Às ‘margens da Ciência’: Pesquisadora
explica como a Brasil Paralelo surfou no processo de radicalização da direita
NAS ÚLTIMAS SEMANAS,
em meio à crise das enchentes no Rio Grande do Sul, o nome do vice-prefeito de
Porto Alegre, Ricardo Gomes, entrou em evidência. Mas não foi por suas ações
nas chuvas – e sim por suas relações com a produtora Brasil Paralelo.
Gomes apareceu em um
vídeo com um boné da produtora, conhecida por produções com viés de direita. O
vice-prefeito é, também, apresentador do programa Magna Carta da Brasil
Paralelo, e tem fortes ligações ideológicas com a produtora.
Filiado ao Partido
Liberal, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, Gomes também é professor da
Brasil Paralelo. Em suas aparições, ele se dedica a pensar a direita e espalhar
a visão conservadora-liberal.
Em uma aparição no
programa Carta na Mesa, por exemplo, ele chegou a dizer que não há governo que
possa se preparar para um evento como as enchentes que vimos no RS. Segundo
ele, só a sociedade civil organizada tem essa capacidade (a prefeitura de Porto
Alegre já deu sinais de que implementará uma terapia de choque neoliberal após
o desastre).
Em outro vídeo, do
programa Magna Carta, postado há duas semanas no canal da produtora, ele pede
pix para a Associação Floresta e para a Faz Capital, ligada à influenciadora de
direita Renata Barreto.
A relação evidencia o
papel da Brasil Paralelo na propagação e popularização do ideário de direita no
Brasil. Apesar de ter entre seus professores expoentes na extrema direita, como
Ana Campagnolo, Ricardo Felício e Christian Lohbauer, e espalhar narrativas
mentirosas ou questionáveis sobre o período da ditadura militar no Brasil –
retratado como uma forma de “resistência ao comunismo”, a BP e seus apoiadores
se vêem apenas como “direita”. E a produtora afirma ser um espaço “plural”e que
“não define seu conteúdo com base em nenhuma corrente”.
Essa visão é
importante porque, para a pesquisadora Renata Nagamine, que analisa a Brasil
Paralelo em seu pós-doutorado do núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo do
Cebrap, isso “pode sinalizar uma reconfiguração da direita no Brasil, um
processo de radicalização da direita”.
O Intercept conversou
com ela para entender o atual papel da Brasil Paralelo, uma produtora fundada
no Rio Grande do Sul, e conhecida por grandes produções como o documentário
“Cortina de fumaça”, de 2021. O filme coloca em xeque as mudanças climáticas, a
relação entre as atividades do agronegócio e a devastação ambiental, espalhando
mentiras sobre suposto ‘interesses de ongs estrangeiras na Amazônia’, e já tem
quase 2,5 milhões de visualizações só no YouTube.
Hoje, após as
enchentes, além de negar a eficiência do estado, pedir pix e creditar aos
voluntários a solução dos problemas, a explicação para a catástrofe na visão da
Brasil Paralelo é o “excesso de chuvas”, em uma narrativa que é reproduzida em
outros setores ligados à direita, como o agro.
Com peças bem
acabadas, um forte apelo nas redes sociais e com tática massiva de anúncios
para dominar as buscas do Google, a produtora tem tido êxito em ser fonte para
a construção de narrativas negacionistas utilizadas pela extrema direita – mas
com verniz científico.
<><> Leia
a entrevista na íntegra:
• Em que momento a produção da Brasil
Paralelo tomou uma proporção importante para a extrema direita?
Renata Nagamine – Eu
analiso o material da Brasil Paralelo para pensar as disputas pela democracia
no Brasil contemporâneo. Então, eu tomo a produtora como uma plataforma pela
qual passam atores de um espectro político à direita, mas também do centro, em
programas específicos, por exemplo, o Panorama apresentado por Luiz Filipe
D’Avila, do partido Novo. Ali é um espaço onde discursos diferentes circulam.
Discursos em torno de
algumas pautas ganham uma forma mais acabada na produção da Brasil Paralelo,
por exemplo as séries históricas, que têm ampla circulação no YouTube.
Hoje a BP também tem
um site próprio com toda sua produção audiovisual, programas e cursos. Nesses
oito anos, a produtora passou a ser um ator importante na política brasileira,
ao mesmo tempo que é um espaço para circulação de diversos atores políticos. Em
algumas peças nós temos ministros dos governos Lula e Dilma, por exemplo. Isso
empresta uma certa credibilidade para a BP, que se diz um espaço plural.
• Você pode citar os nomes de quem que
aparece nessas peças?
Os ex-ministros Aldo
Rebelo e Xico Graziano aparecem em produções da BP. Além da Damares Alves.
Embora a BP seja apresentada como sendo da extrema direita, ela consegue atrair
para suas produções pessoas que emprestam uma certa credibilidade à possibilidade
da própria produtora se determinar como um espaço plural.
• Qual o papel da Brasil Paralelo na
construção das narrativas da extrema direita?
A produtora tem uma
circulação muito grande entre a direita e a extrema direita. A minha pesquisa é
construída a partir da Antropologia. Eu trabalho com as auto declarações. Eu
percebo que a Brasil Paralelo tem um público que não se declara como de extrema
direita.
Claro, raramente no
Brasil alguém vai se declarar de extrema direita. Mas são pessoas que se
autodeclaram de direita. E isso pode sinalizar uma reconfiguração da direita no
Brasil, um processo de radicalização da direita.
• ‘A Brasil Paralelo tem um público que se
autodeclara de direita. E isso pode sinalizar uma reconfiguração da direita no
Brasil, um processo de radicalização da direita’.
A identificação nos
ajuda a captar a percepção das pessoas. São pistas importantes para pensar um
processo de reconfiguração da direita no Brasil.
Eu entendo o
enquadramento da Brasil Paralelo e outros atores como extrema direita. Mas dou
um passo atrás porque o que me interessa é entender porque é plausível que um
público amplo, que se identifica como direita, seja consumidor dessas peças.
Porque tem sentido para essas pessoas? Elas se conectam com ele.
• Queria trazer o tema do conteúdo
desinformativo sobre diversos temas científicos. Qual o papel da Brasil
Paralelo no negacionismo climático? O filme “Cortina de Fumaça” é um sucesso de
audiência.
“Cortina de fumaça” é
um filme em que a Brasil Paralelo disputa uma determinada construção sobre as
relações entre agronegócio, meio ambiente e direitos dos povos indígenas. Eu
tomo essa peça como parte da construção de um discurso alternativo sobre a relação
entre esses três elementos do mundo contemporâneo.
É uma peça que se
constrói se valendo de um determinado repertório científico, mas não é um
discurso tal como ele se articula no mainstream científico, ou seja, não é o
conhecimento mais compartilhado e mais aceito sobre ciência climática.
No entanto, o
documentário usa informações do repertório científico das margens da ciência do
clima. Isso para construir uma relação entre agro, meio ambiente e direitos dos
povos indígenas, muito afinada com um discurso corrente no Brasil há muitos
anos sobre a importância do agronegócio para o país.
No filme tem, por
exemplo, um ex-ativista do Greenpeace, ministros de vários governos,
jornalistas e outros políticos que dão depoimentos.
O discurso é muito
corrente há muito tempo, passando pela boca de presidentes diferentes,
economistas. Segundo esse discurso, o agro tem tecnologia aplicada e por isso
que ele é ativo e tão produtivo e competitivo, representando provavelmente a
nossa melhor alternativa para o ter ganhos nas cadeias globais de produção de
alimentos.
• Uma outra frente que a produtora tem
conseguido entrar é em material didático. Vimos recentemente que slides de
aulas nas escolas estaduais de São Paulo continham indicação de vídeo da BP.
Qual o perigo disso?
Isso não é novidade.
No governo Bolsonaro a série da Brasil Paralelo sobre história, “Brasil: a
última cruzada” foi usada pela TVE. Essa é uma série que tem alguns episódios e
reconta a história do Brasil. Constrói essa história sobre uma outra matriz.
A BP se apresenta como
uma produtora de entretenimento e educação, ela tem essa pretensão, ela
organiza cursos sobre temas variados. Desde língua portuguesa até pensamento
liberal, os clássicos do liberalismo.
A pretensão de
participar na educação dos cidadãos brasileiros já está posta desde o início,
na própria apresentação da produtora.
Nesse aspecto
especificamente, o governo Tarcísio dá um espaço que ela já teve, por exemplo,
no governo federal. Eu vejo isso como um novo capítulo de uma relação assim que
a Brasil Paralelo tenta estabelecer com poder público. Ganhando espaço e
pleiteando como apta a participar desse processo.
• A BP também uma atuação na política
institucional. Temos um exemplo que agora está no holofote, que é o Ricardo
Gomes, vice-prefeito de Porto Alegre. Você pode falar um pouco sobre ele e o
papel dela na produtora?
O vice-prefeito de
Porto Alegre, Ricardo Gomes, tem um programa semanal na Brasil Paralelo que se
chama Magna Carta. Nesse espaço ele elabora sobre temas específicos e polêmicos
do momento, tentando articular uma posição liberal clássica e conservadora, e
pensando com autores do liberalismo político. Gomes também foi entrevistado em
várias peças da Brasil Paralelo, também deu cursos sobre pensamento liberal.
Ele trata tanto de
política nacional quanto de política internacional. Já falou sobre a
dificuldade da esquerda em condenar os atentados do Hamas.
Eu achei
particularmente interessante um dos últimos episódios do Magna Carta antes da
crise humanitária da crise humanitária no Rio Grande do Sul. Era sobre uma
pesquisa que mostrava que a minoria dos brasileiros se identifica como
esquerda, e uma maioria se identifica como de centro e direita. Ele afirmou que
não é uma identificação ideológica, é sobretudo com pautas, e tentava explicar
qual o sentido disso.
Acho que há um esforço
de construção e de reflexão sobre a própria direita no programa do Ricardo
Gomes. E eu acho que esse é um traço de algumas produções da Brasil Paralelo:
pensar a construção da direita, as fragilidades, os erros, os acertos da direita
nacional.
Nesse mesmo programa,
ele aponta que, usando os termos dele, a direita domina melhor a comunicação
nas redes sociais. Em alguns programas eu percebo que esse esforço ganha uma
forma mais radical, mas em outros programas têm a participação de nomes do mainstream
econômico, por exemplo.
• Você mencionou que o Ricardo Gomes
chegou a falar em um programa dele que as pessoas se identificam com as pautas
da direita e não com a ideologia. Quais são essas pautas?
Eu gosto de trabalhar
com a percepção dos atores, suspendendo a minha opinião sobre os temas, porque
eu quero entender o que as pessoas estão fazendo e como elas estão pensando.
Isso me chamou atenção
no programa do Ricardo Gomes, quando ele fala que é identificação com as
pautas. Porque o que ele está chamando de pauta é a enunciação do
reconhecimento de problemas sociais.
E os problemas que ele
indica são criminalidade ou segurança, corrupção e ineficiência do estado.
Então, essas três essas três pautas seriam, na percepção dele, elementos de
conexão entre a direita e os brasileiros ao responder a pesquisa.
• No seu pós-doutorado, você analisa as
peças audiovisuais da produtora Brasil Paralelo que abordam as relações de
minorias raciais e sexuais com a liberdade religiosa e de opinião. Pode nos
explicar mais sobre sua análise?
Eu estou interessada
em pensar as disputas pela democracia a partir da percepção da emergência de
atores. Entendi que a eleição do ex-presidente de Bolsonaro era antes um efeito
de um determinado processo, do que a causa dele.
A peça “Cortina de
fumaça” foi importante para mim porque eu entendi, é claro que a eleição de um
presidente muda um processo, que a eleição era efeito de um processo. Isso me
convidou a reconstruir esse processo para dar um sentido.
Eu comecei a tentar
investigar o que conecta o agro com determinados segmentos cristãos, por
exemplo, muito presentes nas periferias das grandes cidades.
Há uma eficiência em
comunicar alternativas e o que eles percebem como bons caminhos para construção
do Brasil que eles desejam para um público mais amplo.
E a Brasil Paralelo é
uma instância pela qual passam muitos atores, de economistas a atores
religiosos, passando por políticos, e que entrega produtos discursivos muito
bem acabados.
• Qual é a dimensão da produção deles na
política brasileira?
Eles recebem muitos
atores, tem um acabamento muito bom das peças, tratam de muitos temas e
problemas sociais, oferecem produtos muito diferentes como cursos, textos,
formações sobre diversos assuntos, documentários.
São desde humor até
programas como do vice-prefeito de Porto Alegre, que se propõe elaborar um
discurso mais acabado interagindo com um repertório ilustrado.
Acho que essa
diversidade ajuda a gente a entender, em parte, o êxito da Brasil Paralelo.
Eles reconhecem que são bons em se comunicar nas mídias sociais, e aqui entra
uma questão de algoritmo das plataforma também. No que me diz respeito, eu acho
que eles têm um certo domínio das formas para se comunicar nesse novo ambiente.
Mas o que me chama
atenção nas produções é que o discurso é acompanhado de um horizonte de
solução, um caminho, coisas a fazer. Por exemplo, se a gente pegar o “Cortina
de fumaça” ali tem uma proposta, tem um horizonte de construção de um Brasil
próspero e nós estamos nesse caminho, é assim que a produção apresenta as
coisas.
E aí eu acho que é
importante a gente olhar com cuidado porque não há uma negação da proteção
ambiental. O que há é uma tentativa de sustentar o argumento de que
desmatamento e tudo mais são uma questão de polícia. O agro profissional não
desmata e não responde pelo desmatamento ou esgotamento dos recursos hídricos
do Cerrado.
Não é uma contestação
do problema da questão ambiental. É uma compatibilização do agro com a
preservação. E eu acho que se a gente pensa que o esforço em peças como essa é
de compatibilização e não de contestação frontal de uma pauta, isso combinado
com a indicação de um caminho para o desenvolvimento do Brasil, são elementos
que ajudam a gente entender uma outra dimensão do êxito da Brasil Paralelo.
Fonte: Por Bianca Pyl
na The Intercept
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