Valerio Arcary: ‘O bolsonarismo pode voltar
ao poder?’
O bolsonarismo pode
voltar ao poder em 2026? Sim, pode. Devemos considerar a existência de
poderosos fatores objetivos e subjetivos para explicar a resiliência da extrema
direita, mesmo depois da derrota da semi-insurreição de janeiro de 2023.
Mas, em primeiro
lugar, é lúcido reconhecer o contexto internacional do fenômeno, no qual a
extrema direita cumpre um papel instrumental:
(a) a turbulência no
sistema de Estados com o fortalecimento da China e a estratégia do imperialismo
norte-americano de preservação da supremacia da Troika, para a qual uma
orientação protecionista mais dura é útil;
(b) as disputas
provocadas pela emergência da crise ambiental e transição energética que deixam
em desvantagem temporária quem fizer a descarbonização mais rápida.
(c) O giro de frações
burguesas para a defesa de regimes autoritários que enfrentem o protesto
popular e abracem um linha nacional-imperialista;
(d) a tendência à
estagnação econômica e o empobrecimento e deslocamento à direita das camadas
médias;
(e) a assombrosa crise
da esquerda, entre outros.
Mas há peculiaridades
brasileiras na fragmentação política do país. Elas são, essencialmente, cinco:
(i) a hegemonia entre militares e policiais;
(ii) (a gravitação da imensa maioria do
evangelismo pentecostal em torno da extrema-direita;
(iii) o peso do bolsonarismo nas regiões mais
desenvolvidas, o Sudeste e o Sul do país, em especial entre a nova classe média
proprietária, ou de altíssima escolaridade que cumpre funções executivas no
setor privado e público;
(iv) a liderança da corrente neofascista dentro
da extrema-direita;
(v) a audiência da extrema direita entre as
camadas médias assalariadas entre três e cinco, ou até sete salários-mínimos.
As quatro primeiras
singularidades têm sido muito investigadas, mas a última, menos. Estudá-la é
estratégico, porque pode ser a única possível de reverter, no contexto de uma
situação muito desfavorável de relações sociais de forças ainda reacionária.
Há fatores objetivos
que explicam o afastamento, divisão ou separação política entre parcelas da
classe trabalhadora e os muito pobres, como a inflação da educação privada e
dos planos de saúde, e o aumento do Imposto de Renda, que são ameaças a um
modelo de consumo e padrão de vida, e subjetivos, como o ressentimento social e
o rancor moral-ideológico. Os dois estão entrelaçados e, talvez, até
indivisíveis.
Mas não foi assim
quando, há quarenta e cinco anos atrás, se abriu a fase final da luta contra a
ditadura. O PT nasceu apoiado nos metalúrgicos, professores públicos,
petroleiros, bancários e outras categorias que, comparativamente, à realidade
das massas populares, tinham mais escolaridade e melhores salários. O lulismo,
ou lealdade política à experiência dos governos liderados pelo PT, permitiu
conquistar o apoio entre os muito pobres. Mas a esquerda, embora mantenha
posições, perdeu a hegemonia sobre sua base social de massas original. Esta
trágica realidade, porque se trata da fratura da classe trabalhadora, nos impõe
uma análise em perspectiva histórica.
O período do
pós-guerra (1945/1981) de crescimento intenso, em que se duplicava o PIB a cada
década, e que favoreceu a mobilidade social absoluta no Brasil, acompanhando a
urbanização acelerada, parece ter ficado, irremediavelmente, no passado. Pleno
emprego e elevação da escolaridade, em um país em que a metade da força de
trabalho era iletrada, foram os dois fatores chaves para a melhoria de vida
deste estrato de trabalhadores. Mas eles não pressionam mais como no passado.
É evidente que, na
última década, o capitalismo brasileiro perdeu impulso. Regrediu 7% do PIB
entre 2015/17 e, depois da pandemia de covid entre 2020/21, demorou três anos
para voltar aos níveis de 2019. A despeito de todas as contrarreformas
antissociais – trabalhista, previdenciária – que tiveram como objetivo reduzir
os custos de produção a taxa de investimento não foi além de 18% do PIB em
2023, apesar da autorização da PEC de transição de furar o Teto de Gastos
Públicos.
O Brasil, o maior
parque industrial e maior mercado de consumo de bens duráveis na periferia,
passou a ser uma nação de crescimento lento. O aumento da escolaridade deixou
de ser, também, um fator de impulso tão poderoso. Melhorar de vida passou a ser
muito mais difícil.
O Brasil de 2024 é um
país menos pobre do que foi no século XX, mas não menos injusto. Ainda há,
evidentemente, muita miséria: duas dezenas de milhões ou até mais oscilam na
insegurança alimentar, apesar do Bolsa Família, em função do ciclo econômico.
Mas ocorreu uma redução da extrema pobreza sem que a desigualdade social tenha
diminuído, qualitativamente.
A distribuição
funcional da renda entre capital e trabalho conheceu variações na margem. A
distribuição pessoal da renda melhorou entre 2003 e 2014, mas voltou a aumentar
desde 2015/16, na sequência do golpe institucional contra o governo Dilma
Rousseff. A pobreza extrema diminuiu, mas a metade da população,
economicamente, ativa tem uma renda que não vai além de dois salários mínimos.
Um terço dos assalariados ganha entre três e cinco salários mínimos. A
iniquidade permaneceu quase intacta porque, entre outras razões, o lugar das
camadas médias assalariadas com nível de instrução mais elevada conheceu uma
estagnação com viés de queda.
Inúmeros estudos
confirmam que o aumento da escolaridade média não mantém relação com a
empregabilidade, e as pesquisas do IBGE confirmam, paradoxalmente, que o
desemprego é maior na medida em que aumenta a escolaridade. A maior parte das
milhões de carteiras assinadas, desde o fim da pandemia, foi de empregos de até
dois salários mínimos, com muito reduzidas exigências de formação escolar.
Consideram-se duas
taxas de mobilidade, a absoluta e a relativa, para avaliar a maior ou menor
coesão social em um país. A taxa absoluta compara a ocupação do pai e a do
filho, ou a primeira atividade de cada um com o último emprego de cada um. A
taxa de mobilidade relativa confere em que medida os obstáculos de acesso a
posições de emprego – ou oportunidades de estudo – que favorecem a ascensão
social, puderam ou não ser superados pelos que estavam em posição social
inferior.
No Brasil, tanto a
taxa absoluta quanto a relativa foram positivas até à década dos anos 1980, mas
a primeira foi mais intensa que a segunda. Em outras palavras, conhecemos uma
intensa mobilidade social no pós-guerra devido à pressão da urbanização e das
migrações internas, do Nordeste para o Sudeste, e do Sul para o Centro-oeste.
Mas deixou de ser assim. Esta etapa histórica se encerrou a partir dos anos
noventa, quando o fluxo que vinha do mundo agrário se esgotou.
Desde então diminuiu a
miséria, mas os trabalhadores das camadas médias experimentaram uma realidade
mais hostil. O que explica esse processo é que as trajetórias de mobilidade
social nos últimos vinte anos beneficiaram milhões de pessoas que viviam na pobreza-extrema,
mas muito poucos ascenderam de forma significativa. Muitos melhoraram de vida,
mas subiram, somente, para o degrau imediatamente acima ao que seus pais
ocupavam.
A mobilidade social
relativa permaneceu muito baixa, porque os incentivos materiais ao aumento da
escolaridade foram, nos últimos quarenta anos, menores do que tinham sido para
a geração que chegou à vida adulta nas décadas de cinquenta ou sessenta. A recompensa
das famílias por manter seus filhos sem trabalhar por pelo menos doze anos, até
à conclusão do ensino médio, comparativamente, à geração anterior, diminuiu,
apesar do acesso mais fácil.
Um país pode partir de
uma situação de grande desigualdade social, mas se a mobilidade social for
intensa, a desigualdade social deveria se reduzir, aumentando a coesão social,
como aconteceu na Itália do pós-guerra. Inversamente, um país que, comparativamente,
aos vizinhos que ocupam um lugar semelhante no mundo, tinha baixa desigualdade
social pode ver a situação se deteriorar, se a mobilidade social passar a ser
regressiva, como se evidencia hoje na França.
No Brasil,
contrariando o senso comum sobre o tema, a maioria dos novos empregos dos
últimos dez anos não beneficiou a parcela mais instruída do povo. Estudar mais
não diminuiu o perigo do desemprego. A escolaridade média subiu, nos últimos
quarenta e cinco anos que nos separam de 1979, de três para mais de oito anos.
Mas aconteceram duas transformações que tiveram um impacto duradouro na
consciência da juventude da classe trabalhadora.
A primeira é que o
capitalismo brasileiro deixou de ser uma sociedade de pleno emprego, como tinha
sido durante meio século. A segunda é que, mesmo com os sacrifícios das
famílias para manter os filhos estudando, adiando a entrada no mercado de
trabalho, a empregabilidade se concentrou em atividades que exigem pouca
escolaridade, e oferecem baixos salários. Pela primeira vez na história, os
filhos perderam a esperança de poder viver melhor do que os pais.
O desemprego entre
aqueles com escolaridade de nível superior é, proporcionalmente, maior que o
daqueles com baixa escolaridade e, se a desigualdade pessoal de renda diminuiu
nos últimos quinze anos, é porque o salário médio de integração no mercado de trabalho
dos que têm média e alta escolaridade veio diminuindo. Não surpreende,
portanto, a vertiginosa expansão da uberização. As pesquisas mensais de emprego
do IBGE na região metropolitana de São Paulo indicam uma evolução muito lenta e
próxima somente, quando muito, da recuperação da inflação.
Quase quarenta anos
depois do fim da ditadura militar, o balanço econômico-social do regime de
democracia liberal revela-se desanimador. As reformas realizadas pelo regime,
como a ampliação de acesso ao ensino público, implantação do SUS, do
Bolsa-Família para a extrema-pobreza, entre outros, foram progressivos, mas
insuficientes para reduzir a desigualdade social.[i] A hipótese de que uma
população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país,
impulsionando um ciclo sustentável de crescimento econômico e distribuição de
renda não se confirmou.
Uma forma de ilusão
gradualista na perspectiva de justiça social nos limites do capitalismo foi a
esperança de que uma população mais instruída mudaria, gradualmente, a
realidade social do país. O que nos remete aos limites dos governos de coalizão
liderados pelo PT, que apostaram na concertação com a classe dominante para uma
regulação do capitalismo “selvagem”. Embora existam correlações, na longa
duração, entre escolaridade e crescimento econômico, não se identificaram
causalidades diretas que sejam incontestáveis, menos ainda se incluímos a
variável da redução da desigualdade social, como confirma a Coreia do Sul.
O que é incontroverso
é que a burguesia brasileira se uniu em 2016 para derrubar o governo Dilma
Rousseff, apesar da moderação das reformas realizadas. Não deveria nos
surpreender que a classe dominante não tenha tido pudores de ir até à
manipulação do impeachment, subvertendo as regras do regime para tomar o poder
para os seus representantes diretos, como Michel Temer. O desafio é explicar
porque a classe trabalhadora não teve disposição de luta para defendê-la.
Os salários respondiam
por mais da metade da riqueza nacional no início da década de noventa e, no
intervalo dos últimos trinta anos, caíram para pouco mais de 40% em 1999 e,
apesar da recuperação entre 2004 e 2010, ainda estão hoje, em 2024, aquém do patamar
de 50% de 2014. Esta variável é significativa para uma avaliação da evolução da
desigualdade social, porque o Brasil de 2024 é uma sociedade que já completou a
transição histórica do mundo rural para o mundo urbano (86% da população vive
em cidades), e a maioria dos que trabalham com contratos, 38 milhões com
carteira e 13 milhões de funcionários públicos, recebem salários.
Outros dez milhões têm
patrão, mas não têm contratos. É verdade que ainda existem 25 milhões de
brasileiros que vivem do trabalho por conta própria, mas são menos,
proporcionalmente, que no passado.
Em resumo: não melhorou a distribuição
funcional da renda entre capital e trabalho. A burguesia não tem porque se
queixar do regime-liberal. Ainda assim uma fração burguesa, como o agronegócio
e outros apoia o neofascismo e sua estratégia autoritária.
Os dados que indicam
que, dentro do universo dos assalariados, diminuiu a desigualdade social são
convincentes. Mas não porque diminuiu a injustiça, embora a miséria tenha sido
reduzida. Este processo ocorreu porque se verificaram duas tendências opostas
no mercado de trabalho. Uma delas é, relativamente, nova, e a outra é mais
antiga. A primeira foi uma elevação dos pisos salariais dos setores menos
qualificados e menos organizados. O salário mínimo veio se elevando acima da
desvalorização de forma lenta, porém, contínua desde 1994 com a introdução do
real, acelerado nos anos dos governos Lula e Dilma Rousseff.
Este fenômeno foi
novo, porque nos quinze anos anteriores tinha acontecido o inverso. O salário
mínimo é uma variável econômica chave porque ele é o piso da remuneração das
aposentadorias do INSS, por isso a burguesia exige a desvinculação. A
recuperação econômica favorecida pelo ciclo mundial de aumento da demanda de
commodities permitiu, a partir do segundo semestre de 2005, uma diminuição do
desemprego que culminou em 2014 em situação de quase pleno emprego.
A massificação da
distribuição do Bolsa-família parece ter exercido, também, uma pressão sobre a
remuneração do trabalho manual, sobretudo, nas regiões menos industrializadas.
A segunda tendência foi a permanência da queda nas remunerações dos trabalhos com
exigência de escolaridade média e superior, um processo que vinha desde os anos
oitenta. Em conclusão: os dados disponíveis parecem indicar que o aumento da
escolaridade deixou de ser um fator de ascensão social importante, como foi no
passado.
A lealdade política
das massas populares ao lulismo é expressão do primeiro fenômeno. A vida dos
mais pobres melhorou nos anos dos governos liderados pelo PT. A divisão entre
os assalariados que ganham acima de dois salários-mínimos expressa um ressentimento
social que foi manipulado pelo bolsonarismo. Se a esquerda não reconquistar
confiança nesta parcela dos trabalhadores o perigo para 2026 é grande.
Fonte: A Terra é
Redonda
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