David
Broder: Emmanuel Macron entregou a vitória para a extrema direita
A
coabitação é a situação em que um presidente francês tem que lidar com um
primeiro-ministro e um parlamento de um lado político diferente. Isso já
aconteceu três vezes antes, com um presidente socialista e um primeiro-ministro
de centro-direita, ou vice-versa. Agora, isso pode acontecer novamente: mas com
o presidente nominalmente liberal Emmanuel Macron liderando um governo
potencialmente dominado pela extrema direita.
O
Rassemblement National (RN) de Marine Le Pen foi o grande vencedor das votações
do primeiro turno de domingo para a Assembleia Nacional, que escolheu
candidatos para a votação final, que será dia 7 de julho. Com 33%, a lista de
Le Pen ficou em primeiro lugar em 297 dos 577 distritos eleitorais, contra 159
para o Nouveau Front Populaire (Nova Frente Popular) de esquerda (28%) e apenas
setenta para o Ensemble de Macron (21%). Ainda que seja um retrocesso
humilhante para o presidente, isso não garante uma maioria para Le Pen. No
segundo turno, seus oponentes podem se unir. Seus candidatos, por sua vez,
podem esperar somar o apoio de perdedores de direita, geralmente bastante
fracos.
Mas
os primeiros pedidos de acordos para o segundo turno (ou não) mostram o quanto
Le Pen já conquistou o espaço da direita. Antes desta eleição, Éric Ciotti,
presidente dos conservadores Les Républicains (Os Republicanos – LR) —
herdeiros do principal partido gaullista — se aliou a Le Pen. Quase todos os
seus colegas recusaram. No entanto, ontem à noite, até os opositores gaullistas
da aliança LR-RN de Ciotti declararam que não tomariam partido no segundo
turno. Macron e vários ministros pedirram por uma “frente republicana”, mas
muitas vezes disseram mais ou menos explicitamente que isso não envolvia apoiar
a France Insoumise (França Insubmissa – a maior força de esquerda) contra Le
Pen.
Qual
é a principal lição? Macron não precisava convocar esta eleição e mesmo assim o
fez há três semanas, com alguma expectativa de que a extrema direita pudesse
vencer, assim como havia feito nas eleições europeias de 9 de junho. A reação
ao primeiro resultado também deixa claro: o regime político pró-negócios da
França não tem medo de uma coabitação com Le Pen.
• Popularização
Nesta
campanha, o principal candidato de Le Pen, Jordan Bardella, repetidamente
procurou apresentar o RN não como uma força disruptiva, mas como líder de um
amplo campo de direita, até mesmo uma força de “unidade nacional”. O elegante
jovem de vinte e oito anos prometeu que poderia “colocar a França de volta nos
trilhos”: mas um governo do RN seria, ele insistiu, um defensor mais forte da
posição da França na UE e na OTAN; ele buscaria mais dinheiro europeu, mas não
procuraria uma ruptura real. A política de seu partido não seria de “altos
gastos”, mas miraria nos migrantes que usam o estado francês como um
“escritório de benefícios”, e priorizaria os cidadãos franceses para empregos.
Ele abordaria a injustiça social por meio de um “ministro para a prevenção de
fraudes”.
Se
antes Le Pen alegava não ser nem de esquerda nem de direita, esta campanha
adotou muitas posições claramente de direita, até mesmo em questões
orçamentárias, retornando às notas mais “reaganistas” de seu pai. Em um debate
televisivo de três partes, Bardella criticou o primeiro-ministro em exercício
Gabriel Attal por um governo que tinha “a maior dívida pública da UE” em termos
absolutos — um tema abordado por Le Pen em fevereiro em uma coluna para o
jornal de negócios Les Echos. A oferta de Bardella aos eleitores da classe
trabalhadora e da classe média era uma série de cortes de impostos, por
exemplo, no Imposto sobre Valor Agregado (IVA) sobre combustíveis para
motoristas (os planos ambiciosos de isentar os menores de trinta anos do
imposto de renda foram adiados). Mas também havia uma mensagem para a França
empresarial: vocês não precisam ter medo. Mesmo a mudança proposta pelo RN para
as pensões não somente desfaz o aumento da idade de aposentadoria de Macron,
mas reforça o princípio das contribuições pessoais.
O
governo de Macron entregou a vitória a Le Pen em uma bandeja, e não apenas pelo
aparente erro tático de convocar eleições antecipadas. Durante anos, vimos um
presidente arrogante posando como a força providencial que ensinaria os
franceses a aceitar um remédio de gosto amargo (aposentadorias mais tardias,
impostos mais altos sobre o consumo em nome da transição verde e menor poder de
compra). Mesmo contratempos eleitorais, como a perda de sua maioria em 2022,
não permitiram mudança em seu programa, e isso ajudou Le Pen a se apresentar
como a campeã dos “pessoas comuns” ignoradas, atravessando divisões de classe,
especialmente fora das principais cidades. Mais do que isso, a tentativa de
Macron de unir o espaço centrista da política francesa contra qualquer
“extremo” minou fortemente qualquer ideia de uma “frente republicana” contra Le
Pen. Quando também dirigida contra a “extrema esquerda”, pinta, de maneira
implausível, qualquer oposição consequente como ilegítima.
Em
sua ofensiva contra a esquerda, o próprio governo de Macron intensificou uma
obsessão com segurança, identidade e a ameaça da França muçulmana que tornou os
pontos de discussão preferidos de Le Pen o centro do debate nacional. Há uma
forte convergência em torno da linguagem de ameaça cultural e civilizacional —
o espectro do “separatismo” islâmico — mesmo onde Le Pen moderou ideias mais
francamente racistas, como a “teoria da grande substituição”. Essas mensagens
são espalhadas não apenas no TikTok de Bardella, ou nos canais de direita CNews
e BFM, mas também por ministros do governo que dizem que a segurança do povo
francês está ameaçada por uma grave conspiração “islamoesquerdista”
supostamente orquestrada por Jean-Luc Mélenchon e a França Insoumise. No campo
gaullista, o comunicado de imprensa dos Les Républicains antes do segundo
turno, justificando seu fracasso em bloquear Le Pen, chama o principal partido
de esquerda de “uma ameaça à nossa civilização”.
Mas
também devemos enfrentar outro problema-chave: se Macron é tão impopular, então
por que a extrema direita está se beneficiando, e não a esquerda? E se Le Pen
frequentemente vence graças à abstenção em massa, por que o aumento massivo na
participação desta vez não ajudou? O aumento moderado na pontuação da esquerda
(de 25,7 para 28 por cento) desde o primeiro turno da disputa de 2022 é melhor
do que uma esquerda dividida poderia temer há alguns meses, mas é ofuscado pelo
aumento paralelo do RN (de 18,7 para 33).
Parte
da resposta aparentemente reside na derrota dos recentes movimentos sociais e
no cinismo espalhado sobre a perspectiva de reverter a remodelação do bem-estar
e da legislação trabalhista francesa por Macron. Se o movimento do ano passado
contra as reformas das pensões foi impressionante, sua composição real (greves
contínuas nos setores mais atingidos, além de manifestações socialmente mais
amplas) não demonstrou concretamente que o trabalho organizado pode vencer.
Como Ugo Palheta apontou, Le Pen se beneficiou tanto da medida antissocial de
Macron quanto da derrota da resistência.
Isso
está relacionado a uma mudança mais profunda nas suposições de parte do
eleitorado, mal capturadas por ideias como “populismo econômico”. Explica a
base sobre a qual, além de políticas específicas, a extrema direita construiu
uma espécie de contra-hegemonia, que aceita muitos postulados já popularizados.
Mais uma vez, uma grande parte dos trabalhadores braçais (51 por cento daqueles
que votaram, de acordo com a pesquisa Ipsos da noite passada) apoiou um
candidato de Le Pen, mas o fizeram junto com um número crescente da classe
média mais estável, bem como pensionistas, anteriormente mais céticos em
relação ao partido.
Como
o cientista político Luc Rouban mostra com dados de pesquisa recentes em seu
“La vraie victoire du RN“, as suposições dos eleitores desse partido estão de
fato se tornando menos fortemente anti-sistêmicas, menos diferentes de outros
partidos, e expressam confiança crescente nos negócios privados em particular.
O que Bardella e Le Pen defendem é a meritocracia e o mercado, mas não
politicamente “prejudiciais” contra os nacionais franceses e pequenos
produtores. Isso é moldado em termos nacionalistas e racializados: ou seja, que
minorias e estrangeiros são hoje favorecidos por políticos de esquerda e
precisam ser colocados em seu lugar (subordinado). Mas é imaginado como uma
luta contra a concorrência desleal e as elites que trabalham contra a maioria. Este
é o apelo de Bardella aos proprietários de imóveis, aos autônomos e aos
eleitores da classe média que temem a pressão social descendente — não apenas
os “deixados para trás”.
• Domesticando a extrema direita?
Tanto
a convocação da eleição por Macron quanto a preocupação expressa por vários
ministros em afastar a França Insoumise no segundo turno sugerem que este campo
pode lidar com um primeiro-ministro do RN, ou talvez um governo apoiado pelo RN
liderado por direitistas “independentes”. Estes são, neste ponto, resultados
plausíveis ou até mesmo prováveis. Em 2012, Le Pen obteve 43 por cento no
primeiro turno, mas perdeu o segundo turno: tal aliança enfática por eleitores
não-RN hoje é mais difícil de alcançar.
Muitos
relatos anedóticos sugerem que partes crescentes da sociedade francesa não
temem mais um governo do RN. Mas talvez isso também não seja tão ruim para o
campo do presidente, que aparentemente parece mais preocupado em conter suas
asas. Alguns até pensam que trazê-lo ao poder poderia “expor o populismo” e
suas promessas vazias. Mas isso, no mínimo, é negligente em relação ao que o RN
significa para minorias, como pode usar o governo como plataforma — e como os
sindicatos de polícia já fora de controle da França podem ser galvanizados.
A
ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher certa vez disse que seu maior
feito político foi Tony Blair. Mesmo que seu partido Tory tivesse perdido
poder, havia cedido para um líder trabalhista que fundamentalmente aceitava
seus dogmas de livre mercado. Poderia Macron igualmente se orgulhar de que sua
remodelação do campo político francês reduziu o Rassemblement National a
proporções menores, encaixando seu radicalismo e tornando-o parte do regime de
direita “normal”? Talvez. Certamente, o RN de hoje exalta suas credenciais
pró-negócios e abandonou planos de gastos sociais e pedidos para sair do euro.
Mas
a narrativa da moderação da extrema direita tão querida pelos admiradores de
Giorgia Meloni — domesticar o seu radicalismo, oferecendo-lhe um caminho para a
popularidade institucional — é excessivamente indulgente. Pois o processo
também funciona ao contrário, especialmente através da crescente obsessão
política francesa e europeia com o declínio civilizacional. Mesmo na oposição,
o RN forçou o governo em saída a endurecer sua lei de imigração, antes de
apoiar o projeto de lei do campo Macron. Aliados de Macron pintaram
desajeitadamente o movimento como uma concessão necessária a uma opinião
pública cada vez mais obcecada pela imigração.
Um
governo dominado pelo Rassemblement National, ou, na verdade, liderado por
Bardella, certamente não aceitará mansamente uma condição de subordinado, mas
resistirá à presidência de Macron, resistindo às restrições à sua própria
autoridade na longa campanha para as eleições presidenciais de 2027. Pode
escolher batalhas sobre a cidadania por nascimento, poderes policiais,
“preferência nacional” e a contratação de cidadãos com dupla nacionalidade,
também na expectativa de que a resistência dos juízes superiores ou das
autoridades da UE alimente seu ímpeto.
Muito
ainda será decidido. A votação do segundo turno em 7 de julho pode muito bem
negar a Le Pen uma maioria absoluta, e seus números poderiam ser mais
seriamente reduzidos se outros partidos se unissem contra ela. Mas não conte
com isso. O chamado centro político da França está fazendo as pazes com a
perspectiva de um governo dominado por Le Pen.
Fonte:
Tradução de Sofia Schurig, para Jacobin Brasil
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