Roraima lidera assassinatos de indígenas
com 47 mortes, diz relatório do Cimi
Entre os dias 13 e 14
de julho, em Douradina, cidade que fica aproximadamente a 3h de Campo Grande,
capital do Mato Grosso do Sul (MS), indígenas Guarani-Kaiowá, da Terra Indígena
(TI) Panambi – Lagoa Rica, retomaram parte de seu território ancestral que
estava ocupado pela monocultura. O revide de fazendeiros da região foi
imediato. Jagunços em caminhonetes pretas cercaram a retomada e começaram a
atirar. No mesmo fim de semana, na cidade vizinha, Caarapó, outra retomada
também foi atacada a tiros. Os ataques culminaram em ao menos duas pessoas
baleadas, entre elas um cacique de 52 anos, além de uma liderança religiosa
agredida nos braços e pernas e outros feridos.
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Por que isso importa?
- Esses dados evidenciam a grave situação de violência e
violações de direitos enfrentada pelos povos indígenas no Brasil. Os
assassinatos e ataques registrados mostram um cenário de insegurança e
impunidade, refletindo a falta de proteção.
Desde então, as
retomadas continuam ameaçadas, com lideranças da região denunciando
constantemente o terror vivido nos últimos dias. Além dos tiros, jagunços
incendiaram a área em torno da retomada em Douradina. Nem mesmo a presença da
Força Nacional na região intimidou os criminosos ou impediu os ataques. O cerco
aos Guarani-Kaiowá limitou o acesso das comunidades à comida, resultando em
vários pedidos de cestas básicas. Além disso, há denúncias de que
estabelecimentos comerciais da cidade se recusam a vender comida aos indígenas.
A violência perpetrada
contra essas comunidades condiz com as informações do relatório “Violência
contra os Povos Indígenas no Brasil — 2023”, divulgado pelo Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) nesta
segunda (22). O documento apresenta um retrato das diversas violências e
violações praticadas contra os povos indígenas em todo o país.
De acordo com o
relatório, o primeiro ano do governo Lula restabeleceu as ações de fiscalização
e repressão às invasões em alguns territórios indígenas. Contudo, a demarcação
de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades continuam insuficientes.
A publicação destaca que o ambiente institucional continuou a atacar os
direitos indígenas, resultando na persistência de invasões, conflitos,
violência contra as comunidades indígenas e altos índices de assassinatos,
suicídios e mortalidade infantil.
Conforme a
publicação, no último ano foram registrados 43 assassinatos de indígenas
no Mato Grosso do Sul, colocando-o em segundo lugar no ranking nacional de
violência contra essa população. Roraima lidera o ranking com 47 mortes,
enquanto o Amazonas está em terceiro, com 36 casos.
Diante disso, a
palavra que os Kaiowá encontraram para chamar o horror em que vivem é guerra.
“Nós estamos numa guerra onde o povo Guarani-Kaiowá é massacrado. A gente não
vai ficar em paz sem a demarcação, homologação e posse do nosso território”,
afirmou um indígena da Panambi, que preferiu não se identificar por segurança.
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Direito à terra
A luta dos indígenas
Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras no Mato Grosso do Sul dura
décadas. No caso da TI Panambi – Lagoa Rica, a espera é desde 2011, quando 12,1
mil hectares de seu território foram identificados e delimitados.
Porém, seu processo de demarcação está paralisado dada a morosidade do Estado e medidas legislativas inconstitucionais como a Lei 14.701 e a PEC 40, que buscam instituir a tese
do marco temporal, que propõe que os povos indígenas tenham direito apenas às
terras que estavam ocupando na data da promulgação da Constituição Federal, em
5 de outubro de 1988. Tal tese foi considerada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal (STF).
Em um vídeo publicado
neste sábado (20) pela Aty Guasu, a assembleia geral do povo Guarani-Kaiowá,
uma ñandesy – liderança espiritual da comunidade –, em meio à
PM e à Força Nacional na TI Panambi, reafirmou a resistência do povo e o seu
direito à terra:
“Essa terra tem dono:
essa terra é nossa! Ela nos foi entregue pelos nossos ancestrais. Essa terra
foi feita por nossos encantados e foi deixada para nós. Nós vamos permanecer
aqui. Nós pedimos que os invasores saiam daqui, porque esta terra pertence a nós.
Nós queremos viver e plantar aqui. Queremos esta terra pros nossos netos. Para
todas as crianças, à geração que está vindo. Estamos lutando por essa terra.
Vamos morrer aqui mesmo! Não importa o ataque, morreremos aqui”.
A situação dos Kaiowá
não é isolada. Indígenas de várias regiões do país, cansados da inação do
Estado na demarcação de terras, estão retomando seus territórios, resultando em
um alto número de conflitos. Em julho, pelo menos 13 ataques a indígenas foram
registrados, principalmente em retaliação a retomadas e autodemarcações em
estados como Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Ceará e Pará.
De acordo com o
relatório do Cimi, do total de 1.381 terras e demandas territoriais indígenas
existentes no Brasil, a maioria (62%) segue com pendências administrativas para
sua regularização, conforme a base de dados da organização. São 850 terras
indígenas com pendências, atualmente. Destas, 563 ainda não tiveram nenhuma
providência do Estado para sua demarcação.
Situação que o
relatório classifica como “violência contra o patrimônio”. Os registros dessa
seção dividem-se em três categorias: omissão e morosidade na regularização de
terras, na qual foram registrados 850 casos; conflitos relativos a direitos
territoriais, que teve 150 registros; e invasões possessórias, exploração
ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, com 276 casos.
O Ministério dos Povos
Indígenas (MPI) informou na última terça (16), em conjunto com o Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e a Funai, que duas missões foram
estabelecidas para mediar conflitos fundiários nos estados do Mato Grosso do Sul
e do Paraná, após ataques com armas de fogo. O MPI ainda disse que os ataques
contra os Kaingang no Rio Grande do Sul vêm sendo monitorados e acompanhados
pelo ministério.
O MPI enfatizou que “a
instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras
tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não
só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos
indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as
principais vítimas”.
Nos três casos
destacados pelo MPI (Avá-Guarani no PR, Guarani-Kaiowá no MS e Kaingang no RS),
houve incêndios criminosos nas retomadas. Os agressores incendiaram malocas e
matas ao redor. Em todos os casos, denunciam os indígenas, os ataques ocorreram
horas após a saída de representantes do ministério e apesar da presença da
Força Nacional deslocada pelo governo federal para as regiões.
·
Omissão do poder
público
O ano de 2023 também
foi marcado pela omissão de agentes públicos em situações relacionadas à morte
de indígenas, que poderiam ter sido evitadas. Segundo o relatório, foram
registradas 1.040 mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos, principalmente no
Amazonas (295), Roraima (179) e Mato Grosso (124). A maioria das mortes foi
causada por doenças evitáveis, como gripe e pneumonia (141), diarreia e
gastroenterite (88) e desnutrição (57).
Além disso, ocorreram
180 suicídios de indígenas, com os maiores índices no Amazonas (66), Mato
Grosso do Sul (37) e Roraima (19). Houve 344 casos de desassistência, incluindo
educação (61), saúde (100) e desassistência geral (66).
O documento destaca a
situação crítica dos povos indígenas em isolamento voluntário em 2023. Dos 119
registros de isolados feitos pela Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil) do
Cimi, 56 estavam em terras indígenas que sofreram invasões ou danos. Além disso,
37 registros de isolados fora de terras reconhecidas não receberam proteção
adequada. A maioria das operações de fiscalização foi insuficiente, e
lideranças de TIs como Vale do Javari, no Amazonas, e Karipuna, em Rondônia,
continuaram denunciando a presença de invasores.
O relatório ainda
frisa que a falta de infraestrutura escolar, sanitária e de água potável,
agravada pela crise climática, aumentou a vulnerabilidade das comunidades
indígenas.
¨ “Não cabe conciliação quanto a direitos fundamentais”, diz Cimi
ao STF sobre marco temporal em semana violenta
Em nota técnica
juntada aos processos que tratam da Lei 14.701/2023, envolvidos em procedimento
de conciliação sobre demarcação de terras indígenas, o Conselho Indigenista
Missionário (Cimi) afirma ao Supremo Tribunal Federal (STF) que “não cabe
conciliação sobre o marco temporal” por se tratar de direitos indisponíveis e
fundamentais.
No próximo dia 5 de
agosto, os trabalhos da comissão de conciliação no STF terão início para tratar
da controvérsia entre as ações ingressadas na Corte requerendo a
inconstitucionalidade e a constitucionalidade da lei (leia mais abaixo). Em
abril, o ministro Gilmar Mendes negou pedido para suspendê-la e determinou que
a questão deve ser discutida previamente durante as audiências de conciliação.
As reuniões estão previstas para seguir até 18 de dezembro deste ano.
O Cimi argumenta que o
tema foi pacificado pela Corte Suprema quando em 27 de setembro de 2023, por
nove votos a dois, os ministros decidiram em Plenário fixar como tese de
repercussão geral no Recurso Extraordinário (RE) 1017365 a rejeição à
possibilidade de adotar a data da promulgação da Constituição Federal
(5/10/1988) como marco temporal para definir a ocupação tradicional da terra
pelas comunidades indígenas.
Também na nota
técnica, o Cimi expõe que as consequências da Lei 14701/23 têm motivado uma
onda de invasões e violências perpetradas contra os povos indígenas em
territórios demarcados, mas, sobretudo, naqueles que estão com o procedimento
paralisado em alguma de suas fases – o que é o caso dos povos e territórios que
nos últimos dias sofreram com ataques de homens armados, encapuzados e empresas
de segurança.
Apenas nesta última
semana ocorreram oito ataques contra retomadas e aldeias de sábado (14)
até esta quinta-feira (18). Entre sábado e
segunda, foram seis e atingiram os povos Guarani Mbya e Kaingang, no Rio Grande
do Sul, Avá-Guarani, no Paraná, e Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Indígenas foram baleados e feridos. Na madrugada desta quinta, a retomada Parnamirim do povo Anacé, no Ceará, foi atacada a
tiros e acabou completamente destruída. Já
os Parakanã, da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, relataram nesta quinta um ataque sofrido pelo povo.
Diante de tal
realidade exposta pelos povos indígenas e seus aliados no 56º Período Ordinário
de Sessões do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, entre junho e
este mês, o Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os
direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Calí Tzay, pediu ao STF, no último
dia 11, que suspenda a aplicação da lei, além de paralisar outras
iniciativas que tenham a tese como orientação.
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Da decisão do STF à Lei 14701/23
Ato contínuo à decisão
do STF invalidando a tese do marco temporal, em setembro do ano passado,
parlamentares no Congresso Nacional, liderados pela bancada ruralista,
defenderam que a Suprema Corte estava usurpando poderes legislativos e
aceleraram a tramitação do Projeto de Lei (PL) – votado em tempo recorde, sem
consulta aos povos indígenas.
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva vetou alguns pontos do PL, levando em consideração a
decisão do STF, mas todos os vetos foram derrubados no Congresso. Em dezembro a
Lei 14701 acabou promulgada e entrou em vigor. (mantiveram dois vetos: povos
isolados e perda da característica indígena. Veja como organizar a frase:
poderia ser: mas quase a totalidade dos vetos foi derrubada)
Partidos políticos,
como o PSOL e a Rede, além da Apib, ingressaram no STF com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) contra a Lei 14701. Por sua vez, os partidos PL, PP
e Republicanos impetraram uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) para manter
a lei. Tem outras duas ações, uma do PT, PCdoB e PV e outra do PDT..
O ministro Gilmar
Mendes foi sorteado como relator das ações e ao negar pedido para suspender a
deliberação do Congresso que validou o marco temporal, determinou no último dia
22 de abril a instauração de processo de conciliação envolvendo as ações sobre
o marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
A comissão terá seis
representantes indicados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
quatro indicados pelo governo federal, além da Funai, a Câmara Federal e o
Senado Federal terão três membros cada, os estados um e os municípios também um.
Fonte: Por Leandro
Barbosa, da Agencia Pública/CIMI
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