Acordo que
prevê custeio de tratamentos registrados na Anvisa, acende alerta a pacientes
com doenças raras
O
Supremo Tribunal Federal (STF) analisa o termo apresentado pelo Ministério da
Saúde, junto ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ao
Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que propõe um
acordo de judicialização da saúde com o objetivo de organizar a questão no
país. A proposta busca separar as competências de municípios, estados e União
no custeio de medicamentos não incorporados pela Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).
Tratamentos
com custo anual unitário igual ou superior a 210 salários mínimos,
aproximadamente 300 mil reais, devem ser pagos pelo Governo Federal, de acordo
com a proposta. Medicamentos abaixo desse piso e acima de 10 mil reais serão
custeados 65% pela União e 35% pelos estados, que também ficam responsáveis por
cobrir processos com valores de medicamentos abaixo de 10 mil reais. O termo
estabelece como critério o registro Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa).
Secretários
estaduais e municipais deverão firmar acordo sobre essas responsabilidades em
câmaras bipartites após aprovação do termo pelo STF, podendo dividir o custeio
conforme a capacidade financeira e demanda de cada um deles. A ideia é
desonerar principalmente municípios menores, com poucos recursos destinados à
saúde.
No
entanto, a proposta tem dividido opiniões. Secretários de saúde vem a proposta
como positiva, com capacidade de organizar o sistema e fazer com que o
Ministério da Saúde assuma a principal fatia dos custos. Por outro lado,
entidades como a Confederação Nacional de Municípios (CNM) solicitam que o STF
suspenda o acordo, por não ter participado das tratativas. Também há críticas
em relação à necessidade de registro da Anvisa. Apesar de apontar que o STF já
fixou tese que permite a judicialização e custeio de medicamentos não
registrados no Brasil de forma excepcional, a Associação da Indústria
Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) afirma, em nota, que “a Anvisa nem sempre
consegue analisar os pedidos de registro com a celeridade necessária para que
os pacientes recebam o tratamento a tempo de mudar o curso da doença”.
Para
a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas), o
entendimento do ministro Gilmar Mendes sobre o acordo precisa manter essa tese.
“Se surge um medicamento hoje no Japão, por exemplo, para uma doença com
incidência no Brasil menor que 20 habitantes, a empresa não vai vir para
registrar esse único tratamento na Anvisa. Não compensa montar uma estrutura
aqui”, afirma Antoine Daher, presidente da entidade.
O
que o acordo de judicialização muda?
Não
há consenso atualmente sobre quem paga a judicialização de medicamentos no
âmbito do SUS. Os processos podem envolver municípios, estados e Governo
Federal de acordo com o entendimento dos juízes, da unidade de saúde que o
paciente busca acesso ao tratamento ou da região em que ele entra com o
processo.
“Hoje
o STF tem uma tese de que a responsabilidade é solidária. Então, paga o ente
federativo que figura no polo passivo. Se o cidadão entrou contra o município,
o município paga e pode com ação regressiva ou procedimentos administrativos
reaver o recurso, se isso era da competência do estado ou União, por exemplo”,
explica Fernando Aith, professor titular do Departamento de Política, Gestão e
Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
O
acordo busca organizar as decisões, para que os processos sejam cobrados
diretamente dos entes que são considerados responsáveis. Isso pode contribuir
para que municípios não tenham seu orçamento gasto com a judicialização,
principalmente aqueles com verba limitada para a saúde.
No
entanto, Aith, que também é co-diretor científico do Núcleo de Pesquisa em
Direito Sanitário da USP, alerta que é preciso ver como o STF irá incorporar o
acordo à sua decisão. Isso porque o tribunal pode buscar construir uma súmula
vinculante com os termos propostos, o que pode orientar todas as instâncias do
país.
“Esse
acordo é mais uma tentativa de qualificar as decisões judiciais no campo da
saúde, torná-las mais racionais e tentando fazer com que a decisão tenha mais
aderência à política pública”, observa o professor.
Aith
observa que apesar da importância para os gestores públicos, há o risco do
acordo trazer um impacto na celeridade dos processos, já que será necessário
incorporar o Ministério da Saúde nas discussões, o que leva os casos para outra
instância, à Justiça Federal. Consequentemente, pode afetar o prazo para acesso
a medicamentos.
“A
política pública no Brasil é falha. Muitas vezes o medicamento está na Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e não está na ponta ou no serviço
que se solicita. É um problema de gestão. O fato de chamar a União para junto
dos processos pode tornar mais moroso e dificultar o acesso à Justiça ao
cidadão”, explica o professor.
·
Estados e municípios
“De
certa forma é mais uma maneira de buscar correção na histórica distorção entre
os gastos em ações e serviços públicos de saúde feitos por estados e
municípios, em relação aos gastos da União. Portanto, é de extrema importância
o redimensionamento das responsabilidades pelo financiamento da judicialização
sobre a União, reduzindo a pressão sobre os sistemas de saúde locais, já
desfinanciados”, afirma Tânia Mara Coelho, secretária de estado da Saúde do
Ceará e vice-presidente do Conass.
A
gestora explica que o principal problema da judicialização é a utilização de
recursos não previstos para o pagamento de tratamentos, em especial aqueles de
alto custo. Com isso, há uma desorganização do sistema, já que é preciso
realocar as verbas, o que pode, a longo prazo, inviabilizar serviços.
“Ao
tempo que ações judiciais garantem o direito individual dos cidadãos, o
cumprimento destas ações, na magnitude e frequência com que tem ocorrido,
comprometem direta e significativamente o planejamento de ações de caráter
coletivo pelos gestores – do que decorre um impacto direto na sustentabilidade
do sistema público de saúde, tornando-o menos eficiente”, observa a
vice-presidente do Conass.
Levantamento
feito pela Instituto Cabem Mais Vidas, com informações obtidas na Base Nacional
de Dados do Poder Judiciário (DataJud), aponta que em 14% dos estados e 11% dos
municípios brasileiros a judicialização pode empenhar entre 10% e 30% do
orçamento da saúde.
“Há
cidadãos buscando garantir o direito de acesso ao tratamento que muitas vezes
deveriam estar acessíveis, e que precisam ir à Justiça. Em contrapartida há o
volume da judicialização e o gasto aumentando absurdamente, o que traz riscos à
sociedade. Grande parte dos recursos acabam indo por esse caminho, e não para
uma política pública pensada”, explica Fernando Korkes, médico urologista,
membro do Conselho Científico do Instituto Oncoguia e um dos responsáveis pelo
levantamento.
Os
municípios estão entre os entes federativos mais afetados. O levantamento do
Instituto observou que cerca de 270 cidades do Brasil gastam entre 30% e 100%
dos seus orçamentos da saúde com a judicialização. A busca por tratamentos não
incorporados ao SUS está entre os principais motivos.
“Em
São Bernardo do Campo, o gasto com medicamentos para todos os 800 mil
habitantes é de 30 milhões de reais. O gasto com a judicialização é de quase 20
milhões de reais anualmente. Atualmente, esse valor é gasto com aproximadamente
400 ações, e ano a ano tem um acréscimo entre 10% e 15% com novos casos”,
afirma Geraldo Reple Sobrinho, secretário municipal de Saúde de São Bernardo do
Campo e presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de
São Paulo (Cosems/SP).
Sobrinho
explica que o ressarcimento de gastos judiciais de municípios com tratamentos
que eram de competência de estados ou União ocorre em raras ocasiões. Mesmo
pacientes que têm plano de saúde acabam entrando com processos contra o SUS, e
os municípios não conseguem ressarcimento.
“A
proposta para os municípios é muito boa. Hoje quando tem um caso de
judicialização, como o juiz está na Comarca ele processa o município, que acaba
tendo que pagar indenizações altíssimas. Na proposta, até um determinado valor
fica com o Governo Federal, outra faixa com os estados e os municípios ficariam
com processos com valores menores”, observa o presidente do Cosems/SP.
·
Pontos de atenção
Apesar
de o Ministério da Saúde buscar um termo de acordo com estados e municípios,
provocado pelo ministro Gilmar Mendes, Fernando Korkes, do Oncoguia, afirma que
é preciso haver uma atenção às políticas públicas para além da judicialização.
É o caso, por exemplo, da incorporação de tecnologias ao SUS.
“As
análises de custo-efetividade que a Conitec faz não leva em consideração a
judicialização. Os relatórios são super elaborados por gente competente que
participa da Comissão, mas é uma conta inocente. Tem o outro lado para se
pensar. Se a gente não aprovar esse tratamento, qual será o impacto
orçamentário?”, observa o médico.
Ele
explica que é preciso refletir sobre o diagnóstico tardio de doenças, em
especial o câncer, e a falta de políticas públicas robustas de prevenção. Isso
porque o investimento em tratamentos para estágios mais avançados da doença
tendem a ser mais caros, sendo uma das áreas que as empresas farmacêuticas mais
investem hoje.
“O
câncer de próstata tem novos tratamentos que multiplicam por 10 vezes o valor
do tratamento padrão utilizado. Hoje, para o câncer de bexiga, o custo do
tratamento ao SUS é de cerca de 60 mil reais ao ano por paciente, mas já há
tratamentos aprovados pela Anvisa que custam 1,3 milhão de reais ao ano, e
existem casos de judicialização para acessá-los, no público e privado”, analisa
Korkes.
Também
há a preocupação sobre o acordo proposto em relação a pacientes com doenças
raras. Em 2019, o STF estabeleceu a tese que é possível a concessão judicial de
medicamentos sem registro sanitário no Brasil em casos excepcionais. Um desses
casos seria o de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras,
registrados em agências de renome no exterior, com o U.S. Food and Drug
Administration (FDA) ou o European Medicines Agency (EMA).
“Estamos
falando da exceção, porque tem muitas empresas que demoram para registrar
porque querem ser judicializadas para vender pelo preço cheio. Não querem
nacionalizar o preço. Não somos a favor desses casos. Somos a favor daqueles
que o único tratamento que surgiu está registrado em um país com as agências
reconhecidas, principalmente para doenças ultrarraras”, explica Antoine Daher,
presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras
(Febrararas).
Por
isso, a entidade entrou como amicus curiae no processo do STF, para reforçar o
pedido aos ministros que mantenham o entendimento, já que o acordo proposto
pelo Ministério da Saúde fala apenas em custeio de medicamentos com registro na
Anvisa. A entidade pretende levar dados para corroborar seu posicionamento.
“O
paciente que nasce com doenças de depósitos, que agora foram contemplados com a
ampliação do teste do pezinho e serão diagnosticados, cada dia que passa tem
degeneração. É o caso da AME, por exemplo. Imagina startups pequenas, com
poucos anos de vida, que desenvolveram moléculas inovadoras que podem ajudar o
paciente. Vamos deixar esse paciente morrer porque o produto não pôde ser
registrado aqui, mas tem a chancela do EMA e FDA?”, questiona Daher.
Fonte:
Futuro da Saúde
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