Por que um pai ameaçou professoras com uma arma no interior de SP
Ameaçadas por uma arma de fogo, professoras de uma
escola municipal de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, tiveram que explicar
suas práticas em sala de aula para a família de uma aluna. Irritado, o pai da
criança queria justificativas por não ter recebido uma lembrança de Dia dos
Pais. Questionou também exercícios pautados pela apostila didática, que
abordavam o papel da mulher na sociedade, dizendo que o conteúdo era
doutrinador e ideológico.
“Se não estão ensinando nada de errado, não é para
ter medo”, ele afirmava com a arma exposta, de acordo com o boletim de
ocorrência aberto pela direção da escola.
O caso teve repercussão nacional e chocou a
comunidade escolar e a população da cidade. É, entretanto, a mais recente
parada de um ciclo de ódio e violência iniciado muito antes e com vestígios
escancarados.
Em 2021, Vitor Tadeu Ferreira já criticava o que
chama de “ideologia de gênero” em suas redes sociais. Em maio de 2022,
compartilhou um post classificando o movimento feminista como doença. Em março
deste ano, compartilhou outro: “feminismo tá pior que o crack”.
Em seu perfil no Facebook, há dezenas de
publicações apoiando o porte de arma, criticando governos de esquerda,
enfatizando discursos da extrema direita como “bandido bom é bandido morto”,
além de posts com teor homofóbico, transfóbico e misógino. Manifestações de
apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que incentivou em seus discursos a
violência e o preconceito, também são frequentes em sua página.
Vitor é conhecido por seu perfil agressivo não só
nas redes sociais. Dono de uma sorveteria na zona leste de Ribeirão Preto, é
classificado no bairro como uma pessoa briguenta, de “pavio curto”. Discussões
são frequentes por ali, conforme relatos colhidos pela Ponte com três
moradores. “Ele é muito revoltado. Qualquer coisa quer brigar”, contou um
deles. “Tem briga sempre. Com a sorveteria fechada ou aberta. A gente escuta
ele gritar com funcionários, com a esposa”, relatou outro.
No dia 16 de agosto de 2023, o alvo foi a
instituição escolar. Acompanhado pela esposa, entrou na Escola Municipal Profa.
Maria Inês Vieira Machado exigindo explicações. Levou consigo a arma e, no
decorrer da conversa, apontou para as professoras e colocou-a sobre a mesa.
Para especialistas ouvidos pela Ponte, o caso
reflete os ataques recorrentes contra as instituições escolares praticados por
movimentos políticos da direita e da extrema-direita. E não é um ato isolado.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz
analisou 24 ataques a escolas ocorridos entre 2022 e abril de 2023, que
deixaram ao todo 137 vítimas fatais e não fatais. O estudo alerta para o
aumento representativo dessas ações. Até 2019, havia o registro de um ou dois
ataques por ano. A partir de então, a violência passa a crescer, conforme o
gráfico abaixo. Somente nos primeiros quatro meses de 2023 os casos de ataques
já haviam superado o número total registrado em todo ano de 2022, que havia
sido o período com mais ataques da década.
“A partir do momento em que não se valoriza o
ambiente escolar e se coloca a escola como inimiga, eu fico pensando: que tipo
de sociedade estamos construindo?”, questiona Tânia Dornellas, assessora de
advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma das instituições a
frente do relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no
Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”.
·
Porte ilegal de arma e
ameaça
Vitor está respondendo a um inquérito policial por
ameaça e porte ilegal de arma de fogo. O delegado responsável informou que está
colhendo depoimentos para dar andamento ao caso.
À Ponte, Vitor afirmou que anda armado porque já
sofreu assaltos. Em alegações após o ocorrido, disse que é CAC (caçador,
atirador ou colecionador de armas). O Exército Brasileiro confirmou que ele tem
certificado de registro de CAC, mas informou que não tem armas registradas na
modalidade.
Questionado pela Ponte sobre o ocorrido, Vitor
disse que irá se pronunciar no “momento certo” e que irá “pôr a verdade na
mesa”. “Inventaram um absurdo. Não é verdade”, alegou. Sobre a arma, nega que
tenha feito ameaças. “Elas já sabiam que eu ando armado. Não foi ameaça”.
Após a ocorrência, ele tirou a filha da escola e a
matriculou em outra instituição. “As ideologias que são pregadas na escola eu
tenho direito de não gostar.” E tentou se justificar: “O que eu faço de bom
ninguém fala! Eu arranquei pessoas da favela, ajudo todo mundo que passa aqui,
os casqueiros, dou picolé nas favelas”.
No dia 19 de agosto, três dias após entrar armado
na escola, ele publicou em sua página no Facebook: “Tentaram me enterrar. Só
não sabiam que eu era uma semente. Glória a Deus!”. No bairro onde ele mantém a
sorveteria já há alguns anos, o clima é de insegurança e desaprovação. “É um
absurdo, né? Se não concorda com a escola, tem outras formas de resolver”, nas
palavras de um morador. “O pessoal está com medo”, disse outro.
·
Professores silenciados e
desmotivados
Na escola Maria Inês Vieira Machado, professores e
funcionários tentam retomar a rotina de aulas. A tranquilidade, entretanto, já
não era cenário antes mesmo da ocorrência que fez a instituição ganhar os
holofotes nacionais.
“Estamos tentando voltar de forma a entender que o
medo não pode nos paralisar”, afirma João Bosco Cervi Mussolin Lagoeiro,
diretor da instituição.
Dois dias após o ocorrido, a escola compartilhou
uma carta à comunidade na qual o corpo discente cita que, antes da ameaçada
armada do pai, já haviam sido “desrespeitados e agredidos verbalmente em um
evento aberto à comunidade” e diz que esses episódios “comprometem a
estabilidade emocional de toda a equipe e a segurança de todos”.
Em outras escolas, o cenário não é diferente.
Professores se sentem amedrontados e coagidos em suas práticas escolares
rotineiramente. “Nos últimos anos, por iniciativa financiada por movimentos de
direita e extrema direita, a escola tem sido colocada como um espaço de
corrupção moral, que seria capaz de destruir o núcleo familiar idealizado pelos
grupos conservadores”, ressalta Leonardo Sacramento, presidente da Aproferp
(Associação dos Profissionais de Educação de Ribeirão Preto), pedagogo do IFSP
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo), professor
da rede municipal e pesquisador de desigualdade racial e social.
Uma professora de outra escola municipal relatou à
Ponte que também teve problemas com a festividade do Dia dos Pais. No caso
dela, uma família se incomodou com a orientação da professora para que uma
aluna, que tem como núcleo familiar duas mulheres, entregasse a lembrança para
uma delas.
“Tanto na sociedade quanto no Direito nós vivemos
uma diversidade do que é família. Esses setores têm dificuldade de compreender
que essas novas configurações não são ataques à família heteronormativa”,
analisa Luka Franca, jornalista, integrante do Núcleo de Pesquisa Direito,
Desenvolvimento e Descolonização USJT/CNPQ, da coordenação estadual do
Movimento Negro Unificado (MNU-SP), que participou do relatório “O extremismo
de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e
alternativas para a ação governamental”.
A professora conta também que semanas atrás teve
que conter um pai que entrou na escola para agredir o próprio filho e acabou
por quebrar o pé da criança.
“O professor tem que tomar muito cuidado com o que
fala. Você precisa ficar atento porque eles podem pegar o celular e gravar o
que você diz. Cortam, fica fora do contexto. No em tempo que você está na
escola, você precisa prestar a atenção em tudo: o que fala, como fala”,
desabafa outra professora, de uma escola estadual.
As festas religiosas também têm levado famílias a
questionar a escola, de acordo com relatos de outra profissional. As famílias,
de acordo com suas religiões, questionam a prática ou não de festividades como
Páscoa ou festa junina. Se a escola faz a festa, há reclamações, mas se não
faz, também é alvo de queixas.
“Eu me sinto desanimada, desvalorizada,
desprotegida. Não temos apoio das famílias, não podemos falar nada, pedir apoio
na questão da disciplina. Só dá medo…”, desabafa uma professora que escolheu a
profissão por afeto, desejava a docência desde a infância e soma uma década em
sala de aula.
Tânia Dornellas classifica o contexto como uma “lei
da mordaça”: “os professores estão sendo vigiados pelos pais, pelos próprios
alunos. No legislativo, diariamente temos propostas que buscam reforçar esse
ultraconservadorismo, debates que promovem essa perseguição aos professores”.
·
Professores seguros?
A postura da Secretaria de Educação de Ribeirão
Preto tem sido criticada pelos professores e instituições da cidade. Além do
medo que se intensificou na rede escolar, docentes também questionam a falta de
apoio da gestão municipal, que só se manifestou sobre o caso após a imprensa
noticiar o ataque.
“Apesar de toda violência que a gente acabou
enfrentando, não tivemos apoio de quem a gente mais gostaria e precisaria.
Enquanto escola, nós estamos muito desgastados com toda essa situação”,
desabafou uma das professoras da escola Maria Inês Vieira Machado, que preferiu
não se manifestar.
Para Leonardo Sacramento ,a postura é mais uma ação
entre outras que fragilizam a educação. “Se a secretaria não consegue
estabelecer uma postura de defesa à vida daqueles que trabalham na escola e
exige silêncio, como os professores podem se sentir seguros e confortáveis?”
Em nota, a Secretaria de Educação informou que
“repudia qualquer ato de violência e a ameaça de um pai aos nossos professores,
dentro de uma escola, é inaceitável”. Leia abaixo o texto na íntegra:
“A Secretaria da Educação repudia qualquer ato de
violência e a ameaça de um pai aos nossos professores, dentro de uma escola, é
inaceitável.
A Pasta tomou as medidas cabíveis no mesmo dia da
ocorrência, dia 16 de agosto, onde um Boletim de Ocorrência foi lavrado, e o
caso está sendo investigado pela Polícia Civil. A Polícia Militar e a Guarda
Civil Metropolitana foram até a escola, onde permaneceram durante a tarde e
acompanharam a entrada e saída dos estudantes nos dias subsequentes, junto com
uma equipe técnica da Pasta. A GCM continua apoiando a unidade escolar com
rondas diárias.
A escola também tomou medidas relacionadas à rotina
administrativa, como exemplo, agendamento antecipado para atendimento aos pais
e na companhia de um gestor da unidade.”
Fonte: A Ponte
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