sábado, 28 de outubro de 2023

Carlos Wagner: Bolsonaristas estão tentando sufocar a direita brasileira usando a técnica da sucuri

O repórter ouve e vê muita coisa interessante nas suas andanças pelos sertões do Brasil. Na década de 80, quando comecei a fazer reportagens sobre o povoamento das fronteiras agrícolas brasileiras pelos agricultores gaúchos e seus descendentes, estava em um hotel de beira de estrada numa cidadezinha no Pantanal do Mato Grosso do Sul quando encontrei, durante o jantar, uma comitiva de deputados federais. Foi a primeira vez que ouvi falar na tal técnica da sucuri para sufocar e vencer um adversário político. Este é o assunto sobre o qual vamos conversar. Seguindo o manual do bom e velho jornalismo vamos contextualizar a nossa conversa, ou como diziam os editores dos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações, mostrar o pano de fundo dos acontecimentos. É fundamental para a sobrevivência política do bolsonarismo que o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) consiga descolar da sua imagem o quebra-quebra que os seus seguidores fizeram em 8 de janeiro nos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Essa imagem afasta do bolsonarismo os eleitores da direita comprometida com os valores democráticos, justamente a fatia do eleitorado que foi fundamental para a vitória do ex-presidente em 2018. Usando uma linguagem de boxeador, ele acusou o golpe que abalou sua imagem pública pela primeira vez no início de outubro, quando, acompanhado da ex-primeira-dama Michelle, foi a uma manifestação em Belo Horizonte (MG) contra a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gravidez, cuja proposta tramita no STF. Esperava reunir 10 mil pessoas, mas apareceu bem menos gente. Justificou a ausência de público alegando que tinha medo que se repetisse o 8 de janeiro. Na quinta-feira (12/10), a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), um ícone do bolsonarismo, foi proibida de subir no caminhão para discursar em ato contra a descriminalização do aborto realizado na Avenida Paulista, em São Paulo (SP). Uma das alegações dos organizadores foi que ela responde a processos no STF sobre crimes relacionados ao 8 de janeiro. O ato foi organizado pelo deputado estadual Tomé Abduch (Republicanos), que é vice-líder na Assembleia Legislativa paulista do governador Tarcísio de Freitas, ex-ministro de Bolsonaro. Zambelli não armou barraco com a proibição, saiu de fininho. Esses dois episódios mostram que deu errado a estratégia de conseguir vender para a opinião pública que o quebra-quebra de 8 de janeiro foi provocado por infiltrados da esquerda no movimento bolsonarista. Tentaram enfiar goela abaixo da população essa versão forçando a barra e conseguindo a realização da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre os atos de 8 de janeiro (CPMI do 8/1).

ACPMI do 8 de janeiro foi um tiro que saiu pela culatra – há material na internet sobre o assunto. Os depoimentos aumentaram a hemorragia do prestígio político do ex-presidente. E as duras sentenças a estão sendo condenados pelo STF os participantes do quebra-quebra desencorajam futuros acontecimentos semelhantes. Aqui é o seguinte. Os 30% de bolsonaristas raiz sempre vão votar no ex-presidente. O restante corresponde à direita que respeita os valores democráticos que ajudaram a eleger o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Se nesse segmento de eleitores surgir uma liderança nova que consiga rivalizar com a atual aliança política que governa o país, o bolsonarismo como conhecemos perde a relevância. E existe a chance real de que essa liderança surja entre os ex-bolsonaristas raiz. E que os líderes do círculo íntimo do ex-presidente comecem a usar a técnica da sucuri para impedir o surgimento de novos líderes. Antes uma explicação que julgo necessária. A técnica é simples e eficiente. A sucuri é uma cobra que pode ter até 10 metros de comprimento. Ela se enrola na sua vítima e a aperta até quebrar os ossos e a sufocar. Depois a engole. É um espetáculo para quem tem nervos fortes. E virou histórias que passam de geração para geração entre as famílias sulistas que se estabeleceram nas fronteiras agrícolas – nome que davam para grandes áreas de terra escassamente povoadas. Por ser um animal em extinção, é protegida por lei. A primeira vítima da técnica da sucuri é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ex-ministro de Bolsonaro, ele se elegeu graças ao prestígio do ex-presidente. Logo no início do seu mandato tentou colocar a sua marca pessoal na administração. Assim que passou a ocupar espaços nobres nas manchetes dos jornais começaram a enfiar-lhe garganta abaixo as pautas dos bolsonaristas raiz, como a questão do aborto e a proteção aos policiais violentos. Com a inelegibilidade do ex-presidente por oito anos, decretada em junho pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), aumentou a pressão sobre o que Freitas pode e não pode fazer na sua administração no governo de São Paulo. O governador sabe que a sucuri está se enrolando ao redor do seu corpo. Seu destino político se decidirá nas eleições municipais de 2024. Ele ficará no abraço da sucuri, esperando ser indicado para concorrer a presidente da República. Caso contrário, terá que decidir o que irá fazer da sua vida política.

Além do governador paulista várias outras lideranças municipais e estaduais estão sendo vigiadas pelos três filhos parlamentares do ex-presidente, Carlos, vereador no Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal de São Paulo. No atual momento da sua carreira política o que mais incomoda o ex-presidente é a sua ligação com as imagens do quebra-quebra de 8 de janeiro. Bolsonaro se diz de direita. Mas pelas pautas que têm e as suas ligações com golpistas, ele é de extrema direita. Tanto que é reconhecido por outros líderes da extrema direita ao redor do mundo. O ex-presidente cometeu muitos crimes no exercício do seu mandato, como as mortes dos 700 mil brasileiros pela Covid, como demonstram as 1,3 mil páginas do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid, a CPI da Covid. Mas nenhum desses crimes colaram tanto na sua imagem como o quebra-quebra em Brasília. Ele mesmo reconhece. Todo o animal tem um predador, é a lei da natureza. A sucuri também tem alguns, os mais vorazes são as piranhas.

 

       Cadê o MBL para chamar os EUA de "anão diplomático"?

 

O Movimento Brasil Livre (MBL), grupelho de extrema direita liderado por Kim Kataguiri e que tem entre seus quadros figuras como Arthur do Val, deputado cassado após sugerir turismo sexual no Leste Europeu em meio à guerra na Ucrânia e que usa o apelido de "Mamãe Falei", quer ensinar ao governo brasileiro como se pratica diplomacia. Chama o Brasil de "anão diplomático" e se cala diante de derrota pior dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).

Em meio a publicações em que procuram justificar o assassinato de civis palestinos por forças militares israelenses, e repetindo aos quatro ventos que o Hamas é um grupo terrorista, integrantes do "movimento" tentam emplacar a narrativa de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem sofrendo "humilhações" no cenário internacional ao tentar atuar pelo cessar-fogo na guerra entre Israel e Palestina.

Por óbvio, não há qualquer organização séria ou liderança mundial que dê ouvidos ao que diz o MBL — nenhum ator de relevância no cenário global sequer sabe da existência do grupo. Já Lula vem sendo avaliado com um dos chefes de Estado mais atuantes diante do conflito, mantendo conversas com mandatários de diferentes países e com posições distintas sobre a contenda no Oriente Médio.

Mesmo assim, o grupo habituado a invadir universidades para gerar conteúdo e ganhar likes nas redes sociais jura que tem competência para avaliar a diplomacia brasileira. No último dia 18 de outubro, quando a resolução apresentada pelo Brasil foi vetada no Conselho de Segurança da Organização da ONU a partir de voto contrário dos Estados Unidos, o MBL encheu a boca para dizer que o governo brasileiro foi "humilhado" e que a posição contrária dos EUA ao texto fazia do Brasil e de Lula "anões diplomáticos". 

Disse Kim Kataguiri em vídeo compartilhado pelos perfis oficiais do MBL nas redes sociais:

"O Brasil foi humilhado no Conselho de Segurança da ONU. O governo Lula apresentou uma proposta de resolução e não constava nessa resolução o direito de autodefesa de Israel (...) Pior do que ter o voto de repúdio dos Estados Unidos, não teve o voto da Rússia, que é o país que o presidente Lula vive puxando o saco (...) Desde muito tempo o Brasil já levava essa fama e tem mantido. Sob a gestão do Lula e dos petistas somos e continuaremos ser anões diplomáticos",

Kim Kataguiri e o MBL mentem. Qualquer pessoa minimamente informada sobre relações internacionais sabe que o Brasil tem uma tradição diplomática que é referência mundial e que boa parte do planeta vem agradecendo aliviada o retorno de Lula à presidência após o período de isolamento imposto pelo governo de Jair Bolsonaro — ex-presidente que foi apoiado pelo grupo.

Sobre a resolução apresentada pelo Brasil, vamos aos fatos omitidos pelo MBL:

A proposta brasileira obteve apoio massivo no Conselho de Segurança da ONU: foram 12 votos favoráveis em um total de 15. O texto, entretanto, foi barrado por um único voto contrário: o dos Estados Unidos.

Votaram ado texto, apesentada pelo diplomata Sérgio Danese: Albânia, China, Equador, França, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique, Suíça e Emirados Árabes Unidos, além do Brasil. Rússia e Reino Unido se abstiveram e apenas os EUA votaram contra.

Analistas de relações internacionais e especialistas apontam que a votação mostra prestígio do Brasil e que o voto contrário dos EUA, que tem poder de veto, só se deu pelo fato do presidente norte-americano, Joe Biden, estar em campanha eleitoral. Caso a diplomacia estadunidense votasse a favor da proposta do Brasil, seu país perderia o protagonismo na "resolução" da guerra e Biden "perderia a viagem" a Tel Aviv que havia feito naquela semana. A justificativa dos EUA para o veto foi a que o Brasil não citou o "direito de autodefesa" de Israel.

Em entrevista à Fórum, o professor Rodrigo Gallo, coordenador da pós-graduação de Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) e coordenador da graduação de Relações Internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia, analisou a votação da resolução do Brasil.

"Eu acho que é positivo o fato de o Brasil ter conseguido pautar essa discussão. Então, diplomaticamente falando, dá para dizer que isso representa algum tipo de ganho. O fato de o país ter obtido 12 votos favoráveis e duas abstenções não é ruim na atual conjuntura, e eu não digo isso só porque o Brasil agora preside temporariamente o Conselho de Segurança, mas é porque a gente está vendo uma discussão muito complexa acontecendo. E mesmo os grandes atores desse momento têm dificuldades pra conseguir pautar esse tipo de discussão. Então, é um ponto positivo".

Para além do apoio massivo no Conselho de Segurança, com a exceção dos EUA, o "anão diplomático" Brasil recebeu o apoio de mais de 50 dos 192 países membros da ONU, que organizaram uma reunião para que a representação estadunidense justificasse seu veto — um fato inédito.

Mas o MBL está "preocupado" com a guerra, ou ao menos tenta mostrar estar preocupado, "entende" de diplomacia e, por isso, seria esperado que o "movimento" de jovens ultraliberais na economia e conservadores nos costumes comentasse também a resolução apresentada pelos EUA ao Conselho de Segurança da ONU nesta quarta-feira (25) que, assim como a do Brasil, foi vetada.

A proposta da representação estadunidense obteve 10 votos favoráveis — ou seja, teve menos apoio que a resolução do Brasil, o "anão diplomático", que contou com 12 votos a favor. O texto foi vetado a partir dos votos contrários de Rússia e China. Votaram contra a resolução dos EUA, ainda, os Emirados Árabes Unidos, enquanto Brasil e Moçambique se abstiveram.

E qual foi a reação do MBL à derrota dos EUA no Conselho de Segurança da ONU? Nenhuma. Zero. Nas redes sociais do grupo, é como se não tivesse ocorrido a reunião e o veto à proposta estadunidense. Cadê as análises internacionais de Kim Kataguiri e cia? Cadê o MBL para chamar os Estados Unidos de "anão diplomático"? A verdade é que o grupo não está interessado em qualquer resolução de conflito. A intenção é única e exclusivamente atacar o governo Lula e, como sempre, ganhar likes nas redes sociais dos mais desavisados.

 

Fonte: Observatório da Inprensa/Fórum

 

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