“Somos feitos de consciência e matéria. Não
superaremos as máquinas com os números”, diz Federico Faggin
“A humanidade está
numa encruzilhada. Ou volta a acreditar que tem uma natureza diferente daquela
das máquinas, ou será reduzida a uma máquina entre máquinas. O risco não é que
a inteligência artificial se torne melhor do que a gente, mas que decidamos
livremente nos submeter a ela e a seus donos".
Federico Faggin é
um dos maiores inventores vivos. Talvez o maior inventor vivo. Ele é o pai
do microprocessador, o bloco de construção no qual se baseia toda a computação moderna, inclusive a supercapacidade de cálculo da IA. De Vicenza, 83
anos, vive em Los Altos Hills, Palo Alto, Califórnia, há 56 anos. Ele está
entre os homens que mais contribuíram para a aceleração da tecnologia no último
meio século. Durante décadas, ele acreditou na tecnologia. Em sua capacidade de
replicar o ser humano, sua inteligência e
consciência. Faggin tentou isso durante anos. Então,
no fim da década de 1980, no auge de seu sucesso profissional e econômico, ele
passou por uma profunda crise existencial. Coroada por um episódio. "O
despertar", como ele o chama hoje. Um evento que o levou a estudar e
estudar a si mesmo. E a elaborar, junto com Giacomo Mauro D’Ariano,
professor de física teórica da Universidade de Pávia, uma teoria sobre a
consciência e a realidade que afunda as raízes nas questões ainda hoje obscuras
e vertiginosas da mecânica quântica.
<><> Eis a
entrevista
·
Faggin, suas invenções lançaram as bases da
revolução da informática. Você é um físico, um homem da ciência. No entanto,
hoje fala sobre um evento na sua vida que revirou todas as crenças, todas as
perspectivas.
Conto essa história
porque foi um evento fundamental. Antes daquela experiência, eu havia aceitado
uma visão de mundo reducionista, a mesma que atualmente domina o mundo da ciência e
da tecnologia. Eu me considerava uma máquina, sabia que era uma
máquina e queria provar isso. Naquela época, eu estava estudando a consciência
com a ambição de entender como ela funcionava e replicá-la em uma máquina.
Tinha se tornado uma obsessão, mas eu não estava conseguindo.
·
Até que aconteceu seu
"despertar".
Era o fim da década de
1980, época em que eu estava dedicando mais energia para resolver o problema
da consciência. Eu estava de férias em Lake Tahoe, na Califórnia.
Levantei-me à noite, voltando para a cama senti uma energia fortíssima saindo de
meu peito. Foi uma experiência que durou vários minutos e me abriu as portas
para uma nova maneira de ver o mundo.
·
O que percebeu quando olhou para o outro
lado?
Que eu estava tentando
resolver um problema impossível. Que o homem e a sua consciência não podem ser
reduzidos a máquinas e matéria. Que eu achava que minha abordagem reducionista do mundo tinha me trazido riqueza e felicidade, mas não
era verdade, porque eu estava fazendo isso à custa de abolir a interioridade.
Naquela noite, descobri a união essencial entre exterioridade e interioridade.
Que a consciência não nasce da matéria. Percebi que a única coisa
importante a fazer era estudar a consciência, não para reproduzi-la em
uma máquina, mas para unir ciência e espiritualidade.
·
Aquela experiência foi seguida por 30 anos
de estudos que o levaram a elaborar uma teoria baseada em uma interpretação dos
campos quânticos, do colapso da função de onda, desdobrando-os sobre o tema
da consciência e do livre arbítrio. Com D’Ariano, vocês
reúnem âmbitos de estudo até então irreconciliáveis. Como você acredita que a
comunidade científica reagirá?
No momento, é muito
cedo para dizer. Mas a ciência já sabe que não conhecemos
a realidade apenas com os números. Que nem toda
a realidade é redutível à matéria. Em meu livro, defendo que
a consciência e o livre-arbítrio são capazes de explicar
a física quântica, e não o contrário. Que é a consciência que cria a
matemática, e não o contrário. Há uma parte do mundo, consciente, interior, que
não pode ser calculada, mas que só pode ser experimentada.
·
Alguns pensarão que essa sua seria a
extrema tentativa de uma humanidade destronada para retomar as rédeas
do mundo postulando a sua própria superioridade.
É possível e somos
livres para pensar assim, mas os fatos são fatos: é preciso explicar como
a consciência emerge da matéria, caso contrário, a acusação é vazia. E, além disso, me permita
dizer uma coisa.
·
Claro.
É a ciência que diz
que somos máquinas e matéria. É um ponto de vista aceito por todos, eu diria
que por 100% da comunidade científica e do mundo que atualmente domina a
tecnologia. Pouquíssimos têm uma mente aberta para a possibilidade de que o
mundo possa não ser como a ciência quer que seja, ou seja, materialismo e
reducionismo.
·
Também é verdade que a maçã
de Newton caindo sobre a cabeça é uma experiência que todos podem ter
para entender a gravidade. Um despertar da consciência é para poucos
afortunados.
Existem métodos para
experimentar algo semelhante. Não estou falando de drogas, das quais não tenho
experiência e não uso, mas também certas meditações ou métodos de respiração
levam a uma percepção de si mesmo diferente.
É preciso se perceber
como consciência para se aproximar à própria natureza irredutível.
·
Essa é uma experiência que
uma inteligência criada em um laboratório poderia ter?
Não, a inteligência
artificial é simbólica, não entende o significado do que elabora. Eu leio o
debate dos últimos tempos sobre as máquinas e o perigo de que eliminem o homem,
como trabalhador ou pessoa. Mas qualquer tentativa de tornar semelhante o ser humano
à máquina é um crime contra a humanidade.
·
O debate sobre o advento de
uma superinteligência artificial parece estar indo nessa direção.
Você dedicou vários livros à diferença entre homem e máquina. O
mais recente - Oltre l’invisibile (Além do invisível, em
tradução livre, Mondadori) - talvez seja o mais acessível para o público em
geral. Em resumo, o que nos diferencia de um dispositivo inteligente?
O fato de que nosso
corpo e nossa mente são supervisionados pela consciência e
a consciência não emerge da matéria. Não se questiona a capacidade de
cálculo e de inteligência computacional, mais cedo ou mais tarde
uma máquina as terá mais do que nosso cérebro. Mas que
a consciência vai além dos números. Essa é a diferença fundamental.
·
Todos os temores sobre uma super
IA são infundados?
Longe disso, são
verdadeiros. Mas de uma forma diferente da defendida no debate atual. Se
continuarmos a nos convencer de que somos máquinas, nos tornaremos
máquinas. Meu trabalho parte da compreensão dos limites da IA e do que nos torna superiores. Mas temos que entendê-lo,
integrá-lo em uma visão de mundo. Caso contrário, nos tornaremos ferramentas
entre ferramentas, esquecendo a nossa natureza mais profunda por
opção.
¨ Democracia computacional. O que muda na era da IA. Por Paolo
Benanti
Durante a Segunda Guerra Mundial, os primeiros computadores foram desenvolvidos para fins
bélicos: o Colossus, criado em Bletchley Park, no Reino Unido,
e, nos EUA, o Atanasoff-Berry Computer e o Eniac.
No período
imediatamente posterior à guerra, a partir da década de 1950, a introdução dos
transistores de silício permitiu a criação de computadores menores, mais
rápidos e mais confiáveis, enquanto os circuitos integrados, que surgiram na
década de 1960, reduziram ainda mais as dimensões e o custo, aumentando a
funcionalidade dos computadores. Inaugura-se, assim, uma época em que o poder
computacional se espalha por toda a sociedade.
Naqueles anos, essa
distribuição do poder computacional estava confinada aos "mainframes". No
entanto, é o surgimento de uma nova corrente cultural que podemos definir, com
o perdão pelo trocadilho, como Bit generation, que produziu o profundo mecanismo de descentralização das
décadas seguintes. A revolução tecnológica foi alimentada pela semente da contracultura californiana
dos anos 1960. O centro dessa maneira de ver os computadores e a informática
foi e é o Vale do Silício, a área entre São Francisco e São
José.
Acima de tudo, foi o
ideal comunitário dos "flower children", sua natureza
libertária, seu desejo de ampliar os horizontes e seu desprezo pela autoridade
centralizada que formaram o eixo dos fundamentos filosóficos e éticos da
Internet e de toda a revolução dos computadores pessoais.
A internet iniciou justamente no crepúsculo daquela experiência.
O fim desse processo
de democratização ocorreu no final da primeira década deste século com o
advento do smartphone.
No momento em que o
poder computacional pessoal começou a caber nos nossos bolsos, também começou a
nos roubar uma certa autonomia: o smartphone precisa de um
substrato invisível e fundamental, a rede, que garante sua operabilidade e que
alimenta o poder computacional de bolso que temos e "datafica" as
nossas existências pessoais. De fato, o smartphone começou a se interpor cada vez
mais entre nós e as coisas que fazemos diariamente, reconfigurando, em termos
de transações digitais, a maioria dos atos que compõem a nossa vida cotidiana. Mas se
a nossa existência e a nossa capacidade de agir no espaço público foram
reconfiguradas em forma digital, o nosso direito e poder de cidadania se
tornaram, de fato, computacionais.
Hoje, as nossas
existências democráticas são existências computacionais. A democracia que hoje
se tornou computacional também desfruta das potencialidades das tecnologias da
informação para tornar a participação dos cidadãos na tomada de decisões
públicas mais eficaz e inclusiva. Entretanto, se a primeira década do
século terminou com as primaveras árabes, fazendo com que esperássemos que a
conexão digital fosse o espaço onde a democracia liberal se
difundiria e se fortaleceria, o final da segunda década, com a invasão do
Capitólio, começou a nos fazer temer pelo futuro da democracia no espaço
digital-computacional.
O advento das
inteligências artificiais está novamente mudando o horizonte. Os serviços
de IA desfocam a fronteira entre o poder computacional pessoal e o
poder centralizado na nuvem: ao usar nossos telefones, quase não sabemos mais o
que é executado localmente e o que é executado na nuvem. Essa nova forma de
centralização na nuvem, no entanto, agora também traz consigo uma centralização
da capacidade computacional pessoal associada à democracia. A questão a ser
enfrentada, então, será como tornar democrático o poder centralizado da nuvem e
da IA evitando que a democracia computacional se transforme em uma
oligarquia da nuvem.
A experiência de uso
do computador está prestes a passar por uma nova transformação radical. Desde o
início da história dos computadores, o homem foi o gargalo na relação com a
máquina. Em 1975, com a introdução do sistema operacional DOS, aceleramos
a relação com a máquina graças aos teclados. Em 1985, os sistemas de janelas,
como o Windows, nos permitiram ganhar velocidade com o mouse. A partir do
final da década de 1990, o touch foi mais uma mudança de
relação. Hoje, parece que chegamos à mais natural e rápida das interfaces: a
linguagem humana. Musk continua
a sonhar com fronteiras mais rápidas com seus implantes cerebrais. Na verdade,
a infusão de sistemas operacionais com Large Language Models (LLMs) executados
localmente é uma revolução na interface e na velocidade de uso da máquina:
nunca antes havia sido possível dizer à máquina o que fazer como faríamos com
um nosso semelhante e, como a capacidade de cooperar entre membros da nossa
espécie é a base de nossa ascensão planetária como espécie dominante, não
poucos estão começando a sonhar com um futuro feito de utopias ou distopias que
beiram o hibridismo entre homem e máquina.
Um dos aspectos mais
preocupantes dessa nova fronteira da interação com a máquina é a enorme
ampliação da superfície de ataque cibernético. Poder fazer com que o computador
execute processos por meio de comandos linguísticos significa, efetivamente,
transformar os LLMs em agentes capazes de realizar operações no
computador: mordomos eletrônicos. Se até hoje os hackers podiam invadir os
nossos sistemas e retirar dados, excluí-los ou criptografá-los para pedir
resgate ou usar o nosso computador para fazer ataques a outros computadores, o
que poderão fazer hoje? Com a mesma eficiência com que nos ajuda, o nosso
mordomo pode encontrar todas as nossas informações comprometedoras e
comunicá-las ao mal-intencionado.
Em resumo, a
democracia conseguirá ser resiliente a essas novas formas de poder
computacional?
Fonte: Entrevista
de Arcangelo Rociola, para La Stampa -
tradução de Luisa Rabolini/Avvenire
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