segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Marcas e gestos manuais: como símbolos apropriados por facções causaram mortes de adolescentes no Ceará

Um "risquinho" na sobrancelha. Um gesto feito com as mãos em uma foto. Traços simples do cotidiano custaram a vida de, pelo menos, três adolescentes no Ceará. Vítimas que tiveram a vida interrompida antes de chegar aos 18 anos. Eles foram confundidos com membros de facções criminosas por conta de símbolos apropriados indevidamente por estes grupos.

Em 18 de dezembro, Henrique Marques de Jesus, de 16 anos, foi encontrado morto na Vila de Jericoacoara. Ele estava em uma viagem com o pai, Danilo Martins. Membros de uma facção criminosa acreditaram que ele fazia parte de um grupo rival, após olhar fotos no celular do adolescente.

"As investigações apontam, até o momento, que os criminosos tiveram acesso ao telefone da vítima e, ao verificarem conversas e também algumas fotos, acreditaram que a vítima teria algum tipo de ligação ou era simpatizante de um grupo criminoso rival de origem paulista. Então, essa teria sido a motivação do crime", disse Márcio Gutiérrez, delegado geral da Polícia Civil do Ceará.

Henrique tirou fotos em que destacava três dedos nas mãos (polegar, indicador e dedo médio). No mundo do crime, o número "três" faz referência a uma facção cearense aliada ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Já o número "dois", está relacionado ao Comando Vermelho. O pai de Henrique afirmou que o filho não tinha conhecimento do significado do símbolo.

"Isso [símbolo que Henrique fez com as mãos nas fotos] é normal onde moramos. O moleque tinha 16 anos. Deveriam ter orientado: 'Aqui não pode fazer esse símbolo, é de outra facção', falado isso para ele ou qualquer outra pessoa que não tem ciência. Não fazer uma crueldade dessas, achando que um moleque de 16 anos era envolvido com facção", disse Danilo.

A Secretaria da Segurança Pública do Ceará informou que atua diuturnamente, por meio das vinculadas Polícia Civil, Polícia Militar e Coordenadoria de Inteligência (Coin/SSPDS), no combate aos grupos criminosos no estado.

<><> Apropriação dos símbolos

O professor Luiz Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, comentou sobre a apropriação de símbolos cotidianos da sociedade ao imaginário das facções criminosas.

“O que a gente tem observado aqui no Ceará é que esses símbolos têm sido usados para afirmação. A facção tem uma determinada simbologia, então ela usa determinados símbolos para afirmação desse lugar, dessa pertença ao grupo”, disse o pesquisador.

“Então, eles compõem uma identidade para o grupo e, obviamente, são símbolos que muitas vezes, você imagina, muitas pessoas fazem, o ‘V de Vitória’, mas acabou que esse símbolo se tornou símbolo de um grupo faccionado”, complementou o professor.

Luiz Fábio explicou que, muitas vezes, as pessoas sequer sabem que os símbolos estão associados a grupos criminosos. “Então, muitas pessoas, às vezes, fazem esse símbolo e não necessariamente estão associadas, mas o símbolo foi apropriado e, consequentemente, torna-se ali um elemento de identificação do grupo”, disse.

A intensificação dessas apropriações, inclusive, impactam a rotina social. “A gente, hoje, realmente precisa orientar os jovens para que eles, de fato, não tirem fotos com esse tipo de imagem que está associada ao grupo, mas, ao mesmo tempo, isso é um sinal de fracasso de uma sociedade, fracasso de um estado que não consegue efetivamente controlar a atividade criminosa”, avaliou o professor.

“Que tipo de sociedade é essa em que esse tipo de crime acontece? Como ele aconteceu? Então, isso é, de fato, assim, passa uma ideia de que, não só uma ideia, mas isso evidencia que a segurança no estado do Ceará, hoje, passa por problemas graves que precisam ser efetivamente discutidos”, destacou o docente.

Para o pesquisador, é necessário encontrar soluções para esses processos, que ele considera como formação de “uma comunidade moral e política” a partir das regras das facções criminosas. [“As facções] passam a atuar, exercendo domínio, exercendo controle de forma armada e organizada e atentando contra a vida de pessoas, mesmo que essas pessoas não estejam ali diretamente associadas”, reforçou Luiz Fábio.

<><> Coroinhas assassinados

Em 2019 e 2020, dois coroinhas foram assassinados em Fortaleza também após serem confundidos com membros de facção criminosa. Um deles teve o celular examinado, assim como o adolescente assassinado em Jericoacoara. O outro foi morto por uma simples marca na sobrancelha.

Em 2024, dois acusados de matar o coroinha Ronald Miguel Freitas de Oliveira foram condenados a 56 anos de prisão. A vítima, que tinha 15 anos, foi morta a tiros em 2019, na calçada da casa no Bairro Jacarecanga, em Fortaleza.

Ronaldo, que era coroinha na Paróquia São Francisco de Assis, tinha voltado de uma missa e conversava com a mãe na calçada de casa quando foi atingido por pelo menos um disparo na cabeça.

Segundo a denúncia do Ministério Público, no dia 24 de novembro de 2019, por volta das 19h, ele estava sentado na frente de casa, quando foi abordado violentamente por Pedro Henrique de Morais Pereira, o “Perneta”, João Levi da Silva de Oliveira e um terceiro suspeito, que à época tinha 17 anos.

O trio pegou o celular da vítima, pois suspeitava que no aparelho havia imagens de pessoas fazendo o sinal "V" com os dedos, o que para eles seria menção a um grupo criminoso rival ao que eles pertenciam. Após a inspeção, Pedro Henrique e o adolescente saíram. Ao retornarem, o adolescente atirou na cabeça do coroinha, que morreu no local.

Menos de um ano depois, foi assassinado Jefferson Brito Teixeira, de 14 anos. A motivação foi três cortes que ele tinha na sobrancelha — o que também foi avaliado como referência a uma facção criminosa.

O homicídio aconteceu no dia 18 de agosto de 2020 na Barra do Ceará, em Fortaleza. A vítima caminhava pelo calçadão quando foi atacada. Conforme denúncia do MP, Robson Vasconcelos, um dos suspeitos, membro de uma organização criminosa, abordou o adolescente e observou o formato da sobrancelha do coroinha, o levou até um beco e desferiu golpes contra a vítima.

Durante as agressões, Robson percebeu a presença dos outros acusados, também identificados pelas autoridades como integrantes de uma facção. Foi quando Vasconcelos teria gritado: "Vem, vão ajudar não? É pilantra, tá falando ‘tudo três’!”

"Atendendo ao chamado do primeiro denunciado, os corréus [criminosos] e o adolescente, de igual forma, iniciaram, também, uma sequência de agressões, agora com chutes, socos, paus e pedras. Nessa altura, a vítima já não expressava qualquer reação, não sendo suficiente, porém, para cessar as agressões", afirmou o Ministério Público.

<><> Veja nota na íntegra da Secretaria da Segurança Pública do Ceará

"A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS-CE) informa que atua diuturnamente, por meio de suas vinculadas Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE) e Polícia Militar do Ceará (PMCE) e da sua Coordenadoria de Inteligência (Coin/SSPDS), no combate aos grupos criminosos no Estado.

A atuação leva, estrategicamente, em consideração a dinâmica dos grupos criminosos atuantes na região Nordeste, bem como em todo o território nacional e até internacional, que tensionam a disputa por território para a comercialização de entorpecentes de maneira cada vez mais violenta, que potencializa os números de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs).

A partir disso, o Governo do Ceará criou o Comitê Estratégico de Segurança Integrada (Coesi), que visa, dentro de suas atribuições, promover a atuação coordenada entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de órgãos federais com atuação no estado - a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, em prol do combate ao crime no Ceará.

Além disso, a SSPDS-CE desenvolve diversas iniciativas com o objetivo de reforçar a atuação das Forças de Segurança no enfrentamento aos grupos criminosos em todo o território cearense. Entre as medidas adotadas para combater os crimes, destaca-se o investimento permanente do Governo do Ceará em tecnologia, inteligência e equipamentos, bem como na valorização e dignidade dos profissionais.

No contexto do combate aos grupos criminosos, é importante destacar a atuação da Delegacia de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco) e do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da PCCE; e do Sistema Estadual de Inteligência (Seisp), coordenado pela Coin da SSPDS-CE.

Dentro do processo de reestruturação e modernização da PCCE, o Governo do Ceará sancionou, no último dia 19 de dezembro, a criação de um Departamento de Repressão ao Crime Organizado (DRCO), englobando a Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e a Delegacia de Narcóticos (Denarc); e a criação da delegacia especializada em armas de fogo, munições e explosivos (Desarme).

O departamento, por sua vez, terá alcance em todas as regiões do Estado, com 30 novas seções de inteligência, que deverão atuar em suas respectivas Áreas Integradas de Segurança (AISs) circunscricionais.

Outros esforços incluem a regulamentação do Seisp e a inauguração do Centro de Inteligência do Ceará (CIC), que funciona no Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp). No CIC, estão fisicamente reunidas seis agências de inteligências – das quais quatro são vinculadas à SSPDS-CE, uma vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (SAP) e uma vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), facilitando a troca de informações e a integração entre as equipes. São elas: a Coin da SSPDS-CE; o Departamento de Inteligência Policial (DIP) da PCCE; a Assessoria de Inteligência (Asint) da PMCE; a Coordenadoria de Operações e Inteligência (CCOI) do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará (CBMCE); o Centro Integrado de Inteligência de Segurança Pública do Nordeste (CIISPR) do MJSP; e a Coordenadoria de Inteligência (Coin) da SAP. Além do aumento da presença policial em territórios conflituosos, a SSPDS-CE reforça a importância do trabalho investigativo no âmbito da Polícia Judiciária, com ações coordenadas pela Draco, unidade especializada da PCCE."

 

¨      Cantora apaga videoclipe após ter gesto comparado a sinal de facção na Bahia

A cantora de trap baiana Duquesa apagou um videoclipe do YouTube, após viralizar nas redes sociais por surgir fazendo um gesto comparado ao sinal de uma facção com atuação no estado. Nas imagens, que também viraram "trend" no TikTok, a artista exibe três dedos em destaque para a câmera, ao citar o número três na letra da música "Fuso".

Em nota publicada nas redes sociais, Duquesa explicou que decidiu apagar o trabalho após ser informada da associação feita ao gesto, que se refere ao Bonde do Maluco. A cantora esclareceu ainda que os três dedos exibidos por ela faziam referência ao período em que passou nos Estados Unidos para participar de uma premiação.

"É importante destacar que a mensagem da artista é de empoderamento feminino, e o gesto não tinha qualquer intenção criminosa. Isso nunca fez parte da carreira da cantora", aponta a nota.

No mesmo posicionamento a baiana destacou também que, em breve, lançará um novo conteúdo para a música, que vai substituir o videoclipe anterior. Já em um vídeo compartilhado no Instagram, ela comentou a polêmica envolvendo a situação.

“Muita gente que me perguntou ‘Aí Duq por que não pode fazer os sinais? O que está acontecendo?’, são pessoas de fora da Bahia, não entendem o que está acontecendo, mas aqui na Bahia, simbologia com as mãos que simula números, gestos… no geral, usar as mãos em fotos, em vídeos, estão sendo associadas a símbolos de organizações criminosas”, explicou a rapper.

<><> Sinais e facções na Bahia

Os casos de violência provocados por gestos associados a facções criminosas têm acontecido com certa frequência no país. Na Bahia, algumas situações se destacam, como as mortes de Gustavo Natividade, de 15 anos, e Daniel Natividade dos Santos, de 21, ocorridas em outubro do ano passado.

Percussionistas do Malê Debalê, um dos principais blocos afros do Brasil, os irmãos foram atacados a tiros em um destino turístico de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), depois de uma foto fazendo sinais com as mãos, que podem ter sido confundidos com gestos de facções.

Em agosto do mesmo ano, a adolescente Maria Heloísa Santana de Jesus foi morta no bairro da Fazenda Grande do Retiro, na capital baiana, após surgir dançando em um vídeo feito em uma festa. Nas imagens, conforme detalhou a Polícia Civil (PC), uma pessoa teria passado fazendo o sinal de uma facção rival da com atuação na localidade onde a menina morava.

Ao g1, o policial civil das Operações Especiais Douglas Pithon explicou a relação desses grupos com os gestos e siglas que são associados a eles. Para o especialista em inteligência e segurança pública, o objetivo é o mesmo: reconhecimento.

"É importante passear na história e perceber que os grupos extremistas ou criminosos, sempre criaram siglas, símbolos e estilos próprios com o objetivo de serem reconhecidos, um dos maiores exemplos é a suástica nazista", afirmou.

Além de marcar território, esses grupos também acabam impondo regras, deveres e até proibições aos moradores das comunidades onde estão instalados, conforme detalhou Pithon.

"Nos últimos dez anos, as duas maiores facções do Brasil têm intensificado suas ações no nordeste do país, incluindo a Bahia. Logicamente, as mesmas ações implementadas nos outros estados começam a surgir de uma maneira mais intensa também no território baiano", explicou.

Apesar da movimentação já existente no estado, o especialista classifica a atuação das facções criminosas como recente e destaca, como contrapartida, a ação integrada da segurança pública para combater e impedir a expansão.

"O fato é que isso ainda é embrionário, e as forças de segurança estão trabalhando integradas, com foco nas ações de inteligência para prospectar cenários e mapear riscos. Além das intervenções investigativas realizadas pela Polícia Judiciária com objetivo de prender lideranças e apreender bens financeiros, enfraquecendo o poder desses grupos. Enfim, a estamos utilizando todos os recursos para dar o enfrentamento necessário a essa problemática", detalhou.

O policial civil também ressaltou a necessidade da intervenção de outras áreas da sociedade no combate às facções, como as entidades não governamentais, a escola e a Justiça. Mas enfatizou a necessidade do cuidado, sobretudo com os jovens.

"Eu sou pai e tenho um filho de 13 anos e uma filha de 14 anos, e minha orientação é que não façam esses gestos, não escutem músicas que façam apologia ao crime, e não frequentem locais onde exista incidência de grupos armados. É o óbvio e é uma realidade, precisamos olhar para além e perceber que essa situação precisa ser encarada de frente", pontuou.

<><> O que diz a Secretaria da Segurança Pública

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) informou que tem ampliado o combate às facções no estado desde 2024, e citou prisões ocorridas ao longo do ano relacionadas às investigações. 

"A Secretaria da Segurança Pública destaca que ampliou o combate às facções em 2024. Noventa e quatro líderes foram alcançados, entre eles 22 que faziam parte do Baralho do Crime. Acrescenta também que 86 fuzis (número recorde) foram apreendidos, impactando diretamente na redução das mortes violentas em todo o estado. Por fim, a SSP reitera o compromisso do combate incansável contras os grupos criminosos, em 2025".

 

Fonte: g1

 

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