Capitalo-parlamentarismo no Brasil – parte
2
De forma
um tanto dogmática e brutal: não há política no Brasil. Ou melhor: só há a
política do capitalo-parlamentarismo, logo nenhuma política
·
Jair Bolsonaro:
anti-sistema?
Hoje, quando o
bolsonarismo, ainda que muito forte, dificilmente é respeitável por gente
“séria” (o fato de um dia ter sido é, em si, algo patológico), devido aos
arroubos insurrecionais e ao incrível obscurantismo e negligência na questão da
vacinação pública durante a pandemia de Covid, esquecemos de um dado essencial:
o quanto Jair Bolsonaro foi não só aceito e naturalizado, como explicitamente
preferido pelo povo da bufunfa contra Fernando Haddad, que, como vemos hoje
(mas alguém achava realmente diferente?) está longe de ser um esquerdista
aterrorizante para os mercados.
Enquanto o professor
da USP passava um tempo precioso durante a sua campanha isolado em São Paulo,
tentando convencer Fernando Henrique Cardoso a lhe prestar um apoio (que nunca
veio) em 2018, Jair Bolsonaro era visto como a melhor opção por 99 de 100 pessoas
da nossa elite econômica e midiática.
Isto nos obriga a
colocar a questão: em que medida Jair Bolsonaro é heterogêneo ao consenso
capitalo-parlamentarismo brasileiro instalado?
Ora, vamos fazer
o check list.
Ele acredita que o
socialismo e o comunismo são um câncer responsável por tudo de ruim no país e
no mundo (check), os grande responsáveis pela situação terrível do
Brasil eram as ideias de esquerda (e infelizmente de vez em quando o PT e Lula
deram um pouco de ouvido a elas…), essencialmente corruptas e desastrosas (check),
há um excesso de regulações trabalhistas e direitos sociais que impedem o país
de progredir (check, inclusive do STF e de figuras como Luís Roberto
Barroso, hoje seu suposto arqui-inimigo), é preciso privatizar e mercantilizar
muito mais (check), os grandes privilegiados do país são professores,
aposentados, profissionais da saúde, enfermeiras, assistentes sociais, etc. que
compõem a massa do funcionalismo público e da previdência (check),
sindicatos são atraso de vida (check), a Petrobrás é um dinossauro
obsoleto, assim como ideias de soberania sobre nossos recursos (check),
líder político bom é quem obedece às injunções do mercado financeiro e não
palpita sobre economia, terceirizando tudo para quem de fato sabe, um agente do
mercado erigido à condição de super-ministro (check).
Mesmo características
visivelmente toscas, como a contestação contra o resultado das urnas – Aécio
Neves e Gilmar Mendes não tinham feito o mesmo após a vitória de Dilma em 2014?
–o, não eram novidade. A crítica demagógica ao “mundo político” já estava amplificada
há tempos: “gestores”, apresentadores de palco ou gente diretamente do mundo
dos negócios eram apresentados como possíveis melhores opções à condução do
Estado.
Até a submissão
incondicional e servil a um líder externo é meramente matéria de gosto: o
bolsonarismo prefere Donald Trump, mas a postura dos nosso “democratas”
da rede Globo é igual em relação à outra facção da política
norte-americana, pois concordam que os EUA devem liderar o planeta e lutar de
forma enérgica, militar, pelos seus interesses (portanto, China é um
bicho-papão crescente), que convergem com os da humanidade.
Certo, o estilo rude,
o gosto por espetáculos políticos de massa, um “exagero” retórico, uma falta de
zelo com a imagem (dá para praticar políticas devastadoras para o meio ambiente
sem ser tão descarado na intenção de desmatar, apoiar garimpeiro ilegal e matar
índio, né?), o que não fica muito legal para a aprovação de quem devemos
agradar (os “investidores estrangeiros”), tudo isso não “orna”, como dizem no
interior de São Paulo. Mas, sem problemas, Tarcísio de Freitas já é o líder
preparado para o bolsonarismo 2.0., purificado de seu lado demasiado populacho,
com toda a bênção da Faria Lima.
E o Lula? Bem,
enquanto não houver muito “petismo” (isto é, trabalhadores, camponeses ou
espírito anti-imperialista tendo alguma voz) nele pode ser aceitável. É útil
para normalizar e dar consenso social às reformas neoliberais já aprovadas
(afinal, em governos de direita, a esquerda costuma fazer oposição a coisas que
ela mesmo depois chancela), mas não é confiável, muito menos o seu partido,
principalmente quando este se mete a ter ideias próprias. É vacilante demais,
devido ao compromisso com sua base social, para fazer o que deve ser feito
imediatamente: desvincular salários da previdência, cortar pisos
constitucionais de educação e saúde, cobrar mensalidades em universidades, etc.
O futuro de sua “frente ampla” é incerto, pois se o bolsonarismo se apresentar
mais ao estilo Tarcísio de Freitas do que ao estilo família Bolsonaro, deixará
de ter utilidade.
Se o futuro da
política brasileira consistir em disputas completamente despolitizadas entre
figuras representando uma vertente mais moderna e “social” do
capitalo-parlamentarismo contra outra mais chucra e desqualificada, como uma
possível versão macro deste embate midiático atual entre Tábata Amaral e Pablo
Amaral nas pré-eleições municipais, a paz dos cemitérios está garantida.
A “polarização” dos
EUA é o exemplo mais bem acabado desse estado de coisas: uma hiperagitação
ideológica, tão incessante e fascinante quanto ridícula, sem que haja qualquer
questão política real a clivar a paisagem eleitoral – veja o que falam ambos os
candidatos a respeito de Israel. É fácil demais polir com aura antagonista e
violenta aquilo que não tem qualquer heterogeneidade real: o exemplo da Guerra
de 1914-1918 é o grande exemplo histórico. Política real é outra coisa.
·
O que fazer?
A fim de não cairmos
nas lamúrias incapacitantes e no tagarelismo opinativo a partir de um ponto de
vista externo e superior – como é o caso frequente de um ambiente cada vez mais
marcado pelas redes sociais –, tentemos formular algumas tarefas, ainda que
pouco promissoras para quem tem pouca paciência e gosta de alimentar ilusões
para si ou para os outros a respeito do futuro.
Declaremos, de forma
um tanto dogmática e brutal: não há política no Brasil. Ou melhor: só há a
política do capitalo-parlamentarismo, logo nenhuma política, pois sem a
existência de contraposição de políticas distintas, só há gestão da ordem. Com
efeito, se adotarmos a tese do supracitado Lazarus, a política não é da ordem
de uma invariante (uma superestrutura jurídico-estatal de qualquer formação
social), nem espontânea ou coextensiva aos movimentos reivindicativos, mas
rara.
Ora, é claro que há
movimentos, organizações, lutas sociais, grupos de pressão, opiniões críticas,
etc. Mas isso é o suficiente para constituir uma política efetiva?
Da parte do PT, há a
postura do “dique de contenção”: estar no governo para evitar a volta do
bolsonarismo, cozinhando em banho-maria até às próximas eleições, com algum
crescimento modesto, sem nenhuma proposta ousada, mas capaz, talvez, de
proporcionar um mínimo de melhoria para os mais pobres. Esta é a ideia. Há dois
problemas: (i) isto é suficiente para deter a força de uma extrema-direita
muito mobilizada, organizada e ideologizada?; (ii) o mercado é insaciável e
pede mais “reformas” a fim de superar os impasses provocados pelo novo
arcabouço fiscal e as promessas de déficit zero. Digamos apenas que dar de
bandeja para o fascismo o monopólio da defesa de pautas populares (como a luta
contra desvinculações ou cortes sociais) não parece ser uma tática das mais
inteligentes para lidar com o perigo de retorno do bolsonarismo.
Aos que desgostam de
Lula – e muitos possuem seus motivos – podemos dizer apenas: a tendência é
piorar quando o inevitável destino biológico chegar. Lula, gostemos ou não, é
um líder popular, com conexão com as massas mais empobrecidas, ligado ao
movimento operário, com alguma trajetória de mínimo tensionamento contra o
imperialismo (nem que seja por sua recusa de fazer o papel de líder anti-Cuba
no continente).
Com a crise brutal do
sindicalismo (a burguesia tem gratidão a Michel Temer não à toa), o fim do
velho mundo do qual o político Lula nasceu, e a falta de lideranças populares
genuínas no PT, não parece haver motivo para muito otimismo com o futuro do partido.
Claro, sempre novos movimentos históricos, na forma acontecimentos
imprevisíveis, podem surgir, possibilitando que lideranças e organizações novas
ocupem papel análogo no futuro. No entanto, é sensato constatar que lideranças
políticas de massa na esquerda não são improvisadas e nem muito frequentes.
Esta postura petista,
evidentemente, não constitui nada de diferente em relação ao
capitalo-parlamentarismo consensuado em 2016 (prova: nenhuma reforma do Michel
Temer ou Jair Bolsonaro é sequer discutida como passível de reversão, ao
contrário das promessas abundantes durante o período de oposição a estes
governos), mas se fia na modéstia de um objetivo possivelmente verossímil
(ganhar as próximas eleições), já que há inexistência de qualquer outra via.
Se o adesismo total e
acrítico costuma não gerar nada de bom – pelo contrário, prejudicam a discussão
de rumos, balanço do passado e retificação de erros, e, assim, sempre preparam
futuras derrotas ou então impedem um caminho vitorioso –, resta fazer oposição?
O problema está num
vício clássico que podemos chamar de “oposicionismo”. Ele consiste em acreditar
que a política consiste num mix de agitação e propaganda (mais
ou menos doutrinária, dependendo do caso) e denúncias, reclamações e lamúrias.
O trotskismo, fértil em cultivar tal estilo, teve a infelicidade, em sua
história, de conhecer bem a impotência desta postura: as denúncias às “crises
de direções” não costumam levar a muita coisa, limitam a política à formação de
“grupos de pressão” ou, no pior dos casos, a promessas vagas e pouco críveis
(“na minha vez, quando estiver no governo, será diferente!”). Para ser franco,
é uma cultura que costuma favorecer o oportunismo.
Isto, evidentemente,
não quer dizer que não seja importante formar uma opinião crítica e
questionadora a respeito do governo, nem influenciar ideologicamente o clima
cultural do país neste sentido. Só não é aconselhável ter ilusão quanto ao seu
papel. Portanto, mesmo que haja grupos de esquerda – com diversas divergências,
mas concordando que o rumo do país é horrível – atuantes ou até com programas
elaborados, não verifica-se atualmente nenhuma política apontado germes de uma
possível nova orientação estratégica, que não meras intenções e proclamações.
Talvez isto seja
inevitável devido à atual situação em que estamos – terrível não apenas no
nível nacional, mas global –, em meio aos rudimentos iniciais de uma nova
política, sem que qualquer organização ou líder possa se apresentar como
“vanguarda do proletariado” ou ter pretensões do tipo sem soar ridículo.
Além do
“oposicionismo”, que é estéril enquanto não servir para produzir possibilidades
novas, reais e afirmativas através de palavras de ordens de organizações
colocando massas em movimento em ruptura com a ordem, outro vício cada vez mais
atual é o milenarismo profético, um clássico da ultra-esquerda.
Devido às crises
ambientais e a urgência da questão ecológica, há uma postura confortável de
pregar o apocalipse iminente, seja ecológico ou econômico, sem apresentar
qualquer alternativa política. Deus sabe como há esquerdistas que choram de
alegria com crises! Quanto mais catastróficas, mais promissoras para a
conquista do público em torno de sua pregação e sua estética radical, o que
pode ser útil para vender livros e chamar a atenção, mas costumam levar mais a
imobilismo e pânico (ou, no sentido contrário: crença ingênua de que qualquer
movimento na esquina é o anúncio, enfim, do fim do capitalismo) do que a gerar
senso de urgência militante.
É preciso ser
novamente brutal. A política, afinal, muitas vezes o exige, o que costuma
causar repelência no pequeno-burguês cheio de afinidades por nuances e
sutilezas (muitos acadêmicos transformam este ethos em
carreira de vida): quem fala muito em catástrofe sem defender e praticar uma
política antagônica ao capitalismo (o que não é um vago anti-capitalismo, mas
um novo comunismo) é um irresponsável. Principalmente se condena
unilateralmente e em bloco – quanto se trata de ser anti-comunista, as nuances
dos acadêmicos vão pro espaço – toda experiência passada que, de fato, gerou
medo ao mundo capitalista (quantas vezes nossos profetas conseguiram fazer
isso?), com os termos e avaliações os mais banais e óbvios possíveis. Serve
apenas para fomentar niilismo estético, vendável e até rentável, de sabor
aristocrático.
Se a postura da espera
profética, pregação apocalíptica ou milenarista (um dia haverá o Arrebatamento,
e o capital se dissolverá em um passe de mágica, com o fim imediato da
mercadoria, da moeda, do direito, do Estado, etc.) é, portanto, outro tique
deletério e clássico da história da esquerda, um verdadeiro obstáculo
epistemológico a impedir a formação de caminhos promissores, resta, então,
sermos realistas: nossas tarefas são de cunho mais basilares, pré-políticas, e
podem não soar tão encantadoras no curto prazo para quem quer resultados
rápidos.
<><> O que
se entende por “pré-político”?
Simplesmente isto:
antes de se ter qualquer programa acabado ou estratégia elaborada em
laboratório – o que é um franco idealismo quando não há ancoragem em trabalho
político efetivo e que produza resultados verificáveis –, é melhor focar nossas
energias em outras coisas indispensáveis, mas anteriores. O caminho
estratégico, fora balizas muito gerais, só pode ser elaborado de forma real
após uma política existir e ganhar corpo e potência.
Podemos listar quatro
dessas “coisas anteriores” à existência de uma nova política: (a) formação de
uma intelectualidade marxista qualificada e orientada para um novo comunismo;
(b) criação de vínculos orgânicos com as massas; (c) inserção em movimentos já
existentes, de cunho muito reivindicativo (portanto, pré-político) mas com
potencial de politização; (d) realização de um esforço intelectual e
investigativo a respeito do país e do mundo, e de suas organizações e
sequências políticas de pelo menos desde o início do século XX.
A respeito da primeira
tarefa: não se trata simplesmente de fazer análises e tecer opiniões críticas a
respeito do capitalismo. Não há coisa mais fácil do que falar mal do
capitalismo – mesmo alguns capitalistas falam! –, e isso nunca fez mal algum a
este modo de produção. A tarefa central é criar condições para um novo
comunismo, afirmativo, resoluto, sem pagamento de pedágio. Isto só é possível
com uma avaliação honesta e inventiva dos fracassos e obstáculos da sequência
comunista anterior, inaugurada pela Revolução de Outubro de 1917. O dogmatismo
da mera defesa do passado deve ser combatido tanto quanto quem acha que tudo
deve ser recriado do zero e não há de bom para aprender ou defender.
Isto inevitavelmente
produzirá certo isolamento num primeiro momento, pois “comunismo” ainda é uma
palavra amaldiçoada. Mesmo intelectuais críticos à ordem são reticentes quanto
se trata de dar novo peso e glória a esta palavra. Mas acabar com esta maldição
é nossa primeira tarefa, pois sem ordem nas ideias, é impossível ter ordem em
matéria de organização, como diria Mao. E sem luta ideológica efetiva, nenhuma
orientação política é possível, segundo o mesmo chinês.
A segunda tarefa é,
provavelmente, a mais trabalhosa, difícil, prolongada e pouco compensatória
(pelo menos, no curto prazo), mas é a mais indispensável. Trata-se de criar
vinculações entre intelectuais comunistas e massas laboriosas, onde quer que
elas estejam, nos ambientes de trabalho, moradia, socialização, etc. O caminho
dos “cursinhos populares” – apesar dos limites, pois é algo facilmente passível
de despolitização –, o investimento em educação popular em periferias, a
retomada do movimento da extensão universitária (como advocacia e médicos
populares), são as apostas mais promissoras nesta direção.
É preciso,
provavelmente, criar uma mistura de organizações de ajuda (com serviços de
primeiros socorros, auxílio jurídico, clínicas para problemas de saúde mental e
adicção, organização de restaurantes comunitários, alfabetização e auxílio
escolar, etc.) com escolas políticas transmitindo tudo o que diz respeito à
história da luta entre capitalismo e comunismo nos últimos dois séculos, pelo
menos. O caminho das organizações brasileiras dos anos 1970 e 1980 que
apostaram no trabalho popular deve ser retomado. Precisamos estudá-las.
A terceira é,
provavelmente, a que mais atualmente ocorre na prática. O acompanhamento,
auxílio, divulgação e propaganda de movimentos como o VAT (Vida além do
trabalho) ou dos trabalhadores de aplicativos. Deve-se, contudo, evitar dois
erros. O primeiro é utilizar os movimentos de forma instrumental ou
oportunista, apenas para pescar quadros ou pretender receber os louros em caso
de vitórias. O aparelhismo clássico, em suma. O outro é o apoio irrefletido,
mero “suporte”, sem nada contribuir para o ultrapassamento do estágio puramente
reivindicativo ou com a formulação de palavras de ordem com capacidade de
unificação, mobilização e obtenção de vitórias políticas (a respeito da redução
da jornada de trabalho, por exemplo).
Por fim, a última
tarefa envolve um esforço coletivo tanto teórico quanto experimental. Não se
trata meramente de estudar a história de formações sociais, apesar de isso ser
importante, mas de constituir um arquivo, quiçá uma enciclopédia, da história
dos movimentos populares e das políticas emancipatórias do último século, no
nível global e nacional.
Este estudo do passado
deve ser complementado por um esforço para realizar investigações concretas
(isto é, trabalho de campo por meio de reuniões com pessoas envolvidas) a
respeito das principais questões do capitalismo contemporâneo – como se
estrutura a vida urbana, o que é o campesinato contemporâneo, as grandes
migrações internacionais, como é a vida e o pensamento de quem mora nas
periferias das nossas metrópoles, como se estrutura o novo mundo do trabalho,
como se dá a disputa por matérias primas e minérios no globo –, na maior escala
possível, isto é, é um trabalho potencialmente e idealmente internacional.
De cunho político mais
imediato, é preciso se debruçar, no mínimo, com os movimentos históricos mais
recentes, fazendo um balanço detalhado dos seus fracassos ou limitações. Um
exemplo: as insurgências recentes na Colômbia (que originaram o governo Petro),
no Chile (na origem do governo Boric), mas também no Equador e Peru, onde
mobilizações enormes não geraram governos de esquerda bem-sucedidos. No Brasil,
é decisivo ainda meditar sobre junho de 2013 e o movimento de ocupação de
escolas de 2016.
Mais decisivamente, no
entanto, é necessário fazer um balanço das organizações e lutas políticas que
ocorreram nas últimas décadas onde a chama da revolução esteve viva: os anos
1960 e 1970. No Brasil, isto implica estudar tanto a luta armada como as organizações
que optaram por um caminho “pacífico”, não necessariamente eleitoral. As mais
interessantes não estavam, na verdade, fixadas em nenhum desses dois vértices
bem delimitados.
Estas décadas de
intensa politização, com as lutas de libertação nacional, os Panteras Negras, o
pós-maio de 68, as novas formas de luta operária e a criação de um novo
movimento comunista (muitas vezes com ideias inspiradas em referências novas,
como o maoismo e a Revolução Cultural) são frequentemente mal estudadas e
compreendidas. Fazer este estudo é uma necessidade e, portanto, um dever.
Por fim, eis algumas
indicações e sugestões para os comunistas brasileiros:
Não caiamos no erro de
achar que já possuímos uma teoria de partido pronta e acabada para o comunismo
do século XXI. Simplesmente não há exemplo de partido revolucionário bem
sucedido em nossa época, ao contrário da época em que o marxismo-leninismo era um
verdadeiro paradigma. Não é preciso jogar o passado fora, mas é dogmatismo
ossificado acreditar que as estruturas da III Internacional e o
marxismo-leninismo antigo dão conta dos nossos objetivos.
A teoria política,
organizativa e estratégia da terceira etapa do comunismo ainda precisa ser
criada, e ela necessariamente envolve entender por que os partidos-Estado da
III Internacional se tornaram alérgicos à invenção política comunista e
fracassaram, assim como compreender a complexidade – hoje obscura e coberta sob
um véu de total ignorância – da Revolução Cultural na China, a tentativa mais
radical e concreta de criar uma inovação dentro do campo marxista-leninista.
Trata-se da Comuna de
Paris do século XX: uma derrota prenhe de significados e lições para uma nova
política. Devemos repetir o gesto de Lênin e não meramente copiar sem
criatividade uma doutrina codificada: assim como ele lutou para criar uma
teoria e uma política capazes de superar os problemas da Comuna de Paris – isto
está diretamente na origem de obras como O que fazer –, é
necessário estudar as coisas interessantes (e há muitas), assim como os erros
fatais e desastrosos da Revolução Cultural. O marxismo está em sua etapa
pós-maoísta.
Tanto o stalinismo
quanto o trotskismo são ideologias conservadoras nos tempos atuais. O maoísmo
dogmático, militarista e caricato de organizações inspiradas no Sendero
Luminoso também. Os grupos professando tais referências e que conseguiram
sobreviver o fizeram a custo de muito enrijecimento dogmático, tornando-se
pesados e incapazes de inovação, ou através de um ecletismo e uma diluição que
tornam boa parte dessas palavras inoperantes ou sem sentido. O diálogo com este
grupos conservadores deve ser respeitoso mas polêmico, sempre indicando o
caráter impróprio dessas terminologias e referências obsoletas.
Há dois
problemas cruciais a serem encarados de frente: o eleitoralismo e o
federalismo. Engana-se quem subestima a força corrompedora e inercial das
instituições estatais burguesas e acha que pode blindar-se de seus efeitos
facilmente. Mesmo grupos sem estratégia eleitoralista na história do movimento
comunista (isto é, anti-revisionistas, críticos ao eurocomunismo, etc.)
facilmente se veem presas da postura defensiva de orientar suas táticas em
torno da manutenção de seus aparelhos ou currais ao adentrarem no jogo
institucional. Vemos isso até em grupos trotskistas em seus sindicatos.
O contágio inercial e
possivelmente conservador de estratégias que apostam na conquista e manutenção
de pedaços do Estado (sejam prefeituras, universidades ou sindicatos) não deve
ser subestimado. Quando a vida eleitoral passa a ditar o tempo da organização,
é difícil haver caminho efetivamente alternativo ao capitalismo. Pelo menos
nunca vimos isso em toda nossa experiência histórica.
Já o federalismo
tornou-se uma espécie de ideologia espontânea dos movimentos de nossos tempos.
Trata-se da concepção da política que a identifica pelo conjunto múltiplo de
lutas dos movimentos sociais organizados em torno de suas próprias pautas,
formando uma espécie de conexão positiva entre todos eles, um circuito de feedbacks positivos
sem nenhuma unidade política maior ou visão estratégica de conjunto.
A grande formulação
moderna desta ideologia se encontra nos intelectuais e militantes, como Félix
Guattari, que viram no maio de 68 não uma possível unificação política de novo
tipo fornecida pela diagonal entre intelectuais, operários, camponeses e massas,
mas uma explosão fragmentada de múltiplas lutas dispersas e marcadas por
conteúdos próprios e auto-interessados.
É este o caldeirão que
forma a sopa do movimentismo contemporâneo, operando mesmo em grandes levantes
históricos. A hipótese a ser levantada é que no caso do Chile isto ficou
particularmente claro: a somatória de lutas parciais (de movimentos de gênero, raça,
educação, saúde, minorias nacionais, etc.), unificada apenas pela negação à
Constituição de Pinochet, sem existência de organização política dirigente e
capaz de criar uma unidade popular ativa, através de uma visão de conjunto da
situação e de prescrições precisas e simples, incapacitou a luta pela nova
Constituinte, que se tornou uma grande caixa de ressonância de movimentos
fragmentados.
Estas indicações têm
apenas um propósito: estimular os comunistas brasileiros a construir os
rudimentos de um novo caminho político. Esta tarefa ainda está em um estágio
muito inicial e precário, mas há aspectos promissores: o entusiasmo da
juventude com os novos intelectuais comunistas – muitos deles, de origem
proletária –, bastante populares nas redes sociais, é bastante animador.
No entanto, a lucidez
envolve justamente não cegar-se com sucessos momentâneos e nutrir expectativas
falsas. O salto de que precisamos para conseguir criar uma política efetiva é
enorme. Sair do niilismo contemporâneo não é uma tarefa fácil. Por isso, digamos,
de forma provocativa, como Mao: “Não ter um ponto de vista político correto é
como não ter alma”.
Lutemos, então, para
ter uma alma, e, assim, quem sabe, sustentar a ambição de tempos menos
niilistas: salvação e imortalidade. Sem precisarmos, contudo, de qualquer Céu
transcendente. Trata-se de matéria telúrica, do aqui e agora.
Fonte: Por Diogo
Fagundes, em A Terra é Redonda
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