Convite a resgatar o jornalismo e a internet
A internet, que já foi um espaço de trocas
culturais e de construção coletiva do Comum, está colonizada por um punhado de
grandes corporações. Como libertá-la? O jornalismo vive uma crise profunda e
prolongada. Será possível resgatá-lo? Estas duas questões, que estão muito
conectadas entre si, serão o tema de um encontro que Outras Palavras
co-organizará em breve — entre 21 e 23/5, em São Paulo, no Centro Maria
Antonia. O encontro se dá no âmbito do programa Cultura Viva — o mesmo que
espalhou milhares de Pontos de Cultura por todo o país, a partir das gestões de
Gilberto Gil no Ministério da Cultura, e do historiador Célio Turino, um dos
secretários da pasta.
Entre 2016 e 2022, o Ministério da Cultura
ficou totalmente inativo. Mas, em 2023, o programa Cultura Viva foi retomado.
Criaram-se Pontões de Cultura, que visam articular políticas e provocações
capazes de sensibilizar esta grande rede de milhares de Pontos. Em parceria com
o Coletivo Digital, uma organização de São Paulo, com vasta tradição de defesa
da internet livre, Outras Palavras apresentou uma proposta que foi selecionada.
Surgiu a partir daí o Pontão de Cultura denominado Sacix — referência cruzada a
um personagem da cultura popular brasileira e à cultura Linux, de software
livre. O Pontão, que vai organizar o encontro no Centro Maria Antonia, em maio,
tem dois objetivos centrais.
O primeiro é promover a Cultura Digital e
está relacionado à disputa pelo futuro da internet. O Coletivo Digital é uma
das organizações que anima a campanha Internet Legal, lançada há poucas
semanas, mas que já reúne dezenas de entidades. Sintomaticamente, é ignorada
pela mídia, mas está trabalhando para abrir um debate que, no Brasil, precisa
partir dos movimentos sociais, já que as instituições parecem rendidas às
grandes corporações.
O argumento central da campanha é: na forma
em que está, a internet é um desserviço às sociedades. Foi colonizada por
quatro ou cinco corporações e transformou-se num espaço de vigilância, de
captura de dados, de trabalho precarizado, de consumismo dirigido, de
manipulação eleitoral — em síntese, de corrosão do espaço público e de
angústia.
Evidentemente, o Coletivo Digital e a
campanha Internet Legal não são ludistas, não querem o fim da internet. Mas
estão convencidos de que as sociedades — em especial a sociedade brasileira —
têm algo a dizer sobre o presente e o futuro da rede. Isso exige
regulamentação, algo que as big techs querem evitar a qualquer custo.
Regulamentação significa estabelecer que os conteúdos que são criados e
postados por centenas de milhões de brasileiros não podem ser manipulados por
um punhado de empresas, em favor de seu lucro máximo e de seus interesses
políticos. Isso significa refrear o discurso de ódio, ao invés de promovê-lo.
Agir decisivamente contra as fake news, ao invés de servir-se delas para
ampliar os conflitos, as visualizações, a captura da atenção e, com isso, as
receitas e os lucros. Regulamentação significa, em especial, tornar
transparente o algorítimo — ou seja, a programação das redes sociais, para usar
um conceito do jornalista Bruno Torturra.
As mesmas tecnologias que levam estas redes a
escolher e distribuir conteúdos disruptivos, mas que geram lucros, podem, ao
contrário, estabelecer cooperação, troca de ideias, construção coletiva de
projetos. Quem vai estabelecer o sentido do algoritmo (ou programação) da
internet? Somente os donos das redes sociais? Ou as dezenas, centenas de
milhões de pessoas que produzem conteúdos incessantemente e fazem a riqueza
destas redes têm algo a dizer sobre isso?
Mas a campanha Internet Legal deseja ir além
da regulamentação. Diversas entidades que compõem o movimento estão de acordo
com o sociólogo bielorruso Evgeny Morozov de que é preciso construir outras
redes. Regulamentar é bom, diz Morozov, mas nos coloca sempre na defensiva,
sempre correndo atrás do prejuízo.
Como lembra o sociólogo Sérgio Amadeu, há no
Brasil vasto conhecimento, experiência e inteligência em programação. Centenas
ou milhares de excelentes programadores estão hoje trabalhando para corporações
transnacionais, porque já não encontram aqui oportunidades. Vejam o
desperdício: a sociedade brasileira formou estes profissionais com esforço para
que eles agora se vejam obrigados a trabalhar para as corporações que nos
oprimem. Não é hora de aproveitá-los de outra maneira, de oferecer-lhes outras
oportunidades? A isso pode-se agregar a cooperação Sul-Sul, em especial por
meio dos Brics. Países como a China e a Índia desenvolveram projetos de
tecnologia de informação muito avançados — em alguns casos capazes de rivalizar
ou superar os norte-americanos. Poderão estabelecer um trabalho em conjunto?
Tudo isso será debatido entre 21 e 23/5 no
Centro Maria Antonia, em São Paulo, durante o encontro da Rede Sacix. Mas, e o
Jornalismo?
O Resgate do Jornalismo é o outro eixo de
trabalho do Pontão Sacix. A crise da nossa atividade é evidente. As tiragens
dos jornais são, hoje, um terço ou um quarto do que foram no passado recente.
Dezenas de títulos de revistas simplesmente deixaram de existir. As redações
jornalísticas, que reuniam centenas de pessoas, quase desapareceram. As bancas
de revista agora vendem, para sobreviver, refrigerantes, mochilas, guloseimas
e… jornal para pet. Há, portanto, uma crise no jornalismo empresarial — provavelmente
sem solução e sem volta. Uma parte do problema é a mudança tecnológica. As
pessoas não precisam mais comprar um jornal para ter acesso a informações
básicas. A internet dá conta de informá-las e elas não pagam nada por isso. A
receita dos jornais com venda em bancas e assinaturas caiu dramaticamente,
bloqueando a atividade jornalística, que exige recursos.
Além disso, a receita publicitária também
despencou. A internet roubou os anúncios dos jornais. Ela permite ao anunciante
enviar cada mensagem a um público-alvo específico, gastando muito menos
dinheiro e com muito maior eficiência.
Do ponto de vista financeiro, portanto, há um
movimento em pinça contra o jornalismo empresarial: queda de vendas avulsas e
de assinaturas; e, ao mesmo tempo, diminuição drástica da receita publicitária.
Mas a tecnologia é apenas uma parte do
problema e o jornalismo precisa sobreviver ao fracasso do seu modelo
empresarial. Porque — e este é um dos pontos essenciais da construção política
do Pontão Sacix — o bom jornalismo é essencial para duas outras tarefas
civilizatórias essenciais: a reconstrução do espaço público e da própria
democracia.
O jornalismo é a atividade intelectual que
nos alerta para o novo, para o que desponta na vida social, econômica,
cultural, comportamental das sociedades.
O jornalismo não é necessário para avisar que
estourou um cano na rua — mas, sim, para ajudar a refletir sobre o
abastecimento de água nas cidades que afeta milhões de pessoas: que represas
construir, que sistemas de adução, que políticas de uso racional da água.
Nós não precisamos do jornalismo somente para
contar que há um novo incêndio na Amazônia. Isso pode ser feito por alguém que
esteja próximo e grave, num celular, um vídeo a respeito. Porém, ele é
necessário para investigar por quais razões multiplicam-se os incêndios. De que
forma a Amazônia está sendo ocupada. A partir de que interesses. Com que
ramificações no Parlamento, na Justiça, no sistema financeiro, nas corporações
internacionais? E, mais importante, o jornalismo é essencial para reunir
informações necessárias à mudança. Que políticas específicas podem coibir o
desmatamento? Como oferecer a dezenas de milhões de pessoas que vivem na
Amazônia ocupações dignas, relacionadas à manutenção da floresta em pé? Quais
seriam estas ocupações? Como promovê-las?
São somente dois exemplos, mas que mostram
que a busca destas explicações mais profundas e destas alternativas não pode
ser limitada a postagens nas redes sociais. Ela exige pessoas formadas para
examinar os problemas, pesquisar, entrevistar, comparar com outros exemplos em
outros países. E depois, contar o que apuraram, de maneira clara e,
preferivelmente, elegante e atraente. Este é o papel indispensável do
jornalismo.
Nos últimos meses, a pequena equipe do Pontão
examinou diversas alternativas, inclusive as que já estão em curso. Vamos
apresentá-las no encontro em São Paulo. Em face da crise, há iniciativas de
jornalismo independente buscando apoio no financiamento coletivo — como faz o
Outras Palavras, por exemplo. Outras focam no apoio de fundações. Outras,
ainda, buscam monetizar-se em plataformas como o Youtube. Tudo isso são
alternativas diante da crise.
Examinaremos uma possibilidade, em especial:
o financiamento público do jornalismo, por meio de mecanismos que mantenham a
sua independência e ampliem a chamada diversidade midiática. Isso significa que
a atividade jornalística, devido à sua importância e ao fracasso do antigo
modelo, precisa ser mantida pela sociedade. Uma parte da riqueza coletiva deve
ser direcionada para esta ação — assim como a sociedade destina recursos muito
maiores para o SUS e a Educação Pública, por exemplo. A tributação das receitas
ou dos lucros das big techs é um caminho. Há exemplos embrionários de ações
nesse sentido em diversas partes do mundo.
O horizonte de financiamento público
permitiria desconcentrar a produção jornalística. Beneficiaria, por exemplo, coletivos de
jornalistas interessados em examinar a vida social de uma cidade, cumprindo o
papel que os antigos jornais locais exerciam. Ou coletivos que se proponham a
examinar temas cruciais: a construção de cidades para todos, ou os rumos da
inteligência artificial, por exemplo.
Evidentemente, há riscos — e nós vamos
examiná-los também. O principal deles é: como evitar o “chapa-branquismo”, a
vinculação aos interesses do governo de plantão. É um desafio real e há
respostas muito possíveis para isso, como os sistemas de mediação. Pense, por
exemplo, que nas verbas públicas que financiam as universidades — mas o
ministro da Educação, ou o governador do Estado, não têm interferência nos
currículos, ou nos concursos que selecionam os professores.
Vivemos uma crise civilizatória profunda. O
velho mundo parece ruir diante de nós e não temos certeza de para onde iremos.
É um tempo de angústias. As saídas não cairão do céu, nem virão, provavelmente,
a partir das instituições. Elas estão rendidas, entregues ao velho, incapazes
de imaginar o futuro. É preciso ação consciente a partir das sociedades, em
torno de múltiplos temas.
Fonte: Por Antonio Martins, em Outras
Palavras

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