“Somos ameaçadas, mas Bolsonarismo estava aqui antes de Bolsonaro”,
dizem irmãs da CPT
“Essa história aqui é de anos e juízes. Muitos, não
só dois ou três”, me adianta a irmã Jane Dwyer, no início da nossa conversa, na
sala da casa de madeira, com paredes cobertas por quadros que gritam diferentes
palavras de ordem, pedindo reforma agrária, que ninguém solte a mão de ninguém,
além de justiça por Dorothy Stang e pelos 19 demais assassinados nos últimos
anos na luta pela terra em Anapu, no interior do Pará.
“Anos”, porque o tempo passa e a violência
permanece. Entre 2015 e 2019, as vítimas foram se acumulando, e seus nomes
foram espremidos na cruz vermelha ao lado do túmulo de Dorothy Stang, com
espaçamento entre as letras tão mínimo, para fazer caber, que a leitura é quase
comprometida. “Juízes” porque aqueles responsáveis pela segurança pública e
jurídica da região entram e saem. Policiais, delegados, promotores.
Corrompem-se, demoram, fecham os olhos para o quadro complexo dos conflitos
agrários da região. Quem fica, trabalha, e defende, acaba transferido.
As irmãs Jane Dwyer e Katy Webster, da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), permanecem. Mesmo após o assassinato de sua
companheira, negam proteção estatal, porque acreditam que ela deveria ser para
todas famílias de pequenos agricultores ameaçados. Colecionam os dados de cada
caso em memórias afiadas que desafiam sua idade. Em quase duas horas de
conversa, tentam resgatar o maior número de casos e denúncias que conseguem.
Respondem a cada uma das perguntas, formuladas para abarcar um contexto geral,
com exemplos concretos e distintos da violência.
Nesta semana, as irmãs foram informadas que um dos
condenados pelo homicídio da Dorothy, em 2005, foi alvo de operações contra
ocupação ilegal na Amazônia no Acre. Preso preventivamente pela Polícia Federal
(PF), Amair Feijoli é suspeito de grilagem e ocupação ilegal de áreas na
Amazônia. Em 2006, Feijoli foi condenado por tribunal do júri do Pará por
participação no assassinato da missionária norte-americana naturalizada
brasileira.
• Vocês
moram nesta casa há muito tempo?
Jane Dwyer — Desde outubro de 2005. Antes, a gente
morava em uma sede da igreja. Depois do assassinato da Dorothy, começaram uma
campanha que nós éramos terroristas, que andávamos armadas. Aí tivemos que nos
separar fisicamente da igreja e viemos para o bairro. Muita gente ajudou e,
dentro de uma semana, de terroristas, nós viramos vizinhas. Essa é a nossa
casa, a casa das irmãs. Eles derrubaram nossa antiga casa, onde tínhamos nossas
coisas guardadas. A gente levou o processo do assassinato da Dorothy pra Belém
e distribuímos as outras coisas, porque não foi oferecido outro espaço, não.
Katy Webster — A madeira da nossa antiga casa ficou
no São Rafael [Centro de Formação São Rafael, da CPT, onde está enterrado o
corpo de Dorothy Stang]. Fizemos um viveiro.
Jane Dwyer — O viveiro dá suporte a todo o nosso
trabalho.
• Vocês
se sentem seguras vivendo aqui hoje?
Jane Dwyer — A impunidade é a maior ameaça que
existe. Eles falam o que querem, falam mal da gente, denunciaram a gente na
Câmara Municipal neste ano. Foi um homem que se candidatou a deputado estadual
no ano passado.
Katy Webster — Ele é um filho daqui de Anapu. Se
juntou com um dos ruralistas daqui e se tornou a “boca” dele. Dizia que ia
limpar os lotes ocupados. Perguntava na Câmara: “Por que as irmãs não assentam
o povo em terras livres? Por que mexem com terra privada?”. Esse tipo de coisa.
Ou falava que a gente devia estar dando aula de inglês, ou que nunca receberam
nada da gente, ou perguntava por que a gente não estava fazendo caridade.
Jane Dwyer — Parece besteira, mas são questões
sérias. Houve uma investida do Ibama recentemente em alguns lotes da região que
estão todos desmatados. Queimaram as máquinas, as serrarias. Os madeireiros
disseram que nós travamos o progresso. Porque denunciamos tráfico de madeira.
Nos acusam de incentivar as ocupações, coisa que a
gente realmente não faz, porque é perigoso demais. Mas, uma vez que o povo
chega lá, nós vamos também, porque se não vão matá-los. Então incentivar
suicídio a gente não faz, mas, uma vez que o povo se arrisca, aí temos que ir.
A verdade é que o povo informa a gente, ou nós conseguimos as informações dos
crimes ambientais e denunciamos, sim. Assumimos que o povo não pode denunciar,
se não morre.
Algumas pessoas acham que vão matar a gente, mas
eles não entram aqui em casa porque têm medo dos cachorros. O bispo [dom João
Muniz Alves, da prelazia do Xingu] não quer a gente andando só, então ele paga
um motorista. Coragem de enfrentar e liderar ele não tem, mas apoiar ele apoia,
ele diz em público.
• Vocês
acreditam que deveriam ter maior segurança dos programas públicos de proteção?
Jane Dwyer — Nós somos ameaçadas, mas quem é a
maior vítima aqui é quem está defendendo o meio ambiente, o povo. Eles não tem
quem defendê-los e quem tenta entrar para organizar acaba entrando nesse rolo.
É o nosso caso. Mas eles estão lá primeiro ameaçados. Nos colocam como grandes
defensoras, mas nem Dorothy era isso. Ela foi nomeada assim depois do
assassinato, mas não se colocava dessa forma. Quando eu me coloco como
defensora do meio ambiente, estou desviando a realidade. A realidade é que quem
é ameaçado é quem se recusa a sair da terra, quem está resgatando a terra e
replantando a floresta. Aí nos usam para desviar isso e o povo fica por conta.
Nesse estilo de proteção, todo o foco fica na pessoa que chamam de defensor,
mas deixam inúmeras pessoas totalmente abandonadas, totalmente vulneráveis,
sendo que são elas que continuam lá, defendendo a terra. Então tiram um ou
outro ameaçado, sendo que o povo todo é ameaçado.
Então quem é defensor é quem está lá vivendo com
coragem de entrar, de enfrentar o capim, sabendo que o fazendeiro não vai
querer, vai atrapalhar, e mesmo assim segue plantando a floresta. A gente
ajuda, mas, se você pensar, a gente vive a custo da miséria das ameaças do
povo. Se acabar, ficaríamos desempregadas. Sistemicamente é isso.
Desde quando a CPT começou a fazer a lista dos
ameaçados em conflitos de terra, eles perguntam pra gente “cadê os nomes de
Anapu?”, e a gente sempre fala que não faz essa lista, porque isso destaca
pessoas, é prato cheio pra quem quer matar. É confirmar quem é a liderança. Aí
a gente recusa. A gente acredita que tem que se lidar com ameaças de forma
comunitária, para não deixar as vítimas mais vulneráveis ainda.
• Quando
o Estado abre um programa de defensores de direitos humanos, ele também
confessa a incapacidade de lidar com a questão, porque deveria impedir ameaças
e não esconder ameaçados. Vocês duas estão em algum programa?
Jane Dwyer — Não, a gente recusa, porque quem
deveria estar é o povo, e, se o povo estivesse protegido, estaríamos protegidas
também.
Katy Webster — Estamos criando sistemas de
organização entre nós mesmos para que possamos nos proteger, para que a
comunidade nos proteja e não seja preciso tirar gente pra fora nem colocar
polícia pra dentro, e sim fazer uma proteção entre nós. O povo mesmo tem
pensado nisso.
• Vocês
têm algum exemplo dessa organização?
Jane Dwyer — No Lote 96, a gente tinha montado todo
um sistema de segurança, de internet, de câmeras, tudo, por conta dos ataques
que estavam acontecendo de três em três meses. Aí a energia foi embora e o povo
ficou totalmente isolado e vulnerável. Imagina o medo. Agora, devagarzinho,
estamos conseguindo energia solar para pelo menos manter algum tipo de
segurança e áreas com internet.
Katy Webster — Durante o Luz para Todos, a energia
estava entrando em toda biboca aqui no município, inclusive áreas sub judice,
que não estavam 100% regulares. O povo ajudava a colocar os postes. Faz tempo
que os conflitos passam por essa questão da energia. Os capangas dos
fazendeiros que achavam que eram donos das terras mandavam parar a instalação.
Era pra ter energia nos lotes 96 e 97 há anos, mas o Peixoto [falecido
fazendeiro proprietário de terras vizinhas aos lotes] travou essa energia e a
palavra dele vingou. Agora, de repente, tinha um projeto da Norte Energia para
implantar energia lá. Mudou a empresa concessionária, e a Equatorial assumiu e
avançou, trouxe os postes, transformadores, fiação e começou. Mas de repente,
de novo, tudo foi embargado. O povo conseguiu ficar com o equipamento, os
postes, a fiação, e terminaram por conta. Teve energia por um ano e quatro
meses. Mas aí apareceram 10 caminhões e 14 viaturas da polícia pra tirar a
energia, alegando que era uma área de conflito, sub judice. Isso foi em 29 de
novembro do ano passado. Depois, descobrimos que foram os produtores rurais que
se reuniram em Belém pra botar pressão em cima da Equatorial lá.
Jane Dwyer — O Silvério [coordenador do núcleo
Transamazônica da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa).
Silvério, que já foi vice-prefeito de Altamira, representa uma das famílias
mais poderosas da região, no sudoeste do Pará, reivindicando milhares de
hectares de terras sem titulação definitiva. Em 2018, quando presidia o
sindicato rural da cidade de Anapu, ele liderou acusações de associação
criminosa e invasão de propriedade que levaram à prisão do padre José Amaro
Lopes de Souza, da prelazia do Xingu, por três meses].
• E já
tem investigação disso?
Jane Dwyer — Não. O Ministério Público convocou uma
reunião para ver isso. Diz a promotora que não consegue falar com o advogado da
Equatorial em carne e osso. Ele quer fazer virtual e ela não quer. Aí ficam
adiando e vão ganhar no cansaço.
• Então,
mesmo com o falecimento do Peixoto, o fazendeiro que se dizia dono dos lotes 96
e 97, existe essa mobilização de fazendeiros para defender a privatização
dessas áreas? Um grupo que se defende entre si mesmo quando não está
diretamente envolvido no conflito?
Katy Webster — No caso da fazenda do Peixoto, a
herança é uma confusão total. Não sabemos quem da família assumiu, e parece que
uma empresa de criação de gado ligada a um frigorífico comprou parte das
terras.
Jane Dwyer — O problema é que já vimos o Silvério e
outros fazendeiros acompanhando o Peixoto muitas vezes. E no dia que a polícia
tirou a energia dos lotes 96 e 97 o Silvério estava lá, dentro de um carro. Ele
não desceu, mas viram ele.
• Durante
o Fórum Agrário do Ministério Público, o Silvério também estava lá, junto à
Maria Augusta, presidenta do Sindicato dos Produtores Rurais de Altamira
(Siralta). Ele e outros representantes do agronegócio costumam frequentar esses
espaços?
Jane Dwyer — Quando o pessoal do Lote 96 entrou na
reunião e viu ele, ficaram se tremendo de medo. Parece que eles não faltam em
nada, mas nós é que não frequentamos. Se for para sofrer, a gente fica aqui
sofrendo com o povo. Nós fomos ontem, porque o MP [Ministério Público] colocou
a foto da nossa escola no cartaz e achamos interessante. E ele [Silvério]
também foi por isso.
• A
escola em questão é a escola do Lote 96, que foi incendiada no ano passado,
certo?
Jane Dwyer — Sim, foi queimada em agosto do ano
passado. A cada três meses, eles atacavam de alguma forma.
• Na
reunião, o Silvério disse que queria um espaço para discutir a questão da
regularização fundiária, e que achava que a questão da educação deveria ser
debatida em outro espaço.
Jane Dwyer — Sim, o MP está querendo resgatar a
temática das escolas comunitárias do campo. Querem promover a educação do
campo, que é toda uma outra educação, com outro currículo e calendário. A lei
promove isso, mas nunca foi cumprida. Todos lá estavam a favor. Quando ele
questionou [o tema da reunião], a promotora respondeu: ‘Eu sei qual é o meu
trabalho e a responsável sou eu’. E ele acabou deixando a reunião.
Quando você tira uma escola de uma comunidade
rural, vai contra toda a natureza, a cultura e a história dessa comunidade. Faz
ela virar gado e toras de madeira. O que estavam dizendo é que o currículo
deveria ser focado no campo, nas águas, na floresta, para manter essas
comunidades. A escola é um ponto de referência não só da meninada, mas familiar,
comunitário. É onde se reúnem, se organizam, aprendem e discutem, é onde se
reúne gente de fora, de sindicatos, para ajudar o povo a entender as coisas.
Então, sem a escola, o povo fica sem ponto de união.
Ontem ficou claro o incômodo que o sindicato rural
tem com isso. E também se incomodam porque o nome da nossa escola é Paulo
Anacleto, que foi um vereador do tempo de Dorothy, de uma família tradicional
aqui de Anapu, que era influenciado pelos poderes, à direita. Ele ajudou a
declarar Dorothy pessoa non grata [pela Câmara dos Vereadores de Anapu, em
2003]. Mas, com os anos, começou a frequentar espaços diferentes, como o
Conselho Tutelar, se tornou presidente da Associação dos Mototaxistas e começou
a ver as coisas de outra forma. Se aproximou de nós, frequentou a Comissão em
Defesa de Anapu e falou que era uma pessoa errada, que estava entendendo coisas
e mudando. Que estava vendo Dorothy e a nós de outra forma. Aí ele foi
assassinado, em dezembro de 2019.
Mataram Márcio, um trabalhador de roça que, por não
conseguir sustentar a família, por não ter terra, começou a trabalhar como
mototaxista. Era protegido pelo Paulo. Mataram ele. [Márcio Rodrigues dos Reis
era a principal testemunha de defesa do padre Amaro Lopes, outro colega da CPT
que trabalhava próximo à irmã Dorothy Stang e foi acusado de uma série de
crimes por fazendeiros do Siralta. Amaro foi preso em 2018. A CPT denuncia
armação e assassinato de reputação por parte do sindicato.] Paulo disse que
sabia quem tinha matado, começou a cutucar a polícia. E foi assassinado também.
Agora ele é nosso, pelo caminho mais torto que existe no mundo. Colocamos o
nome dele junto à cruz dos outros 18 assassinados desde que assassinaram
Dorothy.
Perguntamos à família dele primeiro, porque eles
são da Assembleia de Deus. Mas nós não temos religião, nossa religião aqui é
lutar pela terra, é a mistura de todos os encontros. Mas perguntamos por conta
da cruz. A família disse pra colocar. Então quem começou acusando Dorothy Stang
terminou na mesma cruz que ela. O povo reconhece essa transformação dele, e por
isso demos o nome dele pra escola do Lote 96. Isso deixou os fazendeiros com
ainda mais raiva da nossa escola.
• Vocês
chamam de “consórcio da morte” esse grupo de poderosos, ligados ao agronegócio
e à política local, que estão por trás do assassinato de todas essas pessoas ao
longo das últimas décadas. De que forma os anos do mandato de Bolsonaro
impactaram esse “consórcio”? Os fazendeiros e a pistolagem estão mais armados?
Jane Dwyer — Eu acho que o bolsonarismo estava aqui
em Anapu antes do Bolsonaro se eleger. Ele não é o fundador desse negócio. Aqui
é a direita que manda. Esses fazendeiros acham que têm razão, que têm direito,
a propriedade privada reina e acham que povo é burro. E por isso eles dizem que
educação não tem nada a ver com a pauta agrária, porque acham que a educação é
uma ameaça. A impunidade é a maior ameaça. Além disso, a prefeitura aqui é uma
máfia que mata, mata seus próprios até.
Katy Webster — A gente fica um pouco distante disso
e só escuta o que falam na rua. Mataram o irmão do Silvério em 2018. O Silvério
até tentou dizer que foi a mando do Amaro [padre José Amaro Lopes de Sousa, da
CPT, preso em 2018, durante processo de perseguição jurídica pelos fazendeiros
da região], mas ninguém acreditou, ninguém. Nem a polícia, porque sabiam que o
irmão dele estava envolvido em um conflito com madeireiros. Tinham matado duas
pessoas da prefeitura um tempo antes, Raimundinho, secretário das Obras, foi
morto na região da 115 Sul. Ninguém foi preso.
Jane Dwyer — Nem uma palavra de luto da prefeitura.
Katy Webster — A própria prefeitura se condenou
porque nem uma nota de pesar fizeram. Depois, não faz muito tempo, mataram o
Osvaldo, que era secretário de Finanças, e estava pensando na possibilidade de
se candidatar a prefeito. Aí foi assassinado aqui perto, no meio de uma casa de
material de construção. A gente pensava que finalmente ia ver gente presa, mas
nada.
Jane Dwyer — Mesmo quando todo mundo sabe quem
matou, eles entram e saem da prisão.
• Mas
vocês acham que o poder de fogo desse “consórcio” aumentou?
Katy Webster — No final do ano passado, uns
pequenos agricultores amigos nossos relataram pra gente que um fazendeiro que
mora em um distrito de Senador José Porfírio, município vizinho daqui, está com
um esquema de segurança fortíssimo, cheio de gente armada para defender o
proprietário. Parece que a polícia foi lá na virada do ano para verificar e tem
um arsenal de armas, tudo registrado. A polícia foi pra lá limpar e não tinha
condição.
Jane Dwyer —
Estavam matando gente por lá, mas nunca houve um processo para confirmar quem
era responsável. É um fazendeiro conhecido, que já se envolveu em conflitos
aqui em Anapu, como o assentamento Mata Preta. Na época, em 2016 e 2017,
pistoleiros invadiam o tempo todo, queimaram as casas, as roças, atiravam em
animais, tentando fazer o povo reagir no mesmo nível. E o povo tomou a decisão
de não devolver. Esse fazendeiro já foi preso também, mas hoje está solto. Um
dos nossos companheiros assassinados tinha chegado a afirmar em entrevista que,
se morresse, seria pelas mãos dele. E hoje parece que está fazendo pior, com
mais violência e esse arsenal regularizado, legal. Eles fazem, eles estão
armados, e mesmo descobertos segue igual.
Hoje, esse fazendeiro está nessa gleba “Belo
Monte”, que é uma nova fronteira agrícola. Aqui em Anapu, a terra era
considerada melhor, mas já está quase cheia, mesmo que ainda vazia de
agricultura familiar. Esses últimos decretos do Bolsonaro, entre 15 e 22 de
dezembro, foram feitos pra isso aqui voltar aos anos 1970, no início da
colonização, para garantir direito a quem estava aqui antes. Eles estavam aqui
primeiro, porque grilaram tudo, e venderam em consórcio.
• E
houve alguma mudança no caráter das ameaças?
Jane Dwyer — Os fazendeiros hoje fazem churrascos e
gravam vídeos, esse é um dos jeitos de ameaçar aqui. Passam uma mensagem de
WhatsApp: “Esse é fulano, esse é beltrano. Estamos unidos, ninguém vai ocupar
aqui”. A gente avisa, denuncia, mas não dá em nada. Foram para Brasília, mandaram
um vídeo em reunião com o presidente do Incra, com o senador Zequinha Marinho.
Tudo é mandado assim, as ameaças vêm assim. Mas o povo não entra na lógica, o
povo é calado, reúne conosco e segura a peteca na medida do possível. Nesses
anos todinhos, Anapu, sendo tão violenta, nunca morreu um fazendeiro pelas mãos
de um trabalhador. Nunca, até hoje.
Mas na pandemia nosso povo se firmou. Não nos
reunimos, mas nos comunicamos por WhatsApp. Depois de alguns meses, começamos a
seguir madeireiros – eles não sabiam que era nosso carro – e pegamos muita
informação e denunciamos assim.
• Mas
de que forma essas denúncias são feitas? Porque, pelo que estou entendendo, o
poder público está ligado a esse “consórcio”. Existe uma segurança pública
efetiva?
Jane Dwyer — A segurança pública sempre foi contra
o povo. Nunca teve. Nem a Deca [Delegacia Especializada de Conflitos Agrários].
Teve uma época que tinham seis pessoas ameaçadas lá no PA Mata Preta. Tinham me
dado um nome de um policial em Belém, para eu telefonar quando as coisas
apertassem, e eu telefonei. Enquanto eu falava com esse policial, os assentados
estavam na delegacia falando com o delegado, denunciando um assassinato. Tinham
acabado de descobrir um corpo de um agricultor desaparecido há dias, o corpo todo
apodrecido, e queriam que a polícia fosse lá. Ouviram do delegado que
“trabalhador se mata toda hora, que a polícia não podia correr atrás disso”.
Mas aí o meu contato em Belém telefonou para o delegado, enquanto o povo ainda
estava lá, e ele mudou na hora, disse que ia organizar a operação. É uma
impunidade e corrupção tão grandes que não tem como. A gente já teve uma ótima
delegada, mas não deixaram ela trabalhar. O prefeito foi denunciar ela em
Belém, e transferiram ela.
O último delegado da Deca Altamira nós tentamos
tirar, e parece que conseguimos. Foi o Ivan Pinto. Ele já havia sido
transferido da Deca Marabá por conta da sujeira que fez por lá. Foi denunciado
pela Alepa [Assembleia Legislativa do Pará], pela CPT e pela defensoria
pública.
• E
vocês têm contato com o atual delegado da Deca Altamira?
Jane Dwyer — Não.
Katy Webster — Tivemos uma live com o novo
delegado, não lembro o nome dele. Ele nunca mais apareceu.
Jane Dwyer — Muda tanto. A gente nunca conhece.
Porque nosso estilo não é de lidar com isso, e sim agilizar para que o povo
assuma e determine seu futuro. A gente orienta, porque eles têm que aprender a
usar e forçar o sistema público para defendê-los.
• Então,
aqui vocês não confiam na polícia para denunciar?
Jane Dwyer — Nada. A gente até tem contato, mas
confiar na polícia… Teve um tempo agora, no ano retrasado, a gente estava
denunciando extração ilegal de madeira para o MPF e MPE [Ministério Público
Federal e Ministério Público Estadual], e eles protegiam a gente, nunca
divulgavam nossos nomes e conseguiam fazer o Ibama agir. Mas, no ano retrasado,
entrou um novo procurador, ex-delegado da Polícia Federal, e acho que a
presença dele mudou o sistema. Disseram que a gente teria que passar a
denunciar diretamente para a Polícia Rodoviária Federal [PRF]. Aí nós pedimos
um nome de confiança e disseram que não poderiam passar. Então, não tem como.
Telefonar para um lugar aberto que ninguém sabe quem vai atender?
Provavelmente, vão nos matar e matar nossos companheiros. Passamos um ano
sofrendo, vendo a madeira saindo daqui, as castanheiras, oh, meu Deus… Mas a
gente não entrou em contato. E hoje sabemos de todo o escândalo na PRF. Então,
confiar na polícia?
Por conta de toda a violência e impunidade, foi a
Dorothy que conseguiu convocar a Polícia Civil aqui. Antes não tinha. E, então,
o delegado da Polícia Civil ficou contra ela. Foi ele que criou todo esse
problema, junto com os fazendeiros.
• Como
assim?
Jane Dwyer — Esse delegado ficou do lado dos
fazendeiros. Ela pedia acompanhamento, escolta, mas ele nunca deu. Chegou a
dizer que o carro estava quebrado. E foi ele que montou todo o esquema contra o
Geraldo Magela [técnico agrícola e ex-prestador de serviços do Incra que era
braço-direito de Dorothy]. Ele era muito forte na defesa do Projeto de
Desenvolvimento Sustentável Esperança. Lá tem madeira, minério e o melhor solo
de Anapu. Ele ajudava a Dorothy a segurar a entrada de criminosos. Mas queriam
matá-lo também. O plano era criar um tiroteio lá mesmo e matar os dois, mas
eles não estavam juntos. Dorothy morreu de manhã e à noite morreu o agricultor
Adalberto Xavier, o Cabeludo. Aí o delegado tentou incriminar o Magela, dizendo
que ele era o mandante dos assassinatos. Ele teve que ficar 18 anos foragido, e
no ano passado houve o julgamento do caso, e ele foi inocentado. O nosso
advogado viu no processo da Dorothy que o Magela estava fazendo um Boletim de
Ocorrência do assassinato dela na mesma hora do assassinato do Cabeludo. Então
tinha uma prova dentro do processo o tempo todo de que ele estava na Delegacia
da Polícia Civil de Anapu fazendo BO, na hora do segundo assassinato. O rapaz
passou 18 anos foragido para não ser preso. Se fosse preso, provavelmente teria
sido assassinado. E o delegado que criou tudo isso tinha a prova da inocência
nas mãos dele o tempo todo. É tão macabro.
• A
pistolagem também é formada por policiais?
Jane Dwyer — Tem envolvimento de policiais, sim.
Isso tem sido comprovado.
• E o
sindicato rural tem proximidade com a polícia?
Jane Dwyer — Deve ter, mas a gente não frequenta
esse povo. Ficamos o mais longe possível. Nossa porta não é aberta para eles,
eles não chegam nem perto de nossa casa.
Nosso trabalho é fazer o Incra criar coração. Temos
um secretário de Agricultura que confiamos hoje em dia, o bichinho numa situação
terrível. Numa prefeitura da morte, ele é a vida. Ele está começando a promover
feiras com produtos fornecidos pelo nosso povo. Lá no Lote 96 tem macaxeira,
farinha, melancia, limão, biribá, mais de 300 abóboras. Isso no lugar que
disseram que deveria ficar o gado, porque o povo não trabalhava. Tá lindo.
Fonte: Por Julia Dolce, da Agência Pública
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