A crise neoliberal da Índia está
alimentando o autoritarismo hindu
Durante a década em
que Narendra Modi foi primeiro-ministro da Índia, assistiu-se a um aumento
acentuado da desigualdade de renda e riqueza. De acordo com a Base de Dados
Mundial sobre a Desigualdade, a parcela do 1% mais rico na renda nacional, de
22,7% em 2023, é mais elevada do que em qualquer outro momento do último
século.
Este aumento da
desigualdade tem sido acompanhado por um aumento da proporção da população que
enfrenta uma privação nutricional absoluta. Os inquéritos quinquenais da Índia
sobre as despesas de consumo revelam um aumento significativo, entre 2011-12 e
2017-18, da porcentagem da população incapaz de acessar uma norma mínima de
calorias diárias per capita, que é de 2 100 para as zonas urbanas e de 2 200
para as zonas rurais.
A Índia é considerada
uma das economias que cresce mais rápido do mundo, embora se saiba que os
números da taxa de crescimento são muito exagerados. No entanto, ocupa
atualmente o 111º lugar entre 125 países no Índice Global da Fome – uma
classificação que tem piorado na última década.
Continuidade
neoliberal
A opinião liberal
tende a atribuir toda a culpa por este extraordinário aumento da desigualdade
ao governo de Modi. É certamente verdade que o governo tem seguido políticas
que favorecem palpavelmente os capitalistas monopolistas – especialmente
algumas empresas relativamente novas que constituem os “amigos” de Modi –
enquanto desencadeia uma crise para a pequena produção, sobretudo a agricultura
de pequena escala.
No entanto, estas
políticas não são inovações do próprio governo. O governo limitou-se a levar
adiante, fiel e cegamente, a agenda neoliberal estabelecida. Culpar apenas o
governo Modi, portanto, exonera erroneamente o neoliberalismo da acusação de
empobrecer o povo trabalhador.
Na verdade, as
tendências para o aumento dos níveis de desigualdade e privação nutricional têm
sido evidentes desde a introdução das políticas neoliberais em 1991. Estima-se,
por exemplo, que a cota do 1% mais no rendimento nacional tenha aumentado de 6%
em 1982 para mais de 21% em 2014. A privação nutricional aumentou
substancialmente entre os inquéritos às despesas de consumo de 1993-94 e
2011-12.
Algumas medidas são
consideradas loucuras específicas do governo Modi, como a súbita desmonetização
de quase 87% (em termos de valor) da moeda do país em 2016, em nome do combate
ao “dinheiro sujo”, ou a introdução de um Imposto sobre Bens e Serviços em 2017,
em substituição do antigo imposto sobre vendas, que supostamente facilitaria a
“unificação do mercado nacional”.
No entanto, embora o
governo tenha implementado essas medidas sem pensar, elas são geralmente
retiradas do kit de ferramentas das instituições financeiras internacionais.
Além disso, o governo de Modi teve o apoio dessas instituições para tais
movimentos.
Crise neoliberal
Ogoverno Modi pode ser
criticado por aderir obstinadamente à agenda neoliberal, mesmo em um momento em
que o neoliberalismo tinha entrado em crise e estava gerando desemprego em
massa. Em nenhum momento isso foi mais evidente do que na promulgação de três
leis agrícolas que teriam eliminado o regime de suporte de preços fornecido
pelo governo para os cereais alimentares.
O apoio às culturas
comerciais já tinha sido removido anteriormente, expondo os agricultores as
grandes flutuações de preços no mercado mundial e aumentando assim o seu
endividamento, o que, por sua vez, provocou suicídios em massa entre eles. Uma
luta notável dos agricultores, que durou um ano, obrigou Modi a recuar nestas
leis, que, se fossem aplicadas, teriam destruído a autossuficiência do país na
produção de cereais alimentares (reconhecidamente em baixos níveis de consumo)
e exposto o país a uma insegurança alimentar ainda maior.
Um aumento da
desigualdade econômica, tanto no interior dos países como no conjunto do mundo,
é uma tendência imanente ao neoliberalismo. Isto porque a mobilidade entre
países do capital em produção que o neoliberalismo implica expõe os salários
reais em todos os países, incluindo os do Norte Global, à pressão descendente
exercida pelas vastas reservas de mão de obra do Sul Global.
Estas reservas não
diminuem, apesar da deslocalização de atividades do Norte Global para o Sul
Global, porque a introdução de um comércio mais livre entre países – outra
caraterística do neoliberalismo – intensifica a concorrência entre eles. Também
acelera a mudança tecnológica e estrutural que aumenta a taxa de crescimento da
produtividade do trabalho em cada país.
Isto, por sua vez,
mantém baixa a taxa de crescimento do emprego, muitas vezes até a um nível
inferior à taxa natural de crescimento da força de trabalho, aumentando assim a
dimensão relativa das reservas de trabalho. Assim, o nível dos salários reais é
suprimido sob o neoliberalismo, enquanto a produtividade do trabalho aumenta
rapidamente em todo lugar, elevando a porcentagem do excedente na produção
total dentro dos países e também a nível global.
A crise do
neoliberalismo está diretamente ligada a este crescimento da desigualdade. Uma
vez que os trabalhadores consomem uma parte muito maior dos seus rendimentos do
que aqueles a quem o excedente se destina, o aumento da parte do excedente cria
uma tendência para a superprodução. Isto revelou-se internacionalmente após o
colapso da bolha imobiliária nos Estados Unidos.
·
Desaceleramento
Na Índia, os efeitos
deste colapso foram temporariamente mantidos em suspenso através de uma
política fiscal agressiva que violou os limites da proporção do déficit
orçamental/PIB. Com a reimposição deste limite, que ocorreu mais ou menos na
altura em que o Governo Modi assumiu o poder, o desaceleramento afetou também a
Índia.
A manifestação mais
clara da crise atual na Índia é a taxa de desemprego extremamente elevada. O
desemprego, como observamos anteriormente, estava crescendo sob o
neoliberalismo mesmo antes da crise, porque a taxa de crescimento do emprego
estava abaixo da taxa natural de crescimento da força de trabalho. No caso da
Índia, devemos mencionar também os agricultores em dificuldades que se deslocam
para as cidades em busca de emprego. Com o início da crise, assistimos a um
novo aumento do desemprego devido à insuficiência da procura.
O desemprego é o
problema mais grave que a Índia enfrenta atualmente. Devido à precarização em
grande escala da mão de obra, ela assume a forma de uma redução das horas de
trabalho para a maioria das pessoas, em vez de uma completa falta de trabalho
para algumas. Como resultado, é difícil de captar através de medidas
convencionais.
No entanto, os
resultados dos inquéritos que questionam as pessoas sobre a sua própria
situação de emprego revelam um salto significativo na taxa de desemprego
durante os anos pós-pandemia. Verificou-se também um aumento significativo da
procura de emprego no âmbito do programa governamental de ajuda às zonas
rurais, conhecido como Mahatma Gandhi National Rural Employment
Guarantee Scheme, o que também confirma o fenômeno do aumento do
desemprego.
O desemprego é
particularmente grave entre os jovens – 44% da faixa etária dos vinte a vinte e
quatro anos, de acordo com um relatório da Organização Internacional do
Trabalho – e na Índia rural. Os salários reais dos trabalhadores rurais
permaneceram, na melhor das hipóteses, estagnados desde 2014-15, e talvez até
tenham diminuído (dependendo do deflator utilizado). No caso dos trabalhadores
da construção civil, um segmento numericamente grande da força de trabalho, os
salários diminuíram certamente, o que confirma ainda mais o crescimento do
fenômeno do desemprego.
Certamente, os dois
fenômenos – aumento do desemprego e estagnação ou redução dos salários reais –
explicam, em conjunto, o aumento da privação nutricional absoluta já referido.
Este aumento é apenas parcialmente atenuado, mas não anulado, pelo regime governamental
de fornecimento gratuito de cinco quilos de cereais alimentícios por mês para
cerca de oitocentos milhões de beneficiários. Este regime tem sido mantido
desde os anos de pandemia, contra as convicções professadas pelos detentores do
poder.
·
Aliança Empresas-Hindutva
Ofato de o governo
Modi abraçar de todo o coração o neoliberalismo, mesmo quando a crise desse
modelo econômico está causando sofrimento em massa, é precisamente o que
constitui a sua atração para o monopólio de capital indiano.
O apoio anterior ao
neoliberalismo, na crença de que este traria um crescimento rápido que, em
última análise, beneficiaria a todos, desaparece quando há desemprego em massa
e uma angústia aguda. É nessa altura que o neoliberalismo precisa de um novo
apoio para se sustentar, para a qual forma uma aliança com elementos
neofascistas.
Na Índia, essa aliança
neoliberal/neofascista assumiu a forma específica de uma aliança
empresarial-Hindutva. O governo Modi é uma expressão desta aliança.
O seu objetivo é
provocar uma mudança no discurso, de modo com que as questões do desemprego, da
inflação e das dificuldades econômicas passem para segundo plano. Entretanto, o
supremacismo hindu passa para primeiro plano, mesmo quando o governo continua
seguindo uma estratégia neoliberal agressiva em benefício do capital
globalizado e do capital monopolista doméstico a ele integrado.
O neofascismo
apresenta todas as características do fascismo clássico: repressão estatal que
subverte as instituições democráticas e revoga os direitos democráticos; um
ataque aos direitos duramente conquistados pelos trabalhadores e camponeses; a
combinação da repressão estatal com a violência de rua por bandidos fascistas;
e a “alterização” de um grupo minoritário infeliz e o fomento do ódio contra
ele.
Podemos também
observar uma estreita ligação com o capital monopolista – especialmente com um
novo estrato de capital monopolista constituído pelos comparsas do governo –
bem como a apoteose de um líder supremo e uma imensa centralização de poderes e
recursos. Isto permite levar adiante uma agenda de contrarrevolução social, que
na Índia significa reverter os progressos feitos no sentido de ultrapassar a
opressão de casta e de gênero.
No atual contexto
internacional, há de acrescentar a esta lista de características a adesão ao
neoliberalismo e a acomodação ao capital globalizado, do qual o capital
monopolista nacional é parte integrante.
·
Discurso de divisão
Contudo, ao contrário
do fascismo clássico, o neofascismo não consegue ultrapassar os problemas da
crise econômica e do desemprego em massa. Isto porque o aumento das despesas do
Estado para aumentar a procura agregada só pode funcionar se for financiado por
um déficit fiscal ou pela tributação dos ricos.
As despesas do Estado
financiadas pela tributação dos trabalhadores, que de qualquer modo consomem a
maior parte de suas rendas, não aumentam a procura agregada. No contexto atual,
as finanças globalizadas desaprovam a ideia de um maior déficit fiscal ou de
impostos mais elevados sobre os ricos.
Se o Estado não ceder
totalmente aos caprichos do capital globalizado, expõe a economia ao perigo da
fuga de capitais, que ela não pode suportar. O Governo de Modi pouco pode fazer
para vencer o desemprego, o que o torna ainda mais dependente de um discurso
divisionista e diversionista.
Esta abordagem é
claramente evidente durante as atuais eleições indianas. Embora os observadores
confirmem que existe uma grande preocupação pública com o desemprego e que os
principais partidos da oposição têm abordado esta questão nas suas campanhas, não
se encontra qualquer referência ao desemprego nos discursos de Modi e de outros
líderes do Partido Bharatiya Janata (BJP).
Em vez disso, falam do
templo Ram que foi construído em Ayodhya e fomentam a animosidade contra os
muçulmanos (chamando-lhes “infiltrados”). Eles têm propagado sistematicamente o
mito de que o Congresso, se for eleito para o poder, vai tirar a riqueza dos
hindus e distribuir para os muçulmanos!
É difícil imaginar um
discurso mais divisivo, perigoso e falso que desvie a atenção de questões
urgentes da vida material e dos meios de subspusiistência. Mas é isso que o BJP
oferece, enquanto uma Comissão Eleitoral pusilânime se limita a olhar para o outro
lado.
As atuais eleições
parlamentares são de extraordinária importância para o futuro do país. Para o
BJP, elas são um meio de legitimar, consolidar e perpetuar o seu domínio
neofascista.
O partido tem imensos
recursos financeiros à sua disposição, doados pelos seus apoiadores
capitalistas monopolistas. Controla as agências centrais de investigação da
Índia, que utiliza para prender opositores com base em casos falsos que nem
sequer chegam a ser julgados durante anos, e para os aterrorizar com a ameaça
de encarceramento. Também se infiltrou no sistema judicial indiano ou intimidou
os seus funcionários.
Com estes recursos à
sua disposição, e com o seu apelo religioso, o BJP espera reforçar ainda mais o
seu controle do poder. Será que o povo trabalhador da Índia vai permitir que
isso aconteça?
Fonte: Por Prabhat Patnaik,
com tradução de Sofia Schurig em Jacobin Brasil
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