domingo, 24 de setembro de 2023

Eles disseram ‘sim’ à não monogamia: conheça histórias de quem não prioriza a exclusividade

Na música que fez em homenagem ao amado antes de ser traída por ele, a cantora Luísa Sonza diz que se orgulha por “ser uma cafona” enquanto defendem que “essa moda acabou, que monogamia é papo de doido”. Na vida da estudante e influenciadora baiana Carol Fernandes, 23 anos, a monogamia se tornou, de fato, cafona. Num de seus grupos no WhatsApp que reúne cinco participantes, não estão amigos, familiares e nem colegas. Trata-se da sua rede de afetos.

Um dos integrantes é o editor de vídeos Wesley Andrade, 25. Os dois já foram um casal de namorados e hoje abraçam o amor livre. Este termo, que pertence ao ‘guarda-chuva’ da não monogamia – sob a qual estão diversos modelos de relação como poliamor, polifidelidade, relacionamento aberto ou anarquia relacional – é atribuído às pessoas que se permitem a liberdade de se relacionar sexual e/ou emocionalmente com mais de uma pessoa.

“Na rede de afetos tem pessoas com as quais eu conto. A gente fofoca, desabafa, ri. Interagimos juntos e separadamente. E nem todo mundo ali se relaciona sexualmente, além de todos terem suas relações fora do grupo também. A ideia é não ter regras; a única regra é se comunicar e fazer sexo protegido”, conta.

A mudança de Carol e Wesley, no entanto, foi gradual. Primeiro, eles adotaram o chamado relacionamento aberto, no qual apenas as relações físicas eram liberadas. Naquela época, Carol nem sabia que existiam outros termos e outras possibilidades e, quando passou a estudar sobre o assunto, virou a chave. “Eu estava na monogamia porque a vida toda eu aprendi que aquela era a forma certa de se relacionar e que na verdade não havia outra possibilidade. A partir do momento que eu me propus a questionar, tudo ruiu. Quando eu procurava uma resposta do por que eu não poderia me relacionar com outras pessoas, não achava”, lembra.

Para ela, um dos principais desafios é a vigilância social. “Eu me preocupava muito se iam achar que eu estava traindo. E quando decidi expor no Instagram, as pessoas ficavam discutindo se eu amava ou não Wesley e medindo o meu amor pela quantidade de pessoas que eu pegava”, desabafa.

A adoção da não monogamia por casais monogâmicos formados por um homem e uma mulher pode até ser coisa recente, de espantar muita gente, mas Carol destaca que a não monogamia já é bastante disseminada entre pessoas consideradas dissidentes.

“Eu acho que a não monogamia abraça há muito tempo pessoas que a sociedade acha que não são dignas de amor, como pessoas negras, LGBTQIA+, gordas e com deficiência, por exemplo. É só pesquisar no Twitter que você vai encontrar um monte de gente falando que não monogamia é coisa de feio ou de quem só está atrás de sexo, que é como a sociedade lê essas pessoas”, diz Carol.

•        Existe regra?

Itainã Ribeiro, de 30 anos, Luís Carlos Júnior, de 25, e Júnior Araújo, de 29, formam um trisal há cinco anos, numa relação de polifidelidade com algumas exceções. “Moramos os três juntos e às vezes nos permitimos curtir com outros rapazes, mas sempre conversamos porque o combinado não sai caro. Se alguém não se sentir confortável com algo, mudamos”, explica Itainã.

Já Isane Farias, de 35 anos, Íris Ribeiro, de 31, e Igor Almeida, de 33, adotam a relação livre ou amor livre. Os três moram juntos, se relacionam entre si e com outras pessoas e preferem não hierarquizar relações. Isane mantém um outro relacionamento há cerca de cinco meses. “Nos conhecemos em um luau na casa de amigos em comum. Ele se entende como não monogâmico e para ele é muito tranquilo o fato de que eu vivo um trisal e coabito com Igor e Íris”, conta.

 “A única regra que a gente (o trisal) tinha era de não poder levar outros afetos para casa. Mas com algumas relações se aprofundando a gente percebeu que não fazia muito sentido ter esse limite e hoje essa questão é tranquila também. Igor e meu outro companheiro se conhecem e se dão super bem, já fomos inclusive para vários rolês juntos. Íris esteve viajando nos últimos meses e ainda não teve a oportunidade de conhecê-lo”, completa Isane.

Para a doutora em Sociologia Mônica Barbosa, pesquisadora da não monogamia e autora do livro “Poliamor e Relações Livres, do amor a militância contra a monogamia compulsória”, tentar enquadrar a não monogamia em caixas ou estabelecer uma ‘competição’ entre os modelos de relações não mono é um equívoco.

“Não podemos falar em não monogamia, mas não monogamias, porque há uma diversidade de práticas, algumas mais radicais porque se esforçam para romper com o padrão monogâmico, outras ainda convencionais. Há um risco de idealização tanto quanto na monogamia, obviamente, mas o simples movimento de questionar a monogamia já é bastante importante”, defende.

•        Relação a três ou marmita de casal?

A servidora pública de 40 anos que é do Rio de Janeiro, mora em Salvador há um ano e preferiu não ter o nome identificado, já viveu os dois lados da moeda. Diferente das relações dos trisais citadas acima, ela já fez parte de um casal que se relacionava com uma terceira pessoa e já foi a terceira pessoa de um casal. Ambas eram relações hierarquizadas em algum grau, que tinham um casal principal e um ou mais envolvimento secundário.

“Eu namorava com um homem e a gente se envolveu com uma amiga minha de infância. Não foi algo que buscamos, acabou rolando. Era um momento em que a gente nem ouvia falar em monogamia, então não definia e nem colocava nomes, só vivia a experiência. A gente era muito jovem, muito empolgado”, conta.

A amizade da servidora pública com a terceira pessoa continua até hoje, já o relacionamento teve fim. Quase 18 anos depois, durante a pandemia, ela conheceu separadamente um homem e uma mulher através de um aplicativo de relacionamento e acabou descobrindo que eles formavam um casal e moravam juntos. “No geral, estávamos os três, mas eventualmente eu ficava com um e com o outro separadamente. Quando a pandemia acabou e a rotina deles voltou ao normal, acabou não se encaixando na minha e me desliguei do casal”, explica.

A servidora acha engraçado o termo “marmita de casal”, mas também acha importante fazer ressalvas. “As pessoas falavam unicórnio e depois virou marmita de casal. Acho que esse termo é engraçado, mas é importante problematizar que transmite uma certa relação de poder, como se tivesse um casal que quisesse alguém para satisfazer os desejos deles. Não foi o que eu tive nas minhas vivências”, finaliza.

•        De onde vem a não monogamia?

“O que chamamos de não monogamia, hoje, são relações consensuais, nas quais todas as pessoas sabem e concordam com o fato de não haver exclusividade na relação sexual e/ou afetiva. Este movimento vem ganhando força desde o princípio dos anos 90, quando o poliamor, surgido nos Estados Unidos, se difunde para outros países e tem na internet um dos meios de veiculação de suas práticas”, explica a doutora em Sociologia Mônica Barbosa.

De acordo com um estudo da empresa Yougov, feito em 2020 com 1.300 estadunidenses adultos, 43% dos entrevistados da geração millennial (nascidos entre 1981 e 1996) responderam que o tipo de relação ideal seria não monogâmica. Nesta semana, a atriz Deborah Secco assumiu ter um casamento aberto com o marido, Hugo Moura. Ela se junta a outros famosos, como a também atriz Fernanda Nobre, a cantora e ex-BBB Aline Wirley e o médico e também ex-BBB Fred Nicácio.

A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, que possui 14 livros sobre relacionamentos e é referência no assunto, acredita que é mito que quem namora ou é casado deixará de ter interesse seja sexual ou emocional por outras pessoas. No episódio “Não-monogamia e emancipação feminina”, do podcast Louva a Deusa, ela explica de onde vem a monogamia.

“Há cinco mil anos, quando surgiu a propriedade privada, a mulher foi aprisionada dentro de casa porque o homem não queria correr o risco de deixar sua herança para um filho que não era dele”, afirma Regina. Carol Fernandes complementa: “É por isso que temos até hoje essa desigualdade quanto à fidelidade. É uma coisa muito mais cobrada das mulheres do que dos homens. E é isso que até hoje justifica o sentimento de posse e comportamentos violentos por parte dos homens”.

Como defende Mônica Barbosa, a monogamia chegou ao Brasil através dos europeus. “A monogamia aqui começa a se instaurar como norma a partir do processo de colonização, no século XVI, que deposita nos jesuítas a missão de impor os valores da Coroa Portuguesa aos povos originários. A instauração da monogamia como regra era parte do processo de catequese e o não cumprimento dela era severamente punido”.

As diferenças culturais ainda existem. Enquanto em parte dos Estados Unidos o adultério é proibido por lei, a poligamia (contrair outro matrimônio enquanto ainda se é legalmente casado) é permitida em países como Catar, Afeganistão e Emirados Árabes Unidos. “Há uma diversidade de culturas e formas de conjugalidade, entre eles a poligamia, cujas formas também são diversas, mesmo nos países em que são legalizadas e passam por questões políticas, econômicas e religiosas”, acrescenta Mônica.

•        O que as leis dizem sobre o assunto

No Brasil, no dia 28 de agosto, a Justiça reconheceu a união estável de um trisal no Rio Grande do Sul; o filho que eles esperam para outubro, inclusive, vai receber o direito de ter o nome dos três na certidão de nascimento. O casal de bancários é casado desde 2006 e desde 2013 mantêm uma relação com uma mulher.

O feito, no entanto, que ainda pode sofrer recurso, é exceção. Quem vai a um cartório em busca de oficializar um casamento ou união estável entre mais de duas pessoas, não consegue colocar em prática. É o que explica a advogada e professora de Direito da Família da Faculdade Baiana de Direito, Lara Soares, que defende uma proteção jurídica para os casos de não monogamia.

“Existe um Projeto de Lei que tramita na Câmara dos Deputados desde 2015 que busca reconhecer como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiam no amor, na socioafetividade, independente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas. A iniciativa, porém, enfrenta os óbices da bancada parlamentar conservadora”, afirma.

Justamente pela falta de reconhecimento jurídico, para Lara o aspecto patrimonial de partilha, seja em caso de dissolução da relação poliafetiva, seja no caso de morte, é um dos pontos mais delicados da poliafetividade. “Efetivamente, a legislação brasileira não prevê o que deve ser feito nestes casos, então, caso haja o reconhecimento da relação poliafetiva, parece-me que as regras legais já existentes devem ser aplicadas analógica e proporcionalmente ao caso prático enfrentado”, acrescenta.

•        Solteiros também podem ser NM?

Para a terapeuta tântrica e psicoterapeuta Flôr Costa, de 35 anos, que é militante da sexualidade livre e discute a não monogamia em suas redes sociais, não monogamia não se trata de um modelo de relacionamento, mas de uma maneira de existir. “Eu sou não monogâmica, independente de estar me relacionando com alguém ou estar solteira. É a minha maneira de ver as coisas, eu acredito que não sou eu que vou dizer o que o outro pode ou não fazer”, defende.

A arquiteta Jamile Santana, de 37 anos, não usa o termo “solteira”. “Não tenho namorado e não sou solteira. Esses são termos monogâmicos, dessa escalada relacional que vai até o felizes para sempre. Eu não tenho namorado porque não pretendo casar com ninguém e não sou solteira porque me relaciono com várias pessoas”, diz. “Minha vida não está baseada na figura de um cônjuge, minha fonte de afetos não é centralizada em uma pessoa e eu não limito os meus planos de vida a uma pessoa”, explica.

•        Sim, existe ciúme

A psicóloga Ana Mendes, de 29 anos, voltada para o atendimento de pessoas não mono e coordenadora de um grupo no Telegram para aproximar essas pessoas, diz que a demanda mais trazida por seus pacientes é o ciúme, o que atesta que é mito que pessoas não mono não podem ser ciumentas. Na verdade, elas só lidam com o ciúme de uma forma diferente.

“O ciúme é praticamente unânime. E é múltiplo, não existe script. Talvez ele nunca vá embora, apenas seja trabalhado, administrado, controlado e levado para uma outra perspectiva”, diz. A sexóloga Magali Tourinho complementa: “O ciúme vem das nossas inseguranças e de um processo de disputa que estabelecemos; é o medo da perda daquela pessoa, o que está ligado ao sentimento de posse.”

Para Jamile Santana, o problema está na normalização do ciúme, um sentimento que, em sua visão, deveria ser controlado, assim como a raiva, por exemplo, e não valorizado. “O ciúme na monogamia é muitas vezes visto como uma prova de amor; se fulano não sente ciúmes de você, ele não te ama”, pontua.

>>> Fique por dentro do assunto

# Séries, documentários e filmes

•        Monogamia - episódio 18 da temporada 1 da série Explicando (Netflix)

•        Monogamish - documentário (Amazon Prime Video)

•        A porta ao lado (Amazon Prime Video)

•        Eu, Tu e Ela (Netflix)

•        Wanderlust - Navegar é preciso (Netflix)

# Podcasts

•        Eta Porra!

•        Temperos Ñ Mono

•        NM em Foco

•        RC Não Mono

•        Louva a Deusa (episódios #82, #84 e RDV #05)

# Livros

•        Novas formas de amar - Regina Navarro Lins

•        Amor na vitrine - Regina Navarro Lins

•        O livro do amor: da Pré-história à Renascença - Regina Navarro Lins

•        O livro do amor: do Iluminismo à atualidade - Regina Navarro Lins

•        Poliamor e Relações Livres, do amor a militância contra a monogamia compulsória - Mônica Barbosa

# Perfis para acompanhar no Instagram

•        @nossatriiiade_

•        @fenobre

•        @psianamendes

•        @eta.nega

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•        @jamilesalima

# Para trocar ideia

•        Clube dos Afetos (grupo no Telegram)

•        Problemas de Não-Mono (grupo no Facebook)

•        Festa Komboza (@a_komboza)

>>>> Glossário não mono:

# Monogamia - Condição de ter apenas um vínculo amoroso por vez, mantendo a exclusividade afetiva e sexual entre o casal.

# Mono normatividade - Normas culturais e sociais que propagam e defendem a ideia da monogamia.

# Poligamia - Possibilidade de ter vários casamentos, sendo possível apenas para uma das partes. Proibida no Brasil.

# Adultério - Relações sexuais ou afetivas com mais de uma pessoa ao mesmo tempo de forma não consensual.

# Não monogamia - Termo guarda-chuva para as diversas formas de manter relações sexuais e/ou afetivas com mais de uma pessoa ao mesmo tempo de forma consensual.

# Relacionamento aberto - Exclusividade afetiva entre os membros envolvidos, mas com liberdade para se envolver sexualmente com outras pessoas fora da relação.

# Poliamor - Condiz com a possibilidade de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, podendo viver mais de um relacionamento simultâneo com o consentimento de todos.

# Polifidelidade - Quando as pessoas que se relacionam a três, quatro ou mais têm uma relação fechada, existindo o acordo de fidelidade entre todos.

# Relação livre/amor livre - As pessoas são livres para se relacionar sexualmente e/ou afetivamente com outras pessoas.

# Anarquia relacional - É o modelo de relacionamento não regido por regras que envolve relações sexuais e/ou afetivas e que não estabelece uma hierarquia entre as relações, não classificando entre relacionamento sério, namoro, etc.

# Swing - Troca de casais é a parte mais conhecida nas relações entre duas pessoas que juntos vivenciam envolvimentos sexuais com outras pessoas.

# Ménage à trois - Experiência sexual entre três pessoas.

 

Fonte: Correio

 

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