Patentes: uma barreira ao acesso à saúde
Nem sempre tivemos patentes
sobre tecnologias de saúde. Em 1994, foi assinado o Acordo sobre os Aspectos
dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, em
inglês) no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Este acordo, ao
qual todos os países membros da OMC tiveram que aderir, obrigou cada membro a
adotar em seus marcos normativos padrões de propriedade intelectual que, no
caso dos países em desenvolvimento, foram mais amplos do que os existentes.
No caso da saúde, a
relevância do Acordo TRIPS reside no fato de que foi estabelecido o
reconhecimento de direitos exclusivos sobre as tecnologias sanitárias,
incluindo os medicamentos, a partir da obrigatoriedade de concessão de patentes
farmacêuticas.
Como funcionam as
patentes? Quando uma patente é concedida, o Estado concede ao titular da
invenção 20 anos de direitos exclusivos, concedendo-lhe um monopólio para sua
exploração, o que lhe permite impedir que qualquer outra pessoa física e/ou
jurídica produza, comercialize, distribua ou importe a invenção patenteada. No
caso da Argentina, a Lei N° 24.481 adotou os padrões mínimos de proteção da
propriedade intelectual do Acordo TRIPS, estabelecendo que devem ser
demonstrados na solicitação três requisitos para a concessão de uma patente:
atividade inventiva, novidade e aplicação industrial.
O que aconteceu após
30 anos com esse sistema? As promessas por trás do impulso do TRIPS se baseavam
na promoção e incentivo de iniciativas de pesquisa e desenvolvimento (P&D),
assim como na promoção da transferência de tecnologia entre os países mais
desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Após quase 30 anos da assinatura do
TRIPS, as promessas não foram cumpridas.
O desenvolvimento de
tecnologias de saúde se voltou para as patologias que a indústria farmacêutica
avaliou que poderia obter lucros; o que resultou em doenças que se tornaram
crônicas – com tratamento disponível, mas sem vacina ou cura – e, por outro lado,
na existência de doenças “negligenciadas” ou “esquecidas” – aquelas associadas
à pobreza e vulnerabilidade social, para as quais não foram desenvolvidas novas
tecnologias.
A matriz de
desenvolvimento tecnológico no mundo não se transformou, já que os países
“desenvolvidos” são os que lideram em quantidade e qualidade os avanços
científico-tecnológicos. Além disso, foi comprovado que as invenções
patenteadas foram meros desenvolvimentos incrementais e não verdadeiras
inovações em tecnologias de saúde. De acordo com a Prescrire International
(2005), 68% dos medicamentos patenteados entre 1984 e 2003 não trouxeram nada
de novo em relação aos produtos disponíveis anteriormente. Na mesma linha,
segundo a NICHM Foundation (2002), apenas 15% dos medicamentos aprovados pela
FDA no período de 1989 a 2000 foram classificados como altamente inovadores.
• O que produziu, então, a inclusão de
patentes para tecnologias de saúde?
O impacto dos
monopólios nos preços e, portanto, no acesso. A existência de um monopólio
sobre uma tecnologia sanitária concede ao seu titular o poder de fixar preços,
o que resultou em valores exorbitantes para medicamentos patenteados – um
exemplo recente, conhecido globalmente, é o caso do sofosbuvir nos Estados
Unidos, que foi chamado de “a pílula de mil dólares”. Além disso, foi
demonstrado por vários estudos que, com a concorrência de medicamentos
genéricos no mercado, os preços caem significativamente. A organização
humanitária Médicos Sem Fronteiras publicou, em 2019, uma comparação em relação
aos preços dos tratamentos em comparação com 20 anos atrás.
No caso do HIV, o
preço cobrado pela combinação tripla de medicamentos para tratar o HIV passou
de mais de 10 mil dólares anuais por pessoa para menos de 100 dólares anuais
por pessoa graças à entrada de fabricantes de medicamentos genéricos no
mercado.
No caso da Hepatite C,
em 2015, a combinação sofosbuvir-daclatasvir custava 147 mil dólares por pessoa
para um tratamento de 3 meses. Em 2017, o tratamento estava disponível em
alguns países por 120 dólares.
As corporações não
apenas fizeram uso, mas abusaram do sistema: as corporações farmacêuticas
também realizam práticas de “evergreening” ou perpetuidade das patentes, com a
intenção de estender os monopólios que lhes garantem rentabilidade. Através de
uma mínima mudança em uma molécula, ou em sua dosagem, formulação ou combinação
de princípios ativos, por exemplo, as empresas solicitam uma nova patente para
uma invenção já conhecida. Essas solicitações não cumprem os requisitos que
exigem a demonstração de que o que se tenta patentear é novo, traz atividade
inventiva e tem aplicação industrial.
• Diante desses abusos, quais ferramentas
temos disponíveis no sistema para proteger a saúde pública?
O sistema de patentes
foi criado para favorecer a exploração comercial de produtos sob a lógica da
criação de monopólios. No caso das tecnologias sanitárias, ele tem um impacto
devastador, pois pode gerar escassez de produtos que salvam vidas, além de bloquear
o acesso para aqueles que não têm recursos suficientes para comprar a preços
exorbitantes.
No entanto, além de
proteger a propriedade intelectual dos inventores, o sistema do TRIPS cria uma
série de ferramentas que os países podem utilizar para proteger a saúde da
população. Chamamos essas ferramentas de “salvaguardas de saúde pública”.
As salvaguardas de
saúde pública são ferramentas eficazes para evitar os monopólios e os altos
preços dos medicamentos e tecnologias médicas. O Acordo TRIPS estabelece que
cada Estado pode “estabelecer livremente o método adequado para aplicar as
disposições do presente acordo no âmbito do seu próprio sistema e prática
jurídicos” (Art. 1.1). Esse direito foi reafirmado anos depois na Declaração de
Doha sobre o TRIPS e Saúde Pública (2001).
Dessa forma,
instaura-se a salvaguarda mais importante, que é o direito dos países de
definir como o sistema será implementado de acordo com cada contexto normativo.
Nesse sentido, a Argentina deu um passo significativo ao adotar as “Guias de
Patenteabilidade” (Resolução Conjunta 2012), que estabelecem os critérios que
devem ser aplicados na análise de um pedido de patente para decidir sobre sua
concessão ou rejeição.
Em ordem de
importância em seu caráter preventivo, podemos continuar enumerando as
oposições às patentes, que, uma vez previstas nas leis nacionais, permitem a
qualquer terceiro interessado contribuir com o processo de exame das
solicitações de patentes. Isso significa que, após a análise do pedido, é
possível apresentar argumentos e provas contra a concessão da patente, caso o
pedido não cumpra os requisitos legais de novidade, atividade inventiva ou
aplicação industrial.
Embora o TRIPS não
apresente uma enumeração de “flexibilidades” ou salvaguardas de saúde, devemos
mencionar também as licenças compulsórias
como uma das mais importantes. Os Estados podem permitir a exploração de
uma patente por terceiros sem a autorização do titular, mediante o pagamento de
royalties.
• Qual é o impacto da rejeição de
solicitações de patentes imerecidas?
A ausência de
monopólios (patentes) permite a produção local de versões genéricas de
qualidade e a competição de preços, incluindo produtos importados. Como
explicamos, a competição tem se mostrado eficaz na prática para reduzir os
preços e favorecer o acesso universal aos medicamentos.
No caso argentino,
tanto a implementação das diretrizes de patenteabilidade quanto o uso regular
de oposições ou “observações de terceiros” (art. 28 da Lei 24.481) levaram à
rejeição de mais de 90% das solicitações de patentes farmacêuticas. Apenas no
âmbito do HIV e da Hepatite C, a rejeição de solicitações em processos nos
quais a Fundación GEP apresentou oposições resultou em uma economia para o
orçamento público da Direção de HIV [da Argentina] de 570 milhões de dólares
entre 2017 e 2023.
Estratégias
inescrupulosas do poder corporativo pós-TRIPS
O poder corporativo,
além de usar e abusar do sistema, continua desenvolvendo estratégias para
estender seus monopólios e evitar ser regulado. Nos últimos anos, além de
denunciar que os governos não estão livres de pressões para o uso de
salvaguardas, militantes, ativistas e organizações têm se mobilizado para
evidenciar essas estratégias. Nesse sentido, podemos destacar a implementação,
por meio de tratados de livre comércio ou de investimento, de medidas
regulatórias que vão além do TRIPS, conhecidas como medidas TRIPS plus; ou o
caso das chamadas licenças voluntárias, em que, através de um acordo entre o
detentor privado da patente e outro, são criadas barreiras adicionais impondo
limitações sobre onde e a quem um produto pode ser vendido.
De acordo com a
Declaração de Mar del Plata promovida pela RedLAM (2024), essas práticas
“limitam a livre circulação de ingredientes farmacêuticos ativos e de produtos
genéricos, mantendo assim o poder nas mãos das companhias farmacêuticas que
disfarçam essa prática predatória de caridade” (pág. 3).
• O Norte Global contra o Sul Global
A pandemia de covid-19
evidenciou a desigual e injusta distribuição e acesso às tecnologias de saúde
(vacinas e outras) e a fragilidade do sistema mundial de governança em saúde.
Isso também se refletiu na negociação da isenção de propriedade intelectual
proposta pela Índia e África do Sul no âmbito da OMC, evidenciando mais uma vez
a influência do poder corporativo e do Norte Global.
Atualmente, está sendo
elaborado no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS) um tratado pandêmico
com o objetivo de desenvolver um instrumento internacional para fortalecer a
prevenção, preparação e resposta a futuras pandemias. No desenvolvimento dessa
negociação, observa-se a mesma influência corporativa que foi evidente durante
a negociação da isenção na OMC. Organizações da sociedade civil do Sul Global
estão se mobilizando para solicitar aos governos que o texto do tratado garanta
a equidade no acesso aos produtos relacionados às pandemias a nível nacional,
regional e global (produção geograficamente diversificada, obrigatoriedade de
transferência de tecnologia e a distribuição dos benefícios dos resultados de
I+D) (Redlam, 2024).
Na Fundación GEP,
acreditamos que as tecnologias sanitárias devem ser removidas do Acordo TRIPS e
consideradas como bens públicos, conforme estabelecido na Declaração de Mar del
Plata (Redlam 2024), assinada em abril passado por inúmeras organizações da região
que trabalham pelo direito à Saúde.
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<><> A
Fundación Grupo Efecto Positivo (FGEP) é uma organização sem fins lucrativos na
Argentina que trabalha para melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas
por HIV, Hepatites Virais e Tuberculose, entre outras doenças. Desde 2006, seus
membros, que são parte da comunidade afetada por essas condições, têm se
dedicado a promover o acesso a medicamentos essenciais e a eliminar as
barreiras que dificultam o acesso a tratamentos adequados e acessíveis. Eles
combatem os monopólios farmacêuticos por meio da oposição a patentes e da
incidência política, buscando preços mais justos para os medicamentos e
influenciando o debate público para garantir o acesso universal à saúde.
Fonte: Pela Fundación
GEP, da Argentina, para a coluna Saúde não é mercadoria
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