Carlos Wagner: Bolsonaristas estão tentando sufocar a direita
brasileira usando a técnica da sucuri
O repórter ouve e vê muita coisa interessante nas
suas andanças pelos sertões do Brasil. Na década de 80, quando comecei a fazer
reportagens sobre o povoamento das fronteiras agrícolas brasileiras pelos
agricultores gaúchos e seus descendentes, estava em um hotel de beira de
estrada numa cidadezinha no Pantanal do Mato Grosso do Sul quando encontrei,
durante o jantar, uma comitiva de deputados federais. Foi a primeira vez que
ouvi falar na tal técnica da sucuri para sufocar e vencer um adversário
político. Este é o assunto sobre o qual vamos conversar. Seguindo o manual do
bom e velho jornalismo vamos contextualizar a nossa conversa, ou como diziam os
editores dos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações, mostrar
o pano de fundo dos acontecimentos. É fundamental para a sobrevivência política
do bolsonarismo que o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) consiga
descolar da sua imagem o quebra-quebra que os seus seguidores fizeram em 8 de
janeiro nos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo
Tribunal Federal (STF).
Essa imagem afasta do bolsonarismo os eleitores da
direita comprometida com os valores democráticos, justamente a fatia do
eleitorado que foi fundamental para a vitória do ex-presidente em 2018. Usando
uma linguagem de boxeador, ele acusou o golpe que abalou sua imagem pública
pela primeira vez no início de outubro, quando, acompanhado da ex-primeira-dama
Michelle, foi a uma manifestação em Belo Horizonte (MG) contra a
descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gravidez, cuja proposta
tramita no STF. Esperava reunir 10 mil pessoas, mas apareceu bem menos gente.
Justificou a ausência de público alegando que tinha medo que se repetisse o 8
de janeiro. Na quinta-feira (12/10), a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP),
um ícone do bolsonarismo, foi proibida de subir no caminhão para discursar em
ato contra a descriminalização do aborto realizado na Avenida Paulista, em São
Paulo (SP). Uma das alegações dos organizadores foi que ela responde a
processos no STF sobre crimes relacionados ao 8 de janeiro. O ato foi
organizado pelo deputado estadual Tomé Abduch (Republicanos), que é vice-líder
na Assembleia Legislativa paulista do governador Tarcísio de Freitas,
ex-ministro de Bolsonaro. Zambelli não armou barraco com a proibição, saiu de
fininho. Esses dois episódios mostram que deu errado a estratégia de conseguir
vender para a opinião pública que o quebra-quebra de 8 de janeiro foi provocado
por infiltrados da esquerda no movimento bolsonarista. Tentaram enfiar goela
abaixo da população essa versão forçando a barra e conseguindo a realização da
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre os atos de 8 de janeiro (CPMI do
8/1).
ACPMI do 8 de janeiro foi um tiro que saiu pela
culatra – há material na internet sobre o assunto. Os depoimentos aumentaram a
hemorragia do prestígio político do ex-presidente. E as duras sentenças a estão
sendo condenados pelo STF os participantes do quebra-quebra desencorajam
futuros acontecimentos semelhantes. Aqui é o seguinte. Os 30% de bolsonaristas
raiz sempre vão votar no ex-presidente. O restante corresponde à direita que
respeita os valores democráticos que ajudaram a eleger o atual presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT). Se nesse segmento de eleitores surgir uma liderança
nova que consiga rivalizar com a atual aliança política que governa o país, o
bolsonarismo como conhecemos perde a relevância. E existe a chance real de que
essa liderança surja entre os ex-bolsonaristas raiz. E que os líderes do
círculo íntimo do ex-presidente comecem a usar a técnica da sucuri para impedir
o surgimento de novos líderes. Antes uma explicação que julgo necessária. A
técnica é simples e eficiente. A sucuri é uma cobra que pode ter até 10 metros
de comprimento. Ela se enrola na sua vítima e a aperta até quebrar os ossos e a
sufocar. Depois a engole. É um espetáculo para quem tem nervos fortes. E virou
histórias que passam de geração para geração entre as famílias sulistas que se
estabeleceram nas fronteiras agrícolas – nome que davam para grandes áreas de
terra escassamente povoadas. Por ser um animal em extinção, é protegida por
lei. A primeira vítima da técnica da sucuri é o governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas. Ex-ministro de Bolsonaro, ele se elegeu graças ao
prestígio do ex-presidente. Logo no início do seu mandato tentou colocar a sua
marca pessoal na administração. Assim que passou a ocupar espaços nobres nas
manchetes dos jornais começaram a enfiar-lhe garganta abaixo as pautas dos
bolsonaristas raiz, como a questão do aborto e a proteção aos policiais
violentos. Com a inelegibilidade do ex-presidente por oito anos, decretada em
junho pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), aumentou a pressão sobre o que
Freitas pode e não pode fazer na sua administração no governo de São Paulo. O
governador sabe que a sucuri está se enrolando ao redor do seu corpo. Seu
destino político se decidirá nas eleições municipais de 2024. Ele ficará no
abraço da sucuri, esperando ser indicado para concorrer a presidente da
República. Caso contrário, terá que decidir o que irá fazer da sua vida política.
Além do governador paulista várias outras
lideranças municipais e estaduais estão sendo vigiadas pelos três filhos
parlamentares do ex-presidente, Carlos, vereador no Rio, Flávio, senador do Rio
de Janeiro, e Eduardo, deputado federal de São Paulo. No atual momento da sua
carreira política o que mais incomoda o ex-presidente é a sua ligação com as
imagens do quebra-quebra de 8 de janeiro. Bolsonaro se diz de direita. Mas
pelas pautas que têm e as suas ligações com golpistas, ele é de extrema
direita. Tanto que é reconhecido por outros líderes da extrema direita ao redor
do mundo. O ex-presidente cometeu muitos crimes no exercício do seu mandato,
como as mortes dos 700 mil brasileiros pela Covid, como demonstram as 1,3 mil
páginas do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a
Covid, a CPI da Covid. Mas nenhum desses crimes colaram tanto na sua imagem
como o quebra-quebra em Brasília. Ele mesmo reconhece. Todo o animal tem um
predador, é a lei da natureza. A sucuri também tem alguns, os mais vorazes são
as piranhas.
Cadê o
MBL para chamar os EUA de "anão diplomático"?
O Movimento Brasil Livre (MBL), grupelho de extrema
direita liderado por Kim Kataguiri e que tem entre seus quadros figuras como
Arthur do Val, deputado cassado após sugerir turismo sexual no Leste Europeu em
meio à guerra na Ucrânia e que usa o apelido de "Mamãe Falei", quer
ensinar ao governo brasileiro como se pratica diplomacia. Chama o Brasil de
"anão diplomático" e se cala diante de derrota pior dos Estados
Unidos no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em meio a publicações em que procuram justificar o
assassinato de civis palestinos por forças militares israelenses, e repetindo
aos quatro ventos que o Hamas é um grupo terrorista, integrantes do
"movimento" tentam emplacar a narrativa de que o governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem sofrendo "humilhações" no
cenário internacional ao tentar atuar pelo cessar-fogo na guerra entre Israel e
Palestina.
Por óbvio, não há qualquer organização séria ou
liderança mundial que dê ouvidos ao que diz o MBL — nenhum ator de relevância
no cenário global sequer sabe da existência do grupo. Já Lula vem sendo
avaliado com um dos chefes de Estado mais atuantes diante do conflito, mantendo
conversas com mandatários de diferentes países e com posições distintas sobre a
contenda no Oriente Médio.
Mesmo assim, o grupo habituado a invadir
universidades para gerar conteúdo e ganhar likes nas redes sociais jura que tem
competência para avaliar a diplomacia brasileira. No último dia 18 de outubro,
quando a resolução apresentada pelo Brasil foi vetada no Conselho de Segurança
da Organização da ONU a partir de voto contrário dos Estados Unidos, o MBL
encheu a boca para dizer que o governo brasileiro foi "humilhado" e
que a posição contrária dos EUA ao texto fazia do Brasil e de Lula "anões
diplomáticos".
Disse Kim Kataguiri em vídeo compartilhado pelos
perfis oficiais do MBL nas redes sociais:
"O Brasil foi humilhado no Conselho de
Segurança da ONU. O governo Lula apresentou uma proposta de resolução e não
constava nessa resolução o direito de autodefesa de Israel (...) Pior do que
ter o voto de repúdio dos Estados Unidos, não teve o voto da Rússia, que é o
país que o presidente Lula vive puxando o saco (...) Desde muito tempo o Brasil
já levava essa fama e tem mantido. Sob a gestão do Lula e dos petistas somos e
continuaremos ser anões diplomáticos",
Kim Kataguiri e o MBL mentem. Qualquer pessoa
minimamente informada sobre relações internacionais sabe que o Brasil tem uma
tradição diplomática que é referência mundial e que boa parte do planeta vem
agradecendo aliviada o retorno de Lula à presidência após o período de
isolamento imposto pelo governo de Jair Bolsonaro — ex-presidente que foi
apoiado pelo grupo.
Sobre a resolução apresentada pelo Brasil, vamos
aos fatos omitidos pelo MBL:
A proposta brasileira obteve apoio massivo no
Conselho de Segurança da ONU: foram 12 votos favoráveis em um total de 15. O
texto, entretanto, foi barrado por um único voto contrário: o dos Estados
Unidos.
Votaram ado texto, apesentada pelo diplomata Sérgio
Danese: Albânia, China, Equador, França, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique,
Suíça e Emirados Árabes Unidos, além do Brasil. Rússia e Reino Unido se
abstiveram e apenas os EUA votaram contra.
Analistas de relações internacionais e
especialistas apontam que a votação mostra prestígio do Brasil e que o voto
contrário dos EUA, que tem poder de veto, só se deu pelo fato do presidente
norte-americano, Joe Biden, estar em campanha eleitoral. Caso a diplomacia
estadunidense votasse a favor da proposta do Brasil, seu país perderia o
protagonismo na "resolução" da guerra e Biden "perderia a
viagem" a Tel Aviv que havia feito naquela semana. A justificativa dos EUA
para o veto foi a que o Brasil não citou o "direito de autodefesa" de
Israel.
Em entrevista à Fórum, o professor Rodrigo Gallo,
coordenador da pós-graduação de Política e Relações Internacionais da Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) e coordenador da
graduação de Relações Internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia, analisou
a votação da resolução do Brasil.
"Eu acho que é positivo o fato de o Brasil ter
conseguido pautar essa discussão. Então, diplomaticamente falando, dá para
dizer que isso representa algum tipo de ganho. O fato de o país ter obtido 12
votos favoráveis e duas abstenções não é ruim na atual conjuntura, e eu não
digo isso só porque o Brasil agora preside temporariamente o Conselho de
Segurança, mas é porque a gente está vendo uma discussão muito complexa
acontecendo. E mesmo os grandes atores desse momento têm dificuldades pra
conseguir pautar esse tipo de discussão. Então, é um ponto positivo".
Para além do apoio massivo no Conselho de
Segurança, com a exceção dos EUA, o "anão diplomático" Brasil recebeu
o apoio de mais de 50 dos 192 países membros da ONU, que organizaram uma
reunião para que a representação estadunidense justificasse seu veto — um fato
inédito.
Mas o MBL está "preocupado" com a guerra,
ou ao menos tenta mostrar estar preocupado, "entende" de diplomacia
e, por isso, seria esperado que o "movimento" de jovens ultraliberais
na economia e conservadores nos costumes comentasse também a resolução apresentada
pelos EUA ao Conselho de Segurança da ONU nesta quarta-feira (25) que, assim
como a do Brasil, foi vetada.
A proposta da representação estadunidense obteve 10
votos favoráveis — ou seja, teve menos apoio que a resolução do Brasil, o
"anão diplomático", que contou com 12 votos a favor. O texto foi
vetado a partir dos votos contrários de Rússia e China. Votaram contra a
resolução dos EUA, ainda, os Emirados Árabes Unidos, enquanto Brasil e
Moçambique se abstiveram.
E qual foi a reação do MBL à derrota dos EUA no
Conselho de Segurança da ONU? Nenhuma. Zero. Nas redes sociais do grupo, é como
se não tivesse ocorrido a reunião e o veto à proposta estadunidense. Cadê as
análises internacionais de Kim Kataguiri e cia? Cadê o MBL para chamar os
Estados Unidos de "anão diplomático"? A verdade é que o grupo não
está interessado em qualquer resolução de conflito. A intenção é única e
exclusivamente atacar o governo Lula e, como sempre, ganhar likes nas redes
sociais dos mais desavisados.
Fonte: Observatório da Inprensa/Fórum
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