A fome e a pobreza são uma obra da elite do atraso
A Agenda 2030 contém 17 objetivos que são
interdependentes e sinergéticos. Trata-se de uma ampla agenda de
desenvolvimento com metas e com indicadores bastante claros para a maioria
delas. No entanto, está bastante comprometida em sua realização com a
desaceleração do crescimento da economia mundial e pelos efeitos prolongados da
pandemia de Covid-19.
A Agenda foi lançada em 2015, logo após a segunda
onda da crise financeira que atingiu a Europa e o resto do mundo mais
fortemente. A América Latina e Caribe, que havia resistido bem aos
desdobramentos da quebra do Lehman Brothers, começou a sofrer fortes abalos no
pós-2014.
Por isso, os dois primeiros Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável – ODS: ODS-1 e ODS-2, que tratam da pobreza e da
fome, não só não apresentaram evolução positiva, como havia ocorrido nos três
quinquênios anteriores, como regrediram no pós-2014.
As taxas de pobreza e extrema pobreza pioraram
significativamente nos últimos anos na região. A Cepal informa que a pobreza na
América Latina e Caribe chegou a 201 milhões de pessoas, em uma taxa de 32,1%,
em 2022. A extrema pobreza chegou a 82 milhões de pessoas, ou seja, 13,1% da
população total.
Em 2014, a taxa de pobreza estava em 27,8%. Nestes
oito anos, desde o lançamento da nova agenda de desenvolvimento da ONU, ocorreu
um aumento de 4,3 pontos percentuais (pp). Isto significa que mais 39 milhões
de latino-americanos voltaram à condição de pobreza. Pior ainda no caso da
extrema pobreza, no qual o aumento foi de 5,3 pp., ou 37 milhões de pessoas
cruzando de volta a linha da miséria.
O aumento da extrema pobreza representou 95% do
aumento da pobreza total. Um fenômeno brutal, pois o que define a extrema
pobreza é a incapacidade das pessoas de comprarem os alimentos necessários para
uma vida saudável.
O que ocorreu neste período? Além do baixo
crescimento e do aumento do desemprego, os preços dos alimentos subiram muito
acima dos outros preços do consumo familiar.
No período 2014-2021, os preços dos alimentos na
América Latina e Caribe (não incluem Argentina e Venezuela) subiram 30% e os
preços de não alimentos, 22%. Logo, as pessoas da base da pirâmide de
rendimentos sofreram com um crescimento dos preços dos alimentos 35% superior
ao dos outros produtos e serviços.
O Brasil não ficou imune a esta regressão na
situação da pobreza e da fome. Os avanços nos governos Lula e Dilma se perderam
durante os governos de Temer e Bolsonaro. Em 2016, o governo Temer, que assumiu
após o golpe do impeachment de Dilma, abandonou de fato os compromissos do país
com a agenda de desenvolvimento da ONU, Agenda 2030, construída por iniciativa
e esforço dos 193 países membros da Organização. Esta foi a mensagem dada pela
Emenda Constitucional 95, conhecida como o teto de gastos. A Agenda 2030
implicaria um aumento dos gastos sociais por habitante, coisa que o teto de
gastos não permitiria.
Já o governo Bolsonaro assumiu com a promessa de
desconstruir as políticas sociais dos governos anteriores. Abandonou a política
de valorização do salário mínimo, congelou o Bolsa Família até o ano eleitoral
de 2022, esvaziou o CONSEA, descontinuou os Programas de Alimentação Escolar
(PNAE) e de Aquisição de Alimentos (PAA), desorganizou e esvaziou os armazéns
da Conab, desorganizou o MEC, o MMA, o MS, SUS, SUAS, Minha Casa Minha Vida,
Programa de Cisternas, além de outras centenas de programas em vários
ministérios. A política de redução da pobreza e da fome, composta por políticas
e programas integrados e sinergéticos, deixou de existir com o formato
anterior.
O resultado foi avassalador. Após termos vencido a
fome e retirado o país do Mapa da Fome da FAO/ONU, regredimos à situação
vexatória de sermos o quarto maior produtor de alimentos do mundo, segundo
exportador de grãos e carnes e, ao mesmo tempo, termos milhões de pessoas em
situação de extrema pobreza e fome. A fome e a extrema pobreza não apenas
resultam da indiferença das elites do atraso, são seu projeto.
Segundo dados da Cepal, publicados em seu último
Panorama Social, em 2014 tínhamos no Brasil, 3,5% da população na extrema
pobreza e 17,4% na pobreza. Em 2021, a situação já era outra e muito mais
grave. Estavam na extrema pobreza 8,3% da população e na pobreza, 24,3%. O
importante é ressaltar que os primeiros três quinquênios dos anos 2000 foram de
forte redução da pobreza e extrema pobreza e que esta trajetória foi revertida.
A taxa de pobreza subiu 40% e a de extrema pobreza,
140% num período de oito anos. Isto está associado não apenas ao crescimento do
desemprego e à estagnação econômica, mas ao forte aumento dos preços dos
alimentos e bebidas vis a vis aos de não alimentos. Este impacto é mais visível
no período da pandemia de Covid-19. Segundo os dados do IBGE-IPCA, nos três
primeiros anos da crise sanitária, 2020-2022, os preços dos não alimentos
subiram 13,04%, enquanto os preços de alimentos e bebidas subiram 37,47%, quase
três vezes mais rápido.
Neste contexto de destruição das políticas de
combate à pobreza e à fome, não surpreende a regressão social em que nos
encontramos. São 21,1 milhões de pessoas passando fome em 2022, segundo a
FAO-ONU. No período 2014-2016, o Brasil ainda tinha 1,9% da população em
situação de severa insegurança alimentar, mas com um número menor do que o
considerado para estar no Mapa da Fome, que é de 2,5%. No período 2020-2022, o
salto é para 9,9% ou 17,1 milhões de pessoas a mais.
Em 2022, após fortes pressões do Congresso
Nacional, o governo de extrema direita decidiu aumentar o auxílio emergencial
para R$ 600,00 até o final do ano, sem previsão de continuidade para 2023 (no
orçamento do governo Bolsonaro para 2023 estava previsto R$ 400,00). Foi uma jogada
eleitoreira, entre tantas outras adotadas de forma nada séria. Este alívio
monetário não foi suficiente para mudar a situação. A razão está no fato de que
as transferências de renda de programas como Bolsa Família e Auxílio Brasil tem
um efeito menor como medida isolada. O sucesso do Bolsa Família na redução da
extrema pobreza e da fome no Brasil, durante os governos de Lula e Dilma deu-se
porque a transferência de renda fez parte de uma política social sistêmica, já
prevista desde as formulações do programa Fome Zero, em 2002.
Neste momento, a atenção do governo Lula está
concentrada na reconstrução das instituições e instrumentos de políticas
orientadas para a redução da pobreza e da fome. Uma pré-condição importante é o
crescimento econômico sustentável. Nenhuma política social tem alta eficácia em
um ambiente continuado de estagnação econômica. Em dezembro de 2022, as
estimativas das instituições financeiras brasileiras, do Banco Mundial, FMI,
OCDE eram de um crescimento do PIB abaixo de 1%, em 2023. A equipe de transição
no novo governo Lula conseguiu negociar o orçamento de 2023 antes mesmo de
assumir, o que já permitiu a aprovação de recursos para programas sociais e
para investimentos públicos. O resultado é que 2023 terminará com um aumento do
PIB estimado em 3,0% e um PIB per capita 2,5% superior.
A manutenção do crescimento do PIB é um importante
desafio, já que a geração de empregos e a queda da taxa de desemprego
contribuem para o aumento da renda real dos ocupados e com a redução da pobreza.
Há um importante obstáculo no caminho, que é a política monetária do Banco
Central, que insiste em manter as taxas de juros em valores reais
insustentáveis, acima de 8% ao ano, mesmo com a inflação em trajetória de
queda. O mesmo pode ser dito sobre a política fiscal, que ainda não revela
claramente a possibilidade de ampliar gastos suficientes em investimentos,
necessários para sustentar a trajetória ascendente do PIB. Uma compensação está
numa ação mais forte dos bancos públicos, principalmente o BNDES.
Quanto às políticas mais específicas, o governo
retomou a política de valorização do salário-mínimo, que havia subido 77% em
termos reais no período Lula e Dilma (2003 a 2015). Isto permitiu não só um
crescimento nas remunerações no mercado de trabalho, como também no piso das
aposentadorias e nas prestações da LOAS. Agora poderá ser mais um fator para a
melhora das condições de vida da população, abandonada pelas políticas
ultraliberais do governo anterior.
A reativação do CONSEA, da CAISAN – Câmara Interministerial
de Segurança Alimentar e das políticas de aquisição de alimentos (PAA),
alimentação escolar (PNAE), crédito à agricultura familiar, programa de
cisternas, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, fazem parte de uma difícil,
mas necessária reconstrução das políticas sociais brasileiras e da retomada do
desenvolvimento sustentável.
A fome e a pobreza são as expressões mais
dramáticas do abandono do desenvolvimento econômico e social de um país. E como
já alertava Josué de Castro, a fome é um fenômeno social, com determinantes
estruturais, políticos e econômicos. Não é um mal natural.
### Nota:
Agradeço aos dados enviados por Giaccomo Baccarin e
Daniel Perroti, que foram muito importantes para elaborar este artigo.
Fonte: Por Antonio Prado, em Terapia Política
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