domingo, 26 de maio de 2024

As críticas em torno da contratação de megaconsultoria para reconstrução de Porto Alegre

Gigante de consultoria em gestão e negócios com atuação em quatro continentes, a Alvarez & Marsal (A&M) é a primeira empresa de porte global na área de capital de investimentos a incorporar-se à reconstrução de Porto Alegre após a enchente.

A prefeitura da capital, responsável pela contratação da A&M, enfatiza a experiência da empresa na resposta aos efeitos do furacão Katrina, em 2005, nos Estados Unidos. Foi justamente esse episódio, porém, que suscitou mais críticas à companhia, associando-a a políticas de desregulação e privatização de serviços públicos. Esse receituário foi batizado pela escritora canadense de esquerda Naomi Klein de “capitalismo de desastre”.

No Brasil, onde está presente desde 2004, a empresa é alvo de considerações semelhantes, mesmo antes de apresentar qualquer proposta como ocorre em Porto Alegre. A A&M diz que seu objetivo é fazer um diagnóstico da situação da infraestrutura local e propor formas de financiar a reconstrução. A companhia garante que segue rigorosamente termos de contratos com clientes e práticas de mercado.

Porto Alegre, e todo o Estado do Rio Grande do Sul, foram atingidos por fortes temporais nas últimas semanas. Após o lago Guaíba atingir o nível recorde de 5,33 metros no último dia 2, suas águas estavam baixando lenta, mas constantemente. Mas chuva que retornou à região metropolitana da capital na quinta-feira (23/5) e o nível voltou a subir. Especialistas projetam volume acima da cota de inundação até o início de junho.

Mais de 30 técnicos da A&M trabalham desde segunda-feira (13/5) na elaboração de um plano de recuperação da infraestrutura da cidade. O estudo deve ser concluído em 30 dias. No total, a consultoria durará 60 dias, em regime pro bono (sem ônus para o tomador, no caso, o município).

A empresa também assinou contrato de prestação de serviços de consultoria ao governo do Rio Grande do Sul, na mesma modalidade sem ônus, segundo a assessoria do governador Eduardo Leite. A administração estadual anunciou que fará acertos do mesmo tipo com outras consultorias, como McKinsey e EY.

Em Porto Alegre, o trabalho resultará no que a A&M chama de “plano macro preliminar” para recuperação da capital. A assessoria da empresa definiu nos seguintes termos o escopo do trabalho: “Calcular o impacto (da enchente) na infraestrutura da cidade para sugerir alternativas de fontes de recursos para reconstrução”.

Questionada pela BBC News Brasil a respeito de detalhes de seu estudo, a A&M disse que, no momento, concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura do plano, apresentará um cronograma para implementação à prefeitura.

A prefeitura poderá acolher ou rejeitar o projeto, mas já definiu que não contratará a empresa após a conclusão do estudo, segundo o vice-prefeito Ricardo Gomes (sem partido).

Na sexta-feira (17/5), quando o contrato entre prefeitura e A&M foi assinado, a equipe da firma já havia se reunido com o prefeito, o vice e representantes das secretarias de Obras e Infraestrutura e Habitação e Regularização Fundiária e do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). Encontros com as secretarias de Saúde e Educação estavam previstos. Todas as secretarias que sofreram impacto da catástrofe farão reuniões com os consultores.

O projeto incluirá áreas como saneamento, construção civil e outros segmentos da infraestrutura local afetados pelas águas. A empresa não designou porta-voz em Porto Alegre. Segundo a assessoria, a consultoria está em fase de levantamento de informações.

Identidade, área de especialização e origem dos técnicos são preservadas. Sabe-se apenas que se trata de um time multidisciplinar e de várias nacionalidades, segundo a assessoria da A&M.

Ao dar início a um novo projeto, a empresa costuma buscar em seu quadro de pessoal espalhado por mais de 80 países aqueles com perfil e qualificação mais adequados para cada tarefa específica. Neste momento, por exemplo, uma equipe brasileira da área de mineração trabalha em um projeto na Austrália.

Ao anunciar a contratação, na segunda-feira (13/5), o prefeito Sebastião Melo (MDB) disse que o serviço havia sido oferecido ao município por um dos sócios da A&M, “gaúcho e porto-alegrense”. Ao jornal Folha de S.Paulo, afirmou na quarta-feira (15/5) ter sido procurado por um “cidadão deles que mora aqui”. A assessoria da empresa disse que não divulgará o nome do executivo.

A execução do trabalho em Porto Alegre ficará a cargo do braço da A&M para capitais de infraestrutura. Essa unidade de negócios, fundada há cinco anos no Brasil, passou a ser chamada no ano passado de A&M Infra. Hoje, é considerada a maior empresa de projetos de capital e de infraestrutura no país. Com sede no Brasil, é responsável por mais de 300 projetos supervisionados por 500 profissionais na Europa, na Ásia, na América do Norte e na Oceania.

Fundada em 1983, nos Estados Unidos, pelos executivos Tony Alvarez e Bryan Marsal, a A&M ganhou reputação como consultoria especializada em prestar assistência a grandes conglomerados em dificuldades contábeis e financeiras. A área é conhecida como turnaround management (em tradução livre, “administração da volta por cima”).

No Brasil, a A&M adquiriu notoriedade ao contratar o ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2020. Moro foi alvo de investigação do Tribunal de Contas da União (TCU) por suposto conflito de interesse em razão do episódio, uma vez que a empresa havia prestado consultoria para corporações investigadas no âmbito da Operação Lava-Jato. Ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Moro julgou processos da operação de 2014 a 2018. O ex-ministro e a A&M sustentam que ele não atuou em casos ligados à operação. O processo segue em tramitação no TCU.

O prestígio da A&M em um setor competitivo como o de turnaround ficou evidente na crise bancária de 2007. Quando a direção do banco nova-iorquino Lehman Brothers decidiu decretar falência, no dia 14 de setembro daquele ano, a primeira pessoa que o advogado Harvey Miller, responsável pela operação, chamou foi Bryan Marsal. No dia seguinte, a bancarrota foi decretada, sob a supervisão da A&M. A quebra do Lehman Brothers contribuiu para deflagrar a crise financeira global de 2008.

Em 2005, executivos da empresa supervisionavam a reforma da educação pública em Nova Orleans quando a cidade foi atingida pelo furacão Katrina. Em meio aos destroços, técnicos da A&M arriscaram suas vidas para salvar computadores e planilhas em áreas devastadas pelo desastre.

A atuação da empresa no episódio, porém, não é imune a críticas. O professor da Universidade de Illinois Kenneth Saltman, autor do livro Capitalizing on disaster: taking and breaking public schools (Routledge, 2007) – em tradução livre, Capitalizando o desastre: tomando e quebrando escolas públicas –, afirma na obra que a A&M aproveitou a conjuntura pós-Katrina para promover uma agenda de privatização e elitização das escolas públicas locais.

Saltman afirmou, por e-mail, à BBC News Brasil: “Em razão da folha corrida da A&M em possibilitar a privatização e a destruição das escolas públicas de Nova Orleans e do seu envolvimento na demissão em massa de professores e no desmantelamento ilegal de seu sindicato, qualquer um que se preocupe com a educação pública deveria ficar alarmado e cético sobre qualquer consultoria que eles derem em educação em qualquer lugar”. À BBC News Brasil, a A&M afirmou, por meio de sua assessoria, não ter o que comentar sobre a opinião de Saltman.

No Brasil, a A&M prestou consultoria às Lojas Americanas e também à Vale depois do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais.

No Rio Grande do Sul, em 2020, a A&M foi uma das contratadas sem licitação pela Companhia Rio-grandense de Saneamento (Corsan) para realizar avaliação econômico-financeira da estatal, então em vias de privatização.

Em seguida, prestou consultoria ao consórcio Aegea, que arremataria a Corsan como único participante do leilão de venda por R$ 4,1 bilhões.

Em ação popular contra a privatização, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua) sustentou, entre outros pontos, que a legislação estadual e federal exige licitação para contratação de empresas com a finalidade de efetuar avaliação econômico-financeira de estatais em vias de privatização. Depois de uma disputa política e jurídica que se estendeu por três anos, a privatização da Corsan foi finalizada em 2023, com a transferência da empresa para o consórcio Aegea.

O anúncio do contrato entre a prefeitura e a A&M provocou críticas. Um grupo de professores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de outras instituições propôs em manifesto, entre outras medidas, que o governo do Estado crie uma fundação de estudos estratégicos responsável "pela geração de estatísticas e por análises essenciais para a boa condução das políticas públicas".

O vice-diretor da faculdade, André Moreira Cunha, um dos organizadores do texto, disse ao jornal Zero Hora: "A Alvarez & Marsal é uma empresa com muito prestígio, não questiono isso. A dúvida é se o tipo de experiência que tem é necessário e suficiente".

“O Rio Grande do Sul tem muita inteligência para ser usada. Já existe um fluxo de saída do Estado e do país. Se não trabalharmos de forma muito séria, esse processo pode se aprofundar”, explicou o professor.

O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) afirmou: “Privatizar a reconstrução da capital gaúcha é um erro, mas se agrava nesse caso devido ao histórico dessa empresa (A&M)”.

Em nota, o Sindiágua disse que o acerto tem como objetivo oculto a transferência de patrimônio público à iniciativa privada: “É fundamental destacar que a empresa contratada não está aqui para reconstruir a cidade, como pode parecer à primeira vista. Pelo contrário, seus esforços parecem direcionados para preparar o terreno para a privatização do Dmae”. A entidade acusa o prefeito de “estar aproveitando a distração da população para avançar com uma agenda que pode ter consequências desastrosas para o futuro de nossa comunidade”.

O presidente do Sindiágua, Arilson Wünsch, comentou ainda o risco de contratações pro bono serem utilizadas para acessar dados privilegiados da administração pública que, posteriormente, poderão ser vendidos a empresas privadas interessadas em fazer negócios com o poder público. "Depois que você está lá dentro, que você contrata uma empresa, que está lá dentro uma empresa privada trabalhando com qualquer empresa pública, ela começa a ter os dados, começa a ter os números da empresa", afirmou.

A respeito da manifestação do Sindiágua, disse que “tem uma unidade de negócios especialista em infraestrutura, formada por uma equipe sólida e de ampla expertise, qualificada para atuar em projetos de capital do setor”. Acrescentou que “segue, rigorosamente, cláusulas contratuais e de compliance com seus clientes, bem como as normas de mercado, com transparência e ética”.

O vice-prefeito Ricardo Gomes disse que o objetivo do acerto com a A&M é “compilar informações (sobre danos provocados pela enchente) e estruturar uma estratégia de buscar uma (reconstrução), seja pública ou privada, evitar que se percam oportunidades de financiamento e que duas fontes orçamentárias sejam destinadas para o mesmo objeto”.

Ele argumenta que certos hospitais e a maioria das escolas infantis de Porto Alegre já são operadas por empresas conveniadas e contratadas e que isso não configura enfraquecimento de fiscalização do poder público. “O foco é a prestação de serviço público, e esse serviço já é prestado em parceria com o setor privado há décadas”, sustenta.

Gomes adverte que, de qualquer maneira, a definição da forma de prestação do serviço cabe ao município e não à empresa de consultoria. “O máximo que pode acontecer é a consultoria sugerir, em um caso ou outro, as vantagens ou desvantagens de um ou outro modelo”, explica.

 

¨      Para o bolsotucanismo, 'estado bom é estado morto'. Por João Filho

AS CHUVAS NO SUL voltaram e a cidade de Porto Alegre já está sofrendo com inundações novamente. Algumas famílias tiveram que abandonar suas casas e outras tantas precisaram ser resgatadas.

É estarrecedor assistir à inoperância da prefeitura de Porto Alegre que, mais uma vez, subestimou alertas da previsão climática e não organizou um plano de evacuação adequado.

Enquanto o nível da água subia na última quinta-feira, o prefeito Sebastião Melo sumiu durante todo o dia. Depois, na coletiva de imprensa, confessou que sabia que as chuvas ocorreriam, mas foi surpreendido pelo alto volume.

Segundo ele, os registros apontam que choveu 130 mm em um intervalo de 15 horas. Ocorre que Instituto Nacional de Metereologia, o Inmet, já havia alertado para o grande volume de chuvas, que poderia superar os 100 mm em algumas regiões. Ou seja, o prefeito sabia da possibilidade de uma nova tragédia e nada fez.  

Como se já não bastasse o governador Eduardo Leite ter gastado apenas 0,0003% das verbas destinadas à prevenção das enchentes, o prefeito da capital gaúcha também preferiu economizar com a manutenção do sistema antienchente.

O que prefeito e governador têm em comum? A tara pelo estado mínimo, pelo superávit fiscal, pela dilapidação do setor público em favor do setor privado. Porto Alegre está há pelo menos sete anos sob a égide dessa lógica. 

O antecessor de Melo, o tucano Nelson Marchezan Jr, também faz parte dessa turma. Ele foi responsável por extinguir 14 secretarias municipais, entre elas o Departamento de Esgotos Pluviais, o DEP, órgão responsável pelo muro, diques, casas de bombas e toda a estrutura de contenção das águas do Rio Guaíba.

O Departamento Municipal de Água e Esgoto, o DMAE, absorveu essa responsabilidade, mas foi aos poucos sendo sucateado para atender à sanha privatista de Marchezan.

Essa conclusão não é minha, mas do TCE-RS, que apontou em relatório que o ex-prefeito teve “conduta contrária ao interesse público, desarrazoada e imprudente” na gestão do órgão mesmo após ter recebido vários alertas.

A investigação foi motivada por denúncias de que Marchezan havia tirado a autonomia do órgão, fazendo os serviços piorarem. O tribunal comprovou que o quadro de funcionários foi reduzido, assim como a capacitação deles.

Os serviços pioraram e as interrupções do abastecimento de água aumentaram em 40% em relação à gestão anterior. É mais um caso clássico de sucateamento de órgão público para preparar o terreno para o setor privado comprar e lucrar. 

Ontem, um manifesto assinado por 42 engenheiros e técnicos especialistas do Rio Grande do Sul apontou que o sistema antienchente de Porto Alegre é “robusto, eficiente, e fácil de operar e manter” e só não funcionou por falta de manutenção adequada.

O documento revela também um déficit de 2.400 funcionários no DMAE. Ou seja, a tragédia em Porto Alegre era fácil de ser evitada, não fosse a tara privatista. 

Durante a campanha eleitoral, Melo criticou Marchezan por perder “R$ 121 milhões destinados à reforma das casas que bombeiam a água da chuva”.  O prefeito bolsonarista afirmou que as casas de bombas “precisavam ser reformadas para resolver os problemas de alagamento” e prometeu retomar os investimentos no setor.

Depois de eleito, Melo não fez absolutamente nada para resolver o problema. Claro, cumprir uma promessa dessas custa dinheiro e, como se sabe, o que norteia a gestão dessa gente é a obsessão pelo enxugamento dos custos do Estado.

Nessa seara — e em muitas outras — o tucanismo e o bolsonarismo estão juntos e misturados. Além de tudo isso, Melo e sua turma são negacionistas do aquecimento global. O seu grupo político rejeita a ideia de que a ação humana é responsável pelas mudanças climáticas.

O seu vice-prefeito, por exemplo, é um integrante da Brasil Paralelo, a produtora de vídeos que divulga conteúdo negacionista e que serve aos interesses da extrema direita. 

Em tempos de tragédias climáticas, o combo negacionismo científico + tara pelo estado mínimo são bombas-relógio para qualquer cidade, estado ou país. E várias delas já estão explodindo. A conta do aquecimento global está chegando para todos e deixando escancarada a maldição que é a lógica ultraliberal somada ao negacionismo.

Haja vista o que aconteceu com o Brasil governado por Bolsonaro durante a pandemia.
Vivemos tempos em que defender essa combinação já não é mais mera questão ideológica, mas uma questão moral. Uma das lições que as últimas catástrofes climáticas nos traz é a de que a lógica do enxugamento do Estado causa danos devastadores para a sociedade.

Não é moralmente aceitável — ou não deveria ser — que governantes busquem bons resultados na planilha de Excel às custas do sofrimento do povo. A Argentina de hoje é um exemplo bem acabado disso.

O ultraliberal Milei — o novo queridinho da extrema direita mundial e de boa parte da imprensa corporativa brasileira —  governa exclusivamente visando atingir superávit fiscal enquanto empurra quase 60% do povo argentino para a miséria, a fome e o abandono completo. E, ainda assim, é aplaudido por muita gente.

É a defesa do estado mínimo a qualquer custo, que não vê problemas em tirar comida de criança pobre para poder ver as contas no azul. “Estado bom é estado morto” — esse seria um lema preciso e honesto para  bolsotucanismo.

 

Fonte: BBC News Brasil/The Intercept

 

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