"Enfrentamento às milícias é discurso midiático", avalia
sociólogo
A ação promovida pela milícia na Zona Oeste do Rio
de Janeiro, que deixou 35 ônibus queimados, foi o maior ataque ao transporte
público já registrado na cidade. Ao revelar o poder de ação dos milicianos, o
episódio coloca em xeque a capacidade de resposta do governo a um problema
crescente – com raízes dentro do próprio Estado.
Quando as primeiras imagens do ataque chocavam o
país, o governador Cláudio Castro (PL) falou com a imprensa e prometeu uma
resposta dura contra os responsáveis. Ele lembrou que a ação era uma resposta à
morte do miliciano conhecido como "Faustão". O criminoso era o número
2 e sobrinho de Zinho, chefe da milícia que atua na região.
"Enquanto estivermos aqui, o combate será
duro, 24 horas, sete dias por semana. O mal não vencerá o bem", afirmou
Castro. Pelo X (ex-Twitter), o governador buscou desencorajar os criminosos
durante o ataque em curso. "O crime organizado que não ouse desafiar o
poder do Estado." Após ser criticado pela declaração, o governador apagou
o post.
A insegurança de Castro reflete a fragilidade no
comando das polícias. Ainda no mandato anterior, o governador optou pela
extinção da antiga Secretaria de Segurança Pública. As polícias passaram a ter
comandos independentes desde então. O novo secretário da Polícia Civil, Marcos
Amim, é o quarto ocupante do cargo em três anos.
Atualmente, cerca de 20% da área da região
metropolitana do Rio é controlada por algum grupo armado, e as milícias detêm
metade dessas áreas. Em 16 anos, o domínio das milícias sobre territórios
cresceu 387%. Os dados estão no Mapa dos Grupos Armados, elaborado pelo
Instituto Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da
Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).
"A estrutura de poder obtém vantagens e ganhos
a partir da estrutura miliciana. Só que ninguém vai assumir publicamente. Pelo
contrário, o discurso midiático, para ganhar voto, é o discurso do
enfrentamento, da guerra, da morte do bandido", afirma o sociólogo José
Cláudio Alves, em entrevista à DW Brasil.
"Só que o bandido é aquele que garante a
perpetuação dessa estrutura de poder, de vitória dos interesses desses grupos
dominantes naquele local. Nós convivemos com esta grande contradição",
complementa.
Alves estuda a atuação das milícias desde a sua
formação, a partir dos grupos de extermínio na ditadura militar. O pesquisador
ressalta que o vínculo dessas organizações com o Estado é justamente a garantia
de sua sobrevivência e expansão. E também o que as diferenciam de facções do
narcotráfico.
"A criação do termo 'narcomilícia' é uma
grande jogada, pois joga nas costas da estrutura do tráfico de drogas o
funcionamento e a continuidade das milícias. Isso é falso. As milícias emergem
dentro da estrutura policial do Estado, continuam nessa estrutura e vão
continuar sendo protegidas", assinala o pesquisador.
Alves demonstra ceticismo quanto a uma
possibilidade de enfrentamento real das milícias, sem que haja mudanças
profundas na estrutura política. Ele projeta uma expansão progressiva dos
grupos milicianos, com impactos cada vez maiores para as populações pobres.
"A formação de uma grande massa precária joga
toda essa população numa vala e a obriga, muitas vezes, a abraçar o mundo do
crime como uma alternativa. Tudo indica que se espera um futuro de mais
confrontos, mortes, sofrimento e desigualdade. E mais projetos de grupos
armados que vêm emergindo e vão se projetar como alternativa real para essa
sociedade", analisa.
LEIA A ENTREVISTA:
• Qual
é sua interpretação sobre o recado que as milícias passaram ao realizar um
ataque de proporções inéditas ao transporte público no Rio de Janeiro?
José Cláudio Alves: As milícias viraram uma espécie
de mediadores universais das relações nos territórios onde estão. A presença de
um grupo armado como este, ao longo do tempo, vai produzir esse fenômeno de
normatização das relações, além do controle econômico e político desse local. A
estrutura de poder obtém vantagens e ganhos a partir da estrutura miliciana. Só
que ninguém vai assumir publicamente. Pelo contrário, o discurso midiático,
para ganhar voto, é o discurso do enfrentamento, da guerra, da morte do
bandido. Só que o bandido é aquele que garante a perpetuação dessa estrutura de
poder, de vitória dos interesses desses grupos dominantes naquele local. Nós
convivemos com esta grande contradição.
O recado do miliciano é que ele não quer pagar esse
pato. Ele não quer ser a bucha de canhão para ser morto lá na ponta, como
bandeira política eleitoral de governadores ou deputados. E não quer ser
"bucha" para o sistema judiciário que vai julgá-lo e condená-lo. Ele
quer outra base de negociação. A morte de uma liderança estabelece essa nova
base para os acordos que continuam funcionando. O ano que vem vai ser decisivo,
porque as eleições municipais movimentam o cenário político como um todo, com
impacto nas eleições de 2026. O miliciano está dizendo que não se sujeita a ser
o elo fraco desse pacto, desse acordo todo. Ele não está disposto a ter sua
vida estraçalhada pelo sistema que ele ajuda a funcionar, em que ele media as
relações.
• O
governador Cláudio Castro (PL) trocou o secretário de Polícia Civil pela
segunda vez em menos de um mês. Como chefe das forças de segurança, ele tem
condições de liderar o enfrentamento às milícias?
O governador Cláudio Castro tem um conjunto de
comprometimentos. Desde o início, como vice de [Wilson] Witzel, que foi
cassado, mas tinha uma plataforma brutal de "bandido bom é bandido morto".
Cláudio Castro continua isso. Ele só não tem essa figura histriônica que era
Witzel. Ele é dos bastidores, mas mantém essa estrutura. As composições que fez
ao longo do tempo mostram isso. Um exemplo é Allan Turnowski, que foi
secretário de Polícia Civil no começo do seu governo. Ele tinha envolvimentos
com milícia, jogo do bicho e foi cassado como candidato. O ex-secretário de
sistema penitenciário dele foi exonerado e processado em função de acordos com
o Comando Vermelho.
O atual secretário de Polícia Civil, Marcos Amim,
vem numa esteira de acordos com vários membros da Assembleia Legislativa do Rio
de Janeiro da extrema direita. Eles defendem a lógica do "bandido bom é
bandido morto" e colocam na chefia da Polícia Civil alguém comprometido
com essa prática. Ele estava no comando da chacina do Jacarezinho. É um
youtuber que dissemina essa ideia do confronto, da letalidade policial, do bem
contra o mal. Não tem coisa mais útil para a estrutura miliciana do que um cara
como ele. Nem com esse discurso, nem com esse maniqueísmo, porque isso esconde
toda a realidade que de fato subjaz a esse universo.
Cláudio Castro é comprometido com estruturas
milicianas na Baixada. Seu secretário de Transporte é o ex-prefeito de Duque de
Caxias, Washington Reis, que tem uma das mais consolidadas estruturas
milicianas da região. Ele sempre teve relação com elas e se projetou a partir
dessas relações. Castro também tem relações com o prefeito de Belford Roxo,
Wagner Carneiro [Waguinho], que estabeleceu um destacamento do 39º Batalhão da
Polícia Militar naquele município. Basicamente, foi de onde saiu toda a
campanha do próprio Waguinho, inicialmente, e do deputado estadual Márcio
Canella (PL), que indicou Marcos Amim para secretário de Polícia Civil. Então,
o ciclo se fecha. É um conjunto de interesses que se protegem, e um promove o
outro. Castro faz o discurso "fanfarrão" que vai matar, que ninguém
vai se contrapor à estrutura do Estado, como um herói. Mas a coisa é muito mais
complexa do que esse jogo discursivo.
• Um
dos pontos de maior preocupação no avanço recente das milícias é a associação
desses grupos com o tráfico. Como se dá o envolvimento entre essas
organizações?
Cláudio Castro e Allan Turnowski, ex-secretário de
Polícia Civil, criaram o termo "narcomilícia". É uma grande jogada,
pois joga nas costas da estrutura do tráfico de drogas o funcionamento e a
continuidade das milícias. Isso é falso. As milícias emergem dentro da
estrutura policial do Estado, continuam nessa estrutura e vão continuar sendo
protegidas. Eles podem não estar no chão da rua, operando a estrutura
miliciana. Isso eles deixam para os civis, muitos deles cuja origem é o tráfico
de drogas, porque é o lugar que reservaram para esse tipo de grupo, justamente
os que vão ser tratados como bandidos a serem liquidados e mortos. Ou seja, a
construção da ideia de uma narcomilícia favorece absolutamente a perpetuação
desses grupos políticos, blindados dentro da estrutura do Estado e matando
aqueles que seriam os traficantes responsáveis pela milícia.
Isso começou em outubro de 2020, quando fizeram uma
operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal e Polícia Civil, na Baixada
Fluminense. Mataram 17 pessoas e disseram ser narcomilicianos. Essa é uma
grande jogada. É verdade que a estrutura do tráfico tem aprendido com a
estrutura miliciana, além de estabelecer relações e acordos. A milícia sempre
lidou com a estrutura do tráfico de drogas, ou alugou áreas, ou operou com
acordos, nunca foi diferente. É claro que ela faz um cartão de visita dizendo
que veio combater o tráfico, o bandido – outra dessas grandes falácias que o
tempo todo são jogadas. O tráfico tem aprendido, vendo esse poderio todo, os
mercados que se abriram com as milícias. Então, começa a reproduzir práticas de
negócios e controles territoriais muito similares ao que a milícia faz. Este é
um cenário.
Essa aproximação representa acordos que vão se
estabelecer. Por exemplo, uma aproximação entre milícia e Comando Vermelho,
inimaginável há algum tempo, hoje é real. O Comando Vermelho faz parte do leque
de acordos, a partir do próprio Zinho. Ele buscou essa parceria porque vê no
Comando Vermelho um grupo com poder de fogo, de controle territorial e
estratégia muito bom, o suficiente para protegê-lo contra os grupos milicianos
que emergiram dentro da milícia para disputar com ele. Ele vê uma capacidade de
negociação com outros grupos armados para poder obter benefícios. O Comando
Vermelho, por sua vez, ganha áreas e projeção. Ambos se beneficiam do acordo.
• Qual
é o nível de ameaça que as milícias representam para o Rio de Janeiro hoje?
O risco para o Rio de Janeiro é o que sempre viveu.
Essa estrutura se montou há mais de cinco décadas, durante a ditadura militar,
com a formação dos grupos de extermínio. Uma estrutura que fica intocável,
enquanto se amplia e conquista cada vez mais espaços, pessoas, grana e poder
político, vai se aprofundar cada vez mais. Quem está fora dessa estrutura é
quem vai pagar a conta. E também aqueles que fazem parte, mas em posições
inferiores, os "pés de chumbo", civis, traficantes e milicianos
pobres na ponta. Esses vão pagar um preço. No topo e em níveis intermediários
da estrutura, todos vão ganhar a sua parte no butim. Quem mais sofrerá com tudo
isso são os mais pobres, as populações que vivem sob esse inferno de controle de
poder e dinheiro, de disputas intensas entre esses grupos.
Como o fosso social só tem aumentado no Brasil, o
mundo do crime é cada vez mais valorizado como alternativa de sobrevivência, de
projeção social no meio do caos que nós vivemos neste país. E pela própria
imposição de uma lógica neoliberal, de ganhos altíssimos para determinados
grupos, desregulamentação da economia e das relações de trabalho pela
"uberização". A formação de uma grande massa precária joga toda essa
população numa vala e a obriga, muitas vezes, a abraçar o mundo do crime como
uma alternativa. Tudo indica que se espera um futuro de mais confrontos,
mortes, sofrimento e desigualdade. E mais projetos de grupos armados que vêm
emergindo e vão se projetar como alternativa real para essa sociedade. É disso
que estamos falando.
• Qual
deveria ser o papel do governo federal em meio à crise vivida no Rio?
O governo federal vive uma imensa contradição, que
resulta de suas próprias escolhas. Ele quer abraçar a estrutura da direita e da
extrema direita como alternativa para ter base parlamentar no Congresso e
aprovar os seus projetos. Por outro lado, diz que quer combater a violência e o
crime organizado. O governo do estado de São Paulo matou 29 pessoas em uma
operação policial de 40 dias no Guarujá. O que foi feito? Nada, nem sequer o
envio de uma comissão de peritos especiais para avaliar essas mortes. Isso
ocorreu no primeiro governo Lula, após a chacina do Pan-Americano, no Complexo
do Alemão, em 2007, quando 1.500 homens da estrutura policial mataram 19
pessoas. Uma comissão da Secretaria de Direitos Humanos veio, fez o laudo
cadavérico e identificou que 73% das perfurações daqueles corpos estavam
localizadas nas costas e na cabeça, o que dava um grande indício de que foram
executados sumariamente.
Ou seja, esse governo não quer confronto com a
estrutura de poder dos grupos de direita e de extrema direita no Brasil, porque
quer emplacar seus projetos dentro do Congresso. No Rio de Janeiro, o governo
federal colocou Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal em
portos, aeroportos e rodovias. Assim, manteve-se em uma distância confortável
da política de extermínio do Estado, para não sujar suas mãos de sangue e se
comprometer junto à base que o elegeu. Por outro lado, não vai fazer ações mais
eficazes para mudar esse cenário. As eleições do ano que vem estão sendo
disputadas agora. Cláudio Castro propôs que os deputados distribuam R$ 4,5
bilhões de fundos especiais do governo, obtidos graças à não aplicação de
recursos em diversos setores, como habitação, saneamento, um conjunto de
secretarias que não aplicaram os recursos a elas destinados. Não por
incompetência, mas por puro interesse de gerar esse fundo monstruoso, a ser
utilizado nas eleições.
É disso que se trata, um imenso acordo de
"toma lá, dá cá". E esse cenário vai atingir a estrutura federal em
2026, nas eleições. Só que o governo Lula não quer se imiscuir nesses acordos,
quer se manter nessa numa posição confortável, distante. Não vai interferir.
Então, qual é a capacidade de modificar esse cenário, alterá-lo em função de
uma proposta de reconfiguração da estrutura política que finalmente vá resultar
na modificação do cenário da segurança pública. Até agora, não vejo nenhum
sinal de que este seja de fato o objetivo do governo federal. Pelo contrário,
quer manter as coisas como estão: agrada a todos os grupos, em cima do muro,
negociando para ver quem dá mais e ver como obter vantagem nessa estrutura.
Lei
deve mudar para tipificar facções criminosas como terroristas, defende ministro
Flávio Dino
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio
Dino, defendeu nesta quinta-feira (26) uma alteração na lei que combate o
terrorismo para incluir facções criminosas na categoria de terroristas.
As declarações foram feitas durante congresso sobre
prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo da Federação
Brasileira dos Bancos (Febraban), três dias depois que milicianos queimaram
dezenas de ônibus e outros veículos no Rio de Janeiro, em retaliação à morte de
um integrante da organização em confronto com policiais.
"Quando falamos de terrorismo, lembramos
sempre de organizações globais articuladas com a disputa geopolítica por água,
energia, território, e que atuariam, inclusive, no Brasil. Um domínio do
território, como milícias e facções que se estabeleceram no Rio de Janeiro, é
ou não é, materialmente falando, ato de terrorismo?", declarou o ministro.
No dia seguinte aos ataques, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva pediu ao ministro da Defesa, José Múcio, para intensificar
a atuação da Aeronáutica e da Marinha em portos e aeroportos do Rio para
combater o crime organizado.
A Lei 13.260/2016 que trata do terrorismo no país
classifica esse ato responsável por provocar terror social e generalizado, com
penas de 15 a 30 anos de prisão. Entretanto, a lei determina que atos
terroristas derivam de preconceito ou discriminação por raça, cor, etnia e
religião. Então, segundo ele, esse trecho da legislação teria que sofrer
adequações.
Segundo Dino, ao enquadrar organizações como as
milícias e de traficantes na definição de terroristas, fica mais fácil
enfraquecer o poder financeiro desses grupos do crime organizado.
“Esse é o caminho verdadeiro e não ficções como
esta do alargamento infinito, fiscalmente inviável, dos contingentes policiais
ou mesmo essas demagogias rasteiras de sair dando tiro no meio da rua, achando
que há, nessas armas, balas de prata que vão, por encanto, definir a extirpação
do crime organizado, do terrorismo lato sensu do Brasil e assegurar paz que os
cidadãos e cidadãs brasileiros merecem”, argumentou ele.
• Bloqueio
de bens
O ministro explicou no evento que a Polícia Federal
(PF) bloqueou quase R$ 3 bilhões em ativos de organizações criminosas,
identificados em operações, e que está sendo constituída a Rede Recupera, de
recuperação de ativos no conselho de governança da Estratégia Nacional de
Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla, na sigla em inglês),
composto por 90 organismos.
Em maio deste ano a Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) aprovou o projeto de lei (PL) 3.283/2021, que que tipifica como
atos terroristas condutas praticadas em nome ou em favor de grupos criminosos
organizados. A proposta ainda não foi votada pela Câmara dos Deputados.
Fonte: Deutsche Welle
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