Apuração do envolvimento do Banco do Brasil é só parte do processo de
reparação histórica da escravidão
A recente ação do Ministério Público Federal, que
notificou o Banco do Brasil para apurar o envolvimento do banco no tráfico de
africanos escravizados a partir de um documento elaborado por 14 historiadores,
reaqueceu o debate público sobre reparação e o passado escravista brasileiro.
O documento explicita a relação entre o banco e a
escravidão. Como, por exemplo, na comprovação da existência de vínculos diretos
entre traficantes e o capital investido no banco, e o benefício que a
instituição obteve com o mercado de crédito lastreado pela escravidão.
Cabe lembrar que, além de resultado das nossas
próprias pesquisas, as informações contidas no texto que enviamos ao Banco são
resultado de décadas de investimento público em pesquisa histórica, todas
realizadas no âmbito das universidades públicas brasileiras. Se foram pouco
divulgadas até agora, não resta dúvida de que devem sê-lo com maior
intensidade. Afinal, trata-se de informação pública. É nossa responsabilidade
compartilhar o conhecimento gestado na universidade.
• História
da historiografia
Poucos temas receberam tanta atenção dos
historiadores brasileiros quanto a escravidão. Não somos exceção. De fato, a
escravidão brasileira é muito mais do que um tema de estudo: é a espinha dorsal
da nossa sociedade desde o início da colonização portuguesa. É impossível
estudar a história do Brasil sem abordar o tema da escravidão.
A história da historiografia sobre a escravidão
remonta pelo menos às décadas de 1930 e 1940, quando teve início um intenso
debate intelectual transnacional sobre a escravidão nas Américas. Mas foi
principalmente a partir dos anos 1980 que as relações sociais constituídas a
partir do universo da escravidão passaram a ser estudadas a partir de múltiplas
perspectivas, e principalmente a partir da análise de documentação muito
variada.
Há cerca de 40 anos, historiadores interessados em
estudar a agência de indivíduos escravizados passaram a buscar novas fontes,
como processos judiciais, inventários, testamentos, cartas de alforrias, e a
partir delas começaram a estudar temas como fugas e revoltas, religião,
condições de vida e trabalho, criminalidade e justiça. Esse investimento a
longo prazo na pesquisa arquivística gerou uma produção acadêmica pujante e
complexa.
Embora vez ou outra historiadores e jornalistas
ainda cedam ao apelo algo sensacionalista de escrever sobre a descoberta de
documentos inéditos – sempre haverá alguma fonte que nunca ninguém leu sobre
algum assunto –, a novidade da produção intelectual contemporânea sobre a
escravidão não está nos segredos guardados nos arquivos.
• Ressignificação
da produção de conhecimento histórico
A novidade está na adoção de duas perspectivas
combinadas: a primeira, que se convencionou chamar de História Pública, é o
engajamento, por parte de historiadores profissionais, em produzir uma história
que tenha sentido para além dos domínios da universidade. A questão é que, para
se produzir conhecimento histórico público relevante, não basta escrever para o
público; é preciso escrever em diálogo com ele.
Neste sentido, os historiadores públicos da
escravidão vêm dando uma contribuição fundamental para a ressignificação da
produção do conhecimento histórico no Brasil.
Desde o início do processo de redemocratização, em
1985, a sociedade e o Estado brasileiros começavam a reconhecer a legitimidade
da busca por direitos encampada pelo movimento negro por tanto tempo. Os
ativistas desempenharam um papel fundamental na regulamentação da igualdade
racial e na proteção das expressões das culturas populares afrodescendentes e
indígenas na Constituição de 1988, e abriram caminho para outras
reivindicações, como a defesa das ações afirmativas, das cotas raciais e da
inclusão da história da África e da cultura afro-brasileira como componentes
curriculares obrigatórios na Educação Básica do país, o que ocorreu através da
lei 10.639 de 2003, e de uma política nacional de ação afirmativa.
Em 2001, o tráfico atlântico de africanos
escravizados para as Américas foi classificado pela Organização das Nações
Unidas como um crime contra a humanidade. A Conferência de Durban, realizada no
mesmo ano, foi central na definição do conceito de reparação aplicado ao
passado escravista. Ao discursar em defesa das cotas no Supremo Tribunal
Federal em 2010, o historiador Luiz Felipe de Alencastro nomeou a conivência do
Estado brasileiro com a ilegalidade do tráfico de escravizados no século XIX de
“pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira”.
Como Alencastro, vários historiadores da escravidão
brasileira hoje se dedicam a contribuir para superar esse “pecado original”,
encontrando na História a fundamentação da ação política do presente, e
demonstrando a conexão entre os acontecimentos do passado e as lutas por
direitos na contemporaneidade.
• Projeto
Passados Presentes
Este é justamente o caso do projeto Passados
Presentes: memória da escravidão no Brasil, coordenado por nós, autoras deste
artigo. Um entre vários projetos que há um bom tempo vem contribuindo para a
tomada de consciência sobre a importância de se discutir com o grande público
os efeitos do passado escravista na sociedade brasileira contemporânea.
No final dos anos 1990, ainda denominado Memórias
do Cativeiro, Hebe Mattos deu início a uma série de entrevistas com
descendentes da última geração de africanos escravizados no Rio de Janeiro.
Já em parceria com Martha Abreu, essas entrevistas,
que hoje compõem o acervo do Laboratório de História Oral e Imagem da
Universidade Federal Fluminense, deram origem a outros projetos e filmes de
pesquisa (Memórias do Cativeiro, Jongos, Calangos e Folias: música negra,
memória e poesia, Versos e Cacetes: o jogo de pau na cultura afro-fluminense,
com Matthias Assunção, e Passados Presentes: memória negra no sul fluminense).
O esforço de pesquisa e produção de fontes rendeu
outros frutos, entre eles a produção, por Mattos, Abreu, e Milton Guran, em
parceria com vários historiadores de universidades brasileiras, do Inventário
dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos
Africanos Escravizados no Brasil (2013).
Já com a presença de Keila Grinberg, elas se
propuseram a transformar o inventário em um banco de dados digital. A ideia
inicial era disponibilizar as informações sobre os lugares de memória já
incluídos no inventário, acrescidos de verbetes sobre o patrimônio imaterial do
estado do Rio de Janeiro, tais como rodas de capoeira e grupos de jongo,
localizando-os em um grande mapa digital do Brasil.
• Participação
de quilombolas
Foi aí que, de História para o público, passamos de
fato a trabalhar em autoria compartilhada com lideranças de comunidades
quilombolas do Rio de Janeiro. A parceria com comunidades de descendentes
diretos de escravizados trouxe novas reflexões e demandas de pesquisa. Agora
batizado de Passados Presentes, o projeto acabou sendo transformado num projeto
de turismo de memória realizado em parceria com as comunidades jongueiras de
Pinheiral e quilombolas de Bracuí (Angra dos Reis) e de São José (Valença).
Para incentivar a visitação pública, construímos
memoriais a céu aberto e desenvolvemos quatro aplicativos para celular com
roteiros turísticos, incluindo também a Pequena África, região na zona
portuária do Rio de Janeiro reconhecida pela UNESCO como Patrimônio da
Humanidade, que compreende o cais do Valongo, o quilombo da Pedra do Sal e o
Instituto dos Pretos Novos, onde foi descoberto um grande cemitério de pretos
novos, africanos escravizados que não sobreviveram à chegada ao país. Ainda no
Rio de Janeiro, agora com a entrada de Monica Lima, participamos das discussões
sobre a patrimonialização do Valongo, a sinalização da região da Pequena África
e a inclusão de novos locais relativos à memória da escravidão e à história da
cultura afro-brasileira no mapeamento digital da cidade.
O projeto ganhou dimensões que jamais poderíamos
imaginar: em 2015, Pinheiral recebeu o título de “capital do jongo” e a antiga
sede da Fazenda do Pinheiro foi transformada no Parque municipal das Ruínas da
Fazenda São José do Pinheiro; no ano seguinte, em conjunto com as lideranças
das comunidades negras do Pinheiral e de São José, fomos chamadas a colaborar
na reorganização de visitas turísticas em fazendas do Vale do Paraíba.
No quilombo do Bracuí, entre outras iniciativas, o
projeto atraiu a atenção de arqueólogos subaquáticos do Brasil e dos Estados
Unidos, que, em conjunto com lideranças da comunidade, vêm buscando encontrar
vestígios do navio escravagista Camargo, que afundou na baía de Angra dos Reis
em 1852.
• Parcerias
internacionais
Atualmente, em parceria com pesquisadores e membros
de comunidades, o projeto vem sendo expandido para incorporar a região de Minas
Gerais e para desenvolver conteúdo para a Wikipedia; em parceria com o
Instituto Smithsonian, o Museu Histórico Nacional, o Arquivo Nacional e
comunidades locais, o grupo prepara a curadoria de uma série de exposições no
Rio de Janeiro.
Todo o material de entrevistas está sendo
transcrito e traduzido para o inglês, para constituir a Special Collection on
Afro-Brazilian History and Culture da University of Pittsburgh; também lá, o
mapeamento digital e o método de criação compartilhada do Passados Presentes
está sendo a base para elaboração de um grande projeto digital denominado Atlas
de Injustiças Históricas. E, por fim, em conjunto com outros historiadores de
todo o país, viemos a público discutir a conexão das instituições brasileiras
com a escravidão – e engrossar a demanda por reparação histórica.
É justamente a partir da articulação entre
historiadores e o público que fundamentamos historicamente a argumentação em
torno do direito à memória e à reparação histórica. Ao ajudarmos a trazer o
passado para o centro do debate público contemporâneo sobre o racismo e as
injustiças históricas da sociedade brasileira, estamos agindo conforme a nossa
responsabilidade: compartilhamos com a sociedade as informações que coletamos
em nossas pesquisas e que lhe são de direito conhecer.
O que se fará com estas informações, quais e como
serão os pedidos de reparação, cabe à sociedade discutir e cobrar das
instituições pertinentes. A luta pela reparação implica luta pela memória e
pelo conhecimento da História. Só assim é possível lidar com os traumas da
sociedade brasileira; só assim é possível fazer com que o passado – este
passado que remonta ao período escravista, e que se reencena hoje em dia na
forma de racismo – passe de uma vez.
Fonte: por Hebe Mattos, Keila Grinberg, Martha
Abreu e Monica Lima, em The Conversation
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