas que fazem parte do trabalho diário de muitos jornalistas: encontrar um whistleblower e desvendar criminalidade."

·        Prisão e libertação

Em 2019, Quito retirou o asilo político e a cidadania equatoriana de Assange e o entregou à polícia britânica. As autoridades britânicas o acusaram de ter violado os termos de fiança ao fugir para a embaixada, sentenciando-o a 50 semanas de prisão no presídio de alta segurança de Belmarsh.

Começou um novo cabo-de-guerra pela extradição do jornalista, desta vez para os EUA, combatido repetidamente com argumentos jurídicos. Em 2024, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos parecia ser sua última chance.

Em 24 de junho, após cinco anos preso em Londres, Julian Assange, agora com 52 anos, foi surpreendentemente libertado. Ele fechara um acordo com a Justiça americana: perante um tribunal das Ilhas Marianas do Norte, um território americano não incorporado no Oceano Pacífico, vai se declarar em parte culpado, sendo condenado aos cinco anos que já cumprira na Inglaterra. Em troca, ficará livre de outras penas e poderá retornar a seu país natal, Austrália.

 

¨      O que se sabe de acordo com os EUA que livrou fundador do WiKileaks da prisão

O ativista Julian Assange, fundador do site WikiLeaks, deixou a prisão no Reino Unido na noite de segunda-feira (24/6) após fazer um acordo com a Justiça dos Estados Unidos — ele concordou em se declarar culpado de uma acusação de espionagem em troca da liberdade.

Assange, de 52 anos, foi acusado de conspiração para obter e divulgar informações de defesa nacional, depois que o site Wikileaks publicou arquivos militares americanos considerados secretos.

Ele passou os últimos cinco anos em uma prisão britânica, de onde lutava contra a extradição para os Estados Unidos.

O avião de Assange, que deixou Londres na segunda-feira, pousou em Bangkok, capital da Tailândia, na manhã desta terça (25/6) para reabastecer, antes de seguir com destino às Ilhas Marianas do Norte, um território dos EUA no Pacífico, onde o acordo judicial vai ser finalizado.

A expectativa é de que Assange compareça nesta quarta-feira (26/6) perante um juiz em Saipan, capital das Ilhas Marianas do Norte, onde vai se declarar culpado

Pelos termos do acordo, o ativista não ficaria em nenhum momento sob custódia americana, e não teria que cumprir pena de prisão porque o Departamento de Justiça dos EUA vai levar em consideração o tempo que ele já cumpriu no Reino Unido.

Se tudo correr conforme planejado, Assange vai voltar então à Austrália , seu país natal, onde sua esposa e filhos aguardam sua chegada.

<><> O que se sabe do acordo com os EUA

De acordo com a Justiça britânica, o acordo do ativista com os Estados Unidos foi assinado há seis dias. Ele foi liberado sob fiança para viajar até o "Tribunal Distrital dos EUA em Saipan, nos termos de um acordo de confissão assinado pelas partes em 19 de junho de 2024", informa um comunicado do Tribunal Superior de Justiça.

O documento diz ainda que o acordo prevê a "confissão de culpa de uma das acusações, com uma proposta de sentença de pena já cumprida."

"Está previsto que a declaração de culpa seja apresentada e aceita nesta quarta-feira, 26 de junho de 2024, após a qual os Estados Unidos se comprometeram a retirar o pedido de extradição", acrescenta o texto.

A mulher do ativista, Stella Assange, disse à BBC que está "exultante", mas que o acordo, muitas vezes, pareceu "incerto".

"Até as últimas 24 horas, não tínhamos certeza se isso estava realmente acontecendo", diz ela.

Ela compartilhou os detalhes do voo do marido nas redes sociais — pedindo às pessoas que monitorem de perto o trajeto da Tailândia até as Ilhas Marianas do Norte.

"Precisamos que todos estejam de olho no voo, caso algo dê errado", afirmou.

À BBC, ela enfatizou que não poderia dizer muita coisa antes de o marido comparecer perante o tribunal nas Ilhas Marianas do Norte, já que "só quando o juiz aprovar, vai ser oficialmente real".

"O acordo em si vai se tornar público, e acho que é um acordo muito interessante", ela afirmou.

Segundo ela, Assange será um "homem livre" assim que o acordo for aprovado.

"O importante aqui é que o acordo envolveu o tempo de pena cumprido na prisão — se ele assinasse, poderia sair em liberdade. Ele será um homem livre assim que o acordo for aprovado pelo juiz, e isso vai acontecer amanhã (quarta-feira)."

Já o ex-vice-presidente dos EUA, Mike Pence, criticou fortemente o acordo fechado com Assange, classificando como um "erro judicial".

Na opinião dele, o ativista deveria ter "sido processado até a última instância".

Em uma postagem no X (antigo Twitter), ele afirmou: "Não deveria haver acordos judiciais para evitar a prisão de alguém que coloca em risco a... segurança nacional dos Estados Unidos. Nunca."

<><> Quem é Julian Assange

Assange ganhou reputação na Austrália como programador quando era adolescente.

Em 1995, ele foi multado por crimes cibernéticos em um tribunal da Austrália, e só evitou a pena de prisão porque prometeu não cometer a infrações novamente.

Em 2006, Assange fundou o WikiLeaks. O projeto afirma ter publicado mais de dez milhões de documentos, incluindo muitos relatórios oficiais confidenciais relacionados a guerras, espionagem e corrupção.

Em 2010, o WikiLeaks divulgou um vídeo de um helicóptero militar dos EUA que mostrava 18 civis sendo mortos na capital do Iraque, Bagdá.

Também publicou milhares de documentos confidenciais fornecidos Chelsea Manning, ex-analista de inteligência do Exército dos EUA.

Esses arquivos indicavam que os militares dos EUA tinham matado centenas de civis em incidentes não relatados oficialmente durante a guerra no Afeganistão.

<><> Como o governo dos EUA reagiu ao WikiLeaks?

Em 2019, o Departamento de Justiça dos EUA descreveu os vazamentos do WikiLeaks como "um dos maiores vazamentos de informações confidenciais na história dos Estados Unidos".

Os advogados das autoridades americanas afirmaram que a publicação da informação colocou indivíduos identificados no Afeganistão e no Iraque em "risco de danos graves, tortura ou mesmo morte".

Assange insistiu que os arquivos expunham abusos graves por parte das forças armadas dos EUA e que o processo contra ele tinha motivação política.

Ele foi acusado por 18 crimes, como conspirar para invadir bancos de dados militares com o objetivo de conseguir informações confidenciais.

As autoridades dos EUA iniciaram um processo de extradição para levar Assange ao país.

Se for condenado, seus advogados dizem que ele pode pegar até 175 anos de prisão. No entanto, o governo dos EUA afirma que uma sentença entre quatro e seis anos é mais provável.

<><> Por que Assange não foi enviado aos EUA?

O pedido de extradição dos EUA é de 2019, e foi concedido após uma série de audiências judiciais, mas Assange passou vários anos lutando para anular a decisão.

Ele foi enviado para a prisão de alta segurança de Belmarsh, em Londres, em 2019, e lá foi mantido até agora enquanto o caso de extradição dos EUA avançava na Justiça.

Em 2021, o Tribunal Superior da Inglaterra decidiu que ele deveria ser extraditado, rejeitando as alegações de que a sua saúde mental precária significava que ele poderia se suicidar em uma prisão dos EUA.

Em 2022, o tribunal manteve essa decisão, e a então secretária do Interior, Priti Patel, confirmou a ordem de extradição.

Em fevereiro deste ano, o Tribunal Superior validou o pedido de extradição.

<><> Por que Assange morava na embaixada do Equador?

As autoridades suecas emitiram um mandado de prisão contra Assange em 2010, acusando o ativista de abusar sexualmente de uma mulher e de molestar outra enquanto estava no país.

Ele negou os crimes, afirmando que as acusações eram "infundadas".

A Suécia também pediu ao Reino Unido a extradição de Assange, que foi detido preventivamente sob fiança.

Seguiram-se dois anos de batalhas legais, mas em 2012, o Supremo Tribunal do Reino Unido decidiu que ele deveria ser extraditado para a Suécia para interrogatório.

No entanto, ele procurou asilo político na embaixada do Equador. A concessão foi concedida pelo então presidente do país, Rafael Correa, que apoiava o Wikileaks.

Assange passou sete anos na embaixada e era regularmente visitado por celebridades, incluindo a cantora Lady Gaga e a atriz Pamela Anderson.

Em abril de 2019, o então novo presidente do Equador, Lenin Moreno, ordenou que Assange deixasse a embaixada devido ao seu "comportamento descortês e agressivo", reclamações sobre a sua higiene pessoal e suspeitas de que estava acessando documentos de segurança da embaixada.

Assange foi detido dentro da embaixada pela polícia britânica e depois julgado por não se submeter aos tribunais para ser extraditado para a Suécia, o que constituiu uma violação das condições da sua fiança.

Ele foi condenado a 50 semanas de prisão.

Em novembro de 2019, as autoridades suecas desistiram do processo contra Assange porque os supostos crimes teriam prescrito.

<><> Vida de hacker

Assange normalmente evita falar sobre seu passado, mas o interesse da mídia desde o surgimento do WikiLeaks trouxe algumas ideias sobre as influências que teve.

Ele nasceu em Townsville, no Estado australiano de Queensland, em 1971, e teve uma infância sem raízes enquanto seus pais dirigiam um teatro itinerante.

Ele foi pai aos 18 anos e não demorou a enfrentar batalhas jurídicas pela guarda da criança.

Já no desenvolvimento da internet, o australiano viu a chance de usar suas habilidades em matemática - um caminho que também lhe trouxe problemas.

Em 1995, ele foi acusado, junto com um amigo, de dezenas de atividades hackers.

Embora o grupo que integravam fosse experiente o bastante para rastrear os detetives que os monitoravam, Assange acabou sendo pego e se declarando culpado.

Ele foi multado em vários milhares de dólares australianos - escapando da pena de prisão sob a condição de que não voltaria a cometer tais crimes.

Após o episódio, ele passou três anos escrevendo um livro com Suelette Dreyfus - pesquisadora que estava estudando o emergente lado subversivo da internet. A obra, chamada Underground, se tornou um best-seller.

Dreyfus descreveu Assange como um "pesquisador muito qualificado" que estava "bastante interessado no conceito de ética, em conceitos de justiça, no que os governos deveriam e não deveriam fazer".

A isso se seguiu um curso de física e matemática que ele fez na Universidade de Melbourne, onde virou um destacado membro da sociedade matemática e inventor de um elaborado quebra-cabeça em que seus contemporâneos dizem que teria se superado.

Ele lançou o WikiLeaks em 2006 com um grupo de ativistas que compartilhavam visões semelhantes às dele, criando métodos especiais para receber secretamente materiais sigilosos, candidatos a vazamentos.

"Para manter nossas fontes seguras, tivemos que espalhar recursos, criptografar tudo e mudar telecomunicações e pessoas ao redor do mundo para ativar leis de proteção em diferentes jurisdições nacionais", disse Assange à BBC, em 2011.

"Nós ficamos bons nisso, e nunca perdemos um caso, ou uma fonte, mas não podemos esperar que todos passem pelos esforços extraordinários que nós fazemos."

Ele adotou um estilo de vida nômade, administrando o WikiLeaks de locais provisórios e itinerantes.

Assange conseguia passar longos períodos sem comer, e se concentrar no trabalho com poucas horas de sono, segundo Raffi Khatchadourian, repórter da revista New Yorker, que passou várias semanas viajando com ele.

"Ele cria essa atmosfera a seu redor, onde as pessoas próximas querem cuidar dele, para ajudá-lo a seguir em frente. Eu diria que isso provavelmente tem a ver com o seu carisma."

O WikiLeaks e Assange ganharam destaque com a divulgação de um vídeo mostrando um helicóptero americano atirando em civis no Iraque.

Ele promoveu e defendeu o vídeo, assim como a liberação maciça de documentos militares confidenciais dos Estados Unidos sobre as guerras do Afeganistão e do Iraque em julho e outubro de 2010.

O WikiLeaks continuou divulgando novas levas de documentos, incluindo cinco milhões de e-mails confidenciais da empresa americana de inteligência Stratfor.

Em meio aos vazamentos, também se viu, no entanto, lutando para sobreviver em 2010, quando várias instituições financeiras dos EUA começaram a bloquear doações que recebia.

 

Fonte: Deutsche Welle/BBC News Brasil

 

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