Seca no Amazonas deixa cidades isoladas e com escassez de alimento
Os barcos que abastecem o comércio local já não
chegam mais ao município de Benjamin Constant, na região do Alto Solimões, no
Amazonas. Por ali, o rio Javari, afluente do rio Solimões, baixou tanto que as
embarcações de carga não têm condições de navegabilidade. A solução é recorrer
a embarcação de menor porte chamada “canoão” para levar alguns produtos,
encarecendo o valor no mercado.
Benjamin Constant é um dos 13 municípios
amazonenses que entraram em situação de emergência por causa da estiagem
extrema deste ano na bacia amazônica. Outros 16 estão em estado de alerta. O
município não tem uma estação que mede o nível do rio, mas a cota registrada
pela régua da cidade vizinha de Tabatinga, a maior do Alto Solimões, dá a
dimensão de uma seca de grande magnitude. Nesta quinta-feira (21), a cota do
Solimões neste município chegou à marca negativa de -43cm, resultando na
segunda pior seca do rio. A maior continua sendo a de 2010.
O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) iniciou a
medição para a série histórica no Alto Solimões em 1982. Há 13 anos, o nível do
rio desceu tanto que chegou à marca de -86cm, registrada no dia 11 de outubro
de 2010, segundo lembra a pesquisadora Jussara Cury, responsável pelo Sistema
de Alerta Hidrológico do Amazonas da CPRM, à Amazônia Real.
O pesquisador Renato Senna, do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa), afirma que o agravamento da estiagem na
Amazônia se deve a dois fenômenos climáticos simultâneos: o aquecimento do
Pacífico, conhecido como El Niño, e o aquecimento do Atlântico Tropical Norte.
Os fenômenos, que começaram a ficar mais intensos há três meses, também
ocorreram em 2009 e em 2010, ano da seca histórica da bacia amazônica.
“Já é possível observar as consequências destes
dois fenômenos sobre a região como um todo. Grandes áreas já apresentam chuvas
muito abaixo do esperado para esta época do ano. Mesmo sendo considerado um
período de poucas chuvas, estas ainda deveriam estar ocorrendo com maior
frequência e intensidade. Por exemplo, na região da bacia do rio Negro e do rio
Branco [em Roraima] e grande parte do norte do Pará”, afirmou Renato Senna, que
responsável pelo monitoramento da bacia amazônica no Inpa, à Amazônia Real.
Senna também destacou que, caso as condições
climáticas se repitam aos anos de 2010 e 2009, o início da estação chuvosa pode
se atrasar.
Em Benjamin Constant, as autoridades municipais
planejam, agora, dragar uma área do rio Solimões que liga a cidade até
Tabatinga. Isso permitirá o deslocamento de embarcações de médio porte para
levar mantimentos e passageiros.
“O município está enfrentando uma das maiores secas
já vista. A cidade entrou em emergência no dia 3 de agosto e o governo
reconheceu na sexta-feira passada”, disse Ricelly Dacio, secretário municipal
da Defesa Civil de Benjamin Constant. Segundo Dacio, o frete das embarcações já
encareceu, o que fez os comerciantes locais repassarem o aumento dos custos
para o consumidor. “Os produtos do comércio estão 30% mais caros”, disse.
• Escassez
de alimento
A maioria das cidades do Amazonas é abastecida por
via fluvial. No caso do Alto Solimões, as embarcações de carga vão de Manaus a
Tabatinga. “Produtos perecíveis não podem mais vir de ‘canoão’ [embarcações
menores] de Tabatinga porque não tem câmara frigorífica nesse tipo de barco.
Estamos fazendo contato com o Dnit [Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes]”, explicou o secretário Ricelly Dacio. A dificuldade de transporte
também tem causado transtorno para os passageiros que fazem travessia pelo
Solimões. “As lanchas que levam as pessoas também estão com problema.”
Em todo o Alto Solimões, que fica na fronteira com
Colômbia e Peru, a situação é preocupante também na zona rural. O acesso a
muitas dessas localidades se tornou inviável, segundo Ricelly Dacio. “Agora que
a situação de emergência foi reconhecida, esperamos que a ajuda venha, para
levar auxílio para as famílias com cesta básica e água potável, principalmente.
Outra coisa é a preocupação com a saúde, pois haverá aumento de doenças”,
disse.
No início desta semana, já haviam 3.743 famílias
afetadas em Benjamin Constant, sobretudo em 65 comunidades rurais. Neste final
de semana, o governo do Amazonas atualizou os dados e informou que são 4.543
famílias impactadas pela seca no município.
• A
estiagem se espraia
Várias calhas de rios da bacia amazônica estão com
níveis abaixo da média para o período. Em Manaus, capital do Amazonas, o rio
Negro entrou em um processo mais acentuado de vazante, com descidas diárias de
32 centímetros. O mesmo vem acontecendo em municípios do Médio Solimões e Alto
Rio Negro, com cidades apresentando cotas baixas. A última grande seca do rio
Negro, na capital do Amazonas, foi registrada em 13 de outubro de 2010, quando
chegou à cota de 13,63 centímetros. Nesta quinta (21), a cota marcou 18,34
centímetros.
“Pelo comportamento da bacia e das principais
calhas que contribuem para a região, a vazante de 2023 em Manaus, apresenta uma
tendência de ficar entre as 10 mais severas”, disse Jussara Cury, à Amazônia
Real.
Conforme a pesquisadora da CPRM, em Itacoatiara
[município vizinho da capital], o rio Amazonas apresenta descida média diária
de 25 centímetros, registrando cotas baixas para essa época, mas ainda no
intervalo da normalidade. Ela disse que algumas cidades com cotas baixas para a
época são Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no
Alto Rio Negro; e Beruri, na região do rio Purus, com um processo intenso de
descida.
“Caso as condições de falta ou redução das chuvas
persistam, mais cidades podem ser atingidas, o que indicam as previsões
correntes”, alertou o pesquisador Renato Senna, do Inpa.
Desde abril, grande parte da bacia amazônica está
sob efeito do El Niño, o aquecimento do Oceano Pacífico. A intensidade do
fenômeno ficou mais forte a partir de julho. Meteorologistas ouvidos pela
Amazônia Real alertam para a possibilidade de atraso da estação chuvosa,
distribuição irregular e abaixo do normal na região. O período chuvoso,
normalmente, começa em novembro.
Em julho, especialistas já alertavam para o impacto
do fenômeno para agravamento de queimadas na região amazônica.
O último El Niño foi registrado em 2015 e 2016 na
Amazônia, agravando os focos de queimadas e incêndios florestais na região
naqueles dois anos. Nestes dois anos, a força do El Niño foi tão
impressionante, que ele foi chamado de “Godzilla”.
“Neste momento as previsões para os próximos três
meses indicam a manutenção das condições de aquecimento anômalo das águas
superficiais dos oceanos nestas regiões”, alertou o pesquisador do Inpa.
• Falta
de água potável
Em Envira, à margem do rio Tarauacá, na bacia do
rio Juruá, a maior dificuldade tem sido o acesso aos produtos de comércio para
abastecer a cidade. O secretário municipal de Defesa Civil Ismael Dutra disse
que a população já sofre com escassez de alimento, por conta do obstáculo da
navegação.
Segundo o secretário, 60% dos produtos que
abastecem Envira vem do município vizinho de Feijó, no Acre. Os barcos saem da
cidade acreana e chegam à noite do mesmo dia. Com a seca, o percurso dura de
oito a nove dias e as mercadorias não chegaram com boa qualidade e até
impróprias para consumo. Alguns barcos também têm sofrido com panes ou
naufrágios no itinerário, segundo ele.
“As nossas comunidades são muito distantes da sede
do município. A última comunidade, da forma que está o rio (seco), só vou conseguir
chegar com cinco a seis dias de viagem. O igarapés estão secos ou tem pouca
água, o que faz com que as canoas não passem. A gente está fazendo operação de
apoio, com comida, água potável, mas pedimos que o período de chuva possa
chegar mais cedo”, afirmou Ismael Dutra.
“Com a falta de chuvas e a velocidade da vazante, é
bem provável que esse número aumente nas próximas semanas”, disse o governo do
Amazonas, em nota à Amazônia Real. Para as autoridades, a estiagem de 2023 será
entre moderada a severa, mas por enquanto ainda não é possível determinar a
extensão dos impactos esperados.
De acordo com o governo, na região da calha do
Juruá, comunidades remotas e municípios encontram-se isolados por causa da
significativa redução do nível dos rios.
“Essa situação tem desencadeado diversos desafios,
incluindo um notável aumento nos preços dos produtos, a escassez de mantimentos
nas comunidades e a dificuldade em assegurar o acesso à água potável. Além
disso, nas comunidades, as perdas na produção agrícola tornam-se evidentes,
devido à dificuldade no escoamento dos produtos e à falta de chuvas para a
irrigação das plantações”, diz a nota do governo estadual.
Na semana passada, o governo do Amazonas anunciou a
destinação de 100 milhões de reais para os municípios, como parte da Operação
Estiagem. Ela prevê entrega de ajuda humanitária, garantia do abastecimento de
água, distribuição de cestas básicas, kits de higiene pessoal, renegociação de
dívidas, aquisição de produtos da agricultura familiar, entre outros.
• Chuva
vai demorar
O apelo para que chova, feito pelo secretário de
Defesa Civil de Envira, vai demorar para ser atendido. Os prognósticos
climáticos não são otimistas, segundo os dois principais órgãos de
monitoramento do clima – Censipam e Inmet.
O meteorologista Gustavo Guterres Ribeiro, do
Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam),
afirmou que os prognósticos mais recentes apontam manutenção de chuvas abaixo
do normal para os próximos dois meses.
Conforme Ribeiro, o aquecimento anômalo das águas
do Pacífico foi identificado em março de 2023, próximo à costa oeste do
continente sul-americano. Na ocasião, foi identificado que nos meses de maio,
junho e julho os prognósticos seriam chuva abaixo da normalidade para as
regiões do litoral da Amazônia Legal, sul de Roraima e nordeste do Amazonas.
“Em abril, o aquecimento anormal que estava no
oeste da América do Sul estendeu para regiões mais a oeste e depois se
intensificou para todas as áreas de monitoramento do El Niño. Foi observado um
volume de chuvas abaixo do esperado de maio a agosto de 2023 para todas as
regiões da Amazônia Legal”, diz Ribeiro.
O meteorologista afirmou ainda que “o retardamento
do início da estação chuvosa nesta porção da região nos anos de 2015 e 2016 é
similar ao que é esperado para o mesmo período de 2023”.
O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet)
afirma, em nota à Amazônia Real, que o fenômeno El Niño deve persistir até
janeiro de 2024. Assim, a “subsidência” [termo que os meteorologistas adotam
para descrever a descida do ar seco] inibe a formação de nuvens e de sistemas
meteorologistas que provocam chuvas.
“A tendência é persistir as estiagens até janeiro,
com vários dias com pouca ou nenhuma precipitação e consequentemente redução
dos índices pluviométricos, que deve variar de 20 a 50%”, diz trecho da nota.
Apesar da persistência do El Niño, a previsão é que
para outubro as chuvas gradativamente aumentem em áreas pontuais da região, mas
com distribuição irregular e abaixo da média, incluindo Manaus.
Em entrevista publicada no site do Ministério de
Ciência e Tecnologia, o pesquisador Renato Senna destacou que as ocorrências de
grandes cheias na bacia amazônica são maiores e mais frequentes, mas a
“repercussão das secas são mais graves”. “É um processo muito caótico para a
região. As pessoas estão mais resilientes para as condições de cheias na
região, mas não para as secas”, diz ele.
Rio
Amazonas pode ter capacidade de navegação reduzida pela metade em outubro,
estima setor
O período de seca que atinge a região Norte do País
já afeta a navegação do rio Amazonas e pode reduzir a capacidade de transporte
por ele em 40% em duas semanas e até 50% até outubro. A estimativa é da
Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem (Abac), que monitora a vazão em
três diferentes pontos, tendo identificado queda diária de até 35 centímetros,
enquanto a média para este período é de 25. A cobrança do setor é por ações
emergenciais, que, segundo o governo, estão sendo estudadas.
A seca é sazonal, sendo observada todos os anos.
Neste, porém, teria chegado mais cedo do que o esperado. Desde agosto, a
Marinha do Brasil decidiu restringir a navegação em rios no Estado do Amazonas,
atingindo três pontos: a passagem do Tabocal, a 339 km de Manaus, e as enseadas
do Rio Madeira Enseada e do Rio Purus com o Rio Solimões. O medo do setor de
navegação é que o próximo afetado será o próprio Rio Amazonas, principal
hidrovia da região.
No pior cenário, em função da segurança, não será
possível a navegação pelo rio Amazonas. Ocorre que os navios que navegam por
ele são os que permitem o escoamento da produção e mantêm o abastecimento da
região com insumos básicos para toda a população e para a indústria local.
No ano passado, a redução de capacidade de
transporte foi, em média, de 40%, contra os 50% estimados para este ano. Os
produtos que sofrem mais impacto são os mais pesados, como alimentos (arroz,
congelados e resfriados), cimento, metais, cerâmica, porcelanato e
fertilizantes.
“Manaus é uma ilha, não tendo produção de itens
como alface e arroz. Nós é que levamos os insumos para lá, o ferro, a areia, o
cimento. E também tiramos a produção feita lá. E como não estamos conseguindo
navegar com o volume de carga normal, já prevemos para duas semanas uma redução
de 45% da nossa capacidade de transporte”, afirma o diretor-executivo da Abac,
Luis Fernando Resano.
A crise atinge a população, podendo refletir em
aumento direto do preço dos produtos, pela escassez e por aumento no frete. É
impactada, ainda, a Zona Franca de Manaus, que não consegue escoar seus
produtos, o que, dependendo da duração da crise, pode causar desabastecimento
no mercado no Sul e Sudeste, em especial na “Black Friday”.
Setor cobra medidas
Resano diz que, apesar de o problema da estiagem
ter sua maior parte fora do controle humano, há iniciativas que podem ser
usadas como mitigatórias. Para este momento, afirma ser necessária uma dragagem
emergencial na enseada do Rio Madeira no trecho em que alcança o Amazonas.
“Aquela área está assoreada, com acúmulo de areia. Precisaria de dragagem para
abrir canal para que navios possam navegar próximo da capacidade”, diz.
O Estadão/Broadcast entrou em contato com os
ministérios dos Transportes e de Portos e Aeroportos, já que ambos têm
iniciativas ligadas ao setor. A pasta de Portos diz que o órgão responsável
pela segurança da navegação é a Marinha do Brasil, que indica as possibilidades
ou possíveis restrições e a impraticabilidade de percorrer determinados
trechos.
“O Ministério de Portos e Aeroportos, juntamente
com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), acompanha
a situação e está preparado para fazer a intervenção necessária nos trechos
possivelmente indicados”, afirma a nota.
Tecnologia pode ser aliada
Para Mario Veraldo, CEO da MTM Logix e ex-diretor
da Maersk, a saída está na tecnologia somada à “perspicácia estratégica”. Ele
cita como exemplo as torres de controle da cadeia de suprimentos. “Elas
oferecem uma supervisão centralizada de toda a cadeia de suprimentos,
permitindo que as empresas monitorem suas remessas, avaliem os níveis de
estoque em tempo real e antecipem possíveis interrupções”, diz.
Paralelamente às torres de controle, defende
sistemas de navegação avançados. “Com os níveis de água do Amazonas mostrando
flutuações imprevisíveis, a margem para erros de navegação diminuiu. Esses
sistemas de última geração, equipados com dados em tempo real sobre
profundidades de água e possíveis obstruções, garantem que os navios naveguem
pelos desafiadores terrenos do rio com segurança e eficiência”, explica
Veraldo.
Outra estratégia apontada por Veraldo é a adoção de
embarcações menores. “Embora a tecnologia ofereça uma infinidade de soluções,
às vezes, a resposta está em revisitar métodos tradicionais com uma perspectiva
renovada”, defende. Mesmo com custos maiores, as embarcações menores permitem
navegação em situações mais desafiadoras.
Fonte: Amazonia Real/Agencia Estado
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