Eles disseram ‘sim’ à não monogamia: conheça histórias de quem não
prioriza a exclusividade
Na música que fez em homenagem ao amado antes de
ser traída por ele, a cantora Luísa Sonza diz que se orgulha por “ser uma
cafona” enquanto defendem que “essa moda acabou, que monogamia é papo de doido”.
Na vida da estudante e influenciadora baiana Carol Fernandes, 23 anos, a
monogamia se tornou, de fato, cafona. Num de seus grupos no WhatsApp que reúne
cinco participantes, não estão amigos, familiares e nem colegas. Trata-se da
sua rede de afetos.
Um dos integrantes é o editor de vídeos Wesley
Andrade, 25. Os dois já foram um casal de namorados e hoje abraçam o amor
livre. Este termo, que pertence ao ‘guarda-chuva’ da não monogamia – sob a qual
estão diversos modelos de relação como poliamor, polifidelidade, relacionamento
aberto ou anarquia relacional – é atribuído às pessoas que se permitem a
liberdade de se relacionar sexual e/ou emocionalmente com mais de uma pessoa.
“Na rede de afetos tem pessoas com as quais eu
conto. A gente fofoca, desabafa, ri. Interagimos juntos e separadamente. E nem
todo mundo ali se relaciona sexualmente, além de todos terem suas relações fora
do grupo também. A ideia é não ter regras; a única regra é se comunicar e fazer
sexo protegido”, conta.
A mudança de Carol e Wesley, no entanto, foi
gradual. Primeiro, eles adotaram o chamado relacionamento aberto, no qual
apenas as relações físicas eram liberadas. Naquela época, Carol nem sabia que
existiam outros termos e outras possibilidades e, quando passou a estudar sobre
o assunto, virou a chave. “Eu estava na monogamia porque a vida toda eu aprendi
que aquela era a forma certa de se relacionar e que na verdade não havia outra
possibilidade. A partir do momento que eu me propus a questionar, tudo ruiu.
Quando eu procurava uma resposta do por que eu não poderia me relacionar com
outras pessoas, não achava”, lembra.
Para ela, um dos principais desafios é a vigilância
social. “Eu me preocupava muito se iam achar que eu estava traindo. E quando
decidi expor no Instagram, as pessoas ficavam discutindo se eu amava ou não
Wesley e medindo o meu amor pela quantidade de pessoas que eu pegava”,
desabafa.
A adoção da não monogamia por casais monogâmicos
formados por um homem e uma mulher pode até ser coisa recente, de espantar
muita gente, mas Carol destaca que a não monogamia já é bastante disseminada
entre pessoas consideradas dissidentes.
“Eu acho que a não monogamia abraça há muito tempo
pessoas que a sociedade acha que não são dignas de amor, como pessoas negras,
LGBTQIA+, gordas e com deficiência, por exemplo. É só pesquisar no Twitter que
você vai encontrar um monte de gente falando que não monogamia é coisa de feio
ou de quem só está atrás de sexo, que é como a sociedade lê essas pessoas”, diz
Carol.
• Existe
regra?
Itainã Ribeiro, de 30 anos, Luís Carlos Júnior, de
25, e Júnior Araújo, de 29, formam um trisal há cinco anos, numa relação de
polifidelidade com algumas exceções. “Moramos os três juntos e às vezes nos
permitimos curtir com outros rapazes, mas sempre conversamos porque o combinado
não sai caro. Se alguém não se sentir confortável com algo, mudamos”, explica
Itainã.
Já Isane Farias, de 35 anos, Íris Ribeiro, de 31, e
Igor Almeida, de 33, adotam a relação livre ou amor livre. Os três moram
juntos, se relacionam entre si e com outras pessoas e preferem não hierarquizar
relações. Isane mantém um outro relacionamento há cerca de cinco meses. “Nos
conhecemos em um luau na casa de amigos em comum. Ele se entende como não
monogâmico e para ele é muito tranquilo o fato de que eu vivo um trisal e
coabito com Igor e Íris”, conta.
“A única
regra que a gente (o trisal) tinha era de não poder levar outros afetos para
casa. Mas com algumas relações se aprofundando a gente percebeu que não fazia
muito sentido ter esse limite e hoje essa questão é tranquila também. Igor e
meu outro companheiro se conhecem e se dão super bem, já fomos inclusive para
vários rolês juntos. Íris esteve viajando nos últimos meses e ainda não teve a
oportunidade de conhecê-lo”, completa Isane.
Para a doutora em Sociologia Mônica Barbosa,
pesquisadora da não monogamia e autora do livro “Poliamor e Relações Livres, do
amor a militância contra a monogamia compulsória”, tentar enquadrar a não
monogamia em caixas ou estabelecer uma ‘competição’ entre os modelos de relações
não mono é um equívoco.
“Não podemos falar em não monogamia, mas não
monogamias, porque há uma diversidade de práticas, algumas mais radicais porque
se esforçam para romper com o padrão monogâmico, outras ainda convencionais. Há
um risco de idealização tanto quanto na monogamia, obviamente, mas o simples
movimento de questionar a monogamia já é bastante importante”, defende.
• Relação
a três ou marmita de casal?
A servidora pública de 40 anos que é do Rio de
Janeiro, mora em Salvador há um ano e preferiu não ter o nome identificado, já
viveu os dois lados da moeda. Diferente das relações dos trisais citadas acima,
ela já fez parte de um casal que se relacionava com uma terceira pessoa e já
foi a terceira pessoa de um casal. Ambas eram relações hierarquizadas em algum
grau, que tinham um casal principal e um ou mais envolvimento secundário.
“Eu namorava com um homem e a gente se envolveu com
uma amiga minha de infância. Não foi algo que buscamos, acabou rolando. Era um
momento em que a gente nem ouvia falar em monogamia, então não definia e nem
colocava nomes, só vivia a experiência. A gente era muito jovem, muito
empolgado”, conta.
A amizade da servidora pública com a terceira
pessoa continua até hoje, já o relacionamento teve fim. Quase 18 anos depois,
durante a pandemia, ela conheceu separadamente um homem e uma mulher através de
um aplicativo de relacionamento e acabou descobrindo que eles formavam um casal
e moravam juntos. “No geral, estávamos os três, mas eventualmente eu ficava com
um e com o outro separadamente. Quando a pandemia acabou e a rotina deles
voltou ao normal, acabou não se encaixando na minha e me desliguei do casal”,
explica.
A servidora acha engraçado o termo “marmita de
casal”, mas também acha importante fazer ressalvas. “As pessoas falavam
unicórnio e depois virou marmita de casal. Acho que esse termo é engraçado, mas
é importante problematizar que transmite uma certa relação de poder, como se
tivesse um casal que quisesse alguém para satisfazer os desejos deles. Não foi
o que eu tive nas minhas vivências”, finaliza.
• De
onde vem a não monogamia?
“O que chamamos de não monogamia, hoje, são
relações consensuais, nas quais todas as pessoas sabem e concordam com o fato
de não haver exclusividade na relação sexual e/ou afetiva. Este movimento vem
ganhando força desde o princípio dos anos 90, quando o poliamor, surgido nos
Estados Unidos, se difunde para outros países e tem na internet um dos meios de
veiculação de suas práticas”, explica a doutora em Sociologia Mônica Barbosa.
De acordo com um estudo da empresa Yougov, feito em
2020 com 1.300 estadunidenses adultos, 43% dos entrevistados da geração
millennial (nascidos entre 1981 e 1996) responderam que o tipo de relação ideal
seria não monogâmica. Nesta semana, a atriz Deborah Secco assumiu ter um
casamento aberto com o marido, Hugo Moura. Ela se junta a outros famosos, como
a também atriz Fernanda Nobre, a cantora e ex-BBB Aline Wirley e o médico e
também ex-BBB Fred Nicácio.
A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, que
possui 14 livros sobre relacionamentos e é referência no assunto, acredita que
é mito que quem namora ou é casado deixará de ter interesse seja sexual ou
emocional por outras pessoas. No episódio “Não-monogamia e emancipação
feminina”, do podcast Louva a Deusa, ela explica de onde vem a monogamia.
“Há cinco mil anos, quando surgiu a propriedade
privada, a mulher foi aprisionada dentro de casa porque o homem não queria
correr o risco de deixar sua herança para um filho que não era dele”, afirma
Regina. Carol Fernandes complementa: “É por isso que temos até hoje essa
desigualdade quanto à fidelidade. É uma coisa muito mais cobrada das mulheres
do que dos homens. E é isso que até hoje justifica o sentimento de posse e
comportamentos violentos por parte dos homens”.
Como defende Mônica Barbosa, a monogamia chegou ao
Brasil através dos europeus. “A monogamia aqui começa a se instaurar como norma
a partir do processo de colonização, no século XVI, que deposita nos jesuítas a
missão de impor os valores da Coroa Portuguesa aos povos originários. A
instauração da monogamia como regra era parte do processo de catequese e o não
cumprimento dela era severamente punido”.
As diferenças culturais ainda existem. Enquanto em
parte dos Estados Unidos o adultério é proibido por lei, a poligamia (contrair
outro matrimônio enquanto ainda se é legalmente casado) é permitida em países
como Catar, Afeganistão e Emirados Árabes Unidos. “Há uma diversidade de
culturas e formas de conjugalidade, entre eles a poligamia, cujas formas também
são diversas, mesmo nos países em que são legalizadas e passam por questões
políticas, econômicas e religiosas”, acrescenta Mônica.
• O que
as leis dizem sobre o assunto
No Brasil, no dia 28 de agosto, a Justiça
reconheceu a união estável de um trisal no Rio Grande do Sul; o filho que eles
esperam para outubro, inclusive, vai receber o direito de ter o nome dos três
na certidão de nascimento. O casal de bancários é casado desde 2006 e desde
2013 mantêm uma relação com uma mulher.
O feito, no entanto, que ainda pode sofrer recurso,
é exceção. Quem vai a um cartório em busca de oficializar um casamento ou união
estável entre mais de duas pessoas, não consegue colocar em prática. É o que
explica a advogada e professora de Direito da Família da Faculdade Baiana de
Direito, Lara Soares, que defende uma proteção jurídica para os casos de não
monogamia.
“Existe um Projeto de Lei que tramita na Câmara dos
Deputados desde 2015 que busca reconhecer como famílias todas as formas de
união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se
baseiam no amor, na socioafetividade, independente de consanguinidade, gênero,
orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou
pessoas que assim sejam consideradas. A iniciativa, porém, enfrenta os óbices
da bancada parlamentar conservadora”, afirma.
Justamente pela falta de reconhecimento jurídico,
para Lara o aspecto patrimonial de partilha, seja em caso de dissolução da
relação poliafetiva, seja no caso de morte, é um dos pontos mais delicados da
poliafetividade. “Efetivamente, a legislação brasileira não prevê o que deve
ser feito nestes casos, então, caso haja o reconhecimento da relação
poliafetiva, parece-me que as regras legais já existentes devem ser aplicadas
analógica e proporcionalmente ao caso prático enfrentado”, acrescenta.
• Solteiros
também podem ser NM?
Para a terapeuta tântrica e psicoterapeuta Flôr
Costa, de 35 anos, que é militante da sexualidade livre e discute a não
monogamia em suas redes sociais, não monogamia não se trata de um modelo de
relacionamento, mas de uma maneira de existir. “Eu sou não monogâmica,
independente de estar me relacionando com alguém ou estar solteira. É a minha
maneira de ver as coisas, eu acredito que não sou eu que vou dizer o que o
outro pode ou não fazer”, defende.
A arquiteta Jamile Santana, de 37 anos, não usa o
termo “solteira”. “Não tenho namorado e não sou solteira. Esses são termos
monogâmicos, dessa escalada relacional que vai até o felizes para sempre. Eu
não tenho namorado porque não pretendo casar com ninguém e não sou solteira
porque me relaciono com várias pessoas”, diz. “Minha vida não está baseada na
figura de um cônjuge, minha fonte de afetos não é centralizada em uma pessoa e
eu não limito os meus planos de vida a uma pessoa”, explica.
• Sim,
existe ciúme
A psicóloga Ana Mendes, de 29 anos, voltada para o
atendimento de pessoas não mono e coordenadora de um grupo no Telegram para
aproximar essas pessoas, diz que a demanda mais trazida por seus pacientes é o
ciúme, o que atesta que é mito que pessoas não mono não podem ser ciumentas. Na
verdade, elas só lidam com o ciúme de uma forma diferente.
“O ciúme é praticamente unânime. E é múltiplo, não
existe script. Talvez ele nunca vá embora, apenas seja trabalhado,
administrado, controlado e levado para uma outra perspectiva”, diz. A sexóloga
Magali Tourinho complementa: “O ciúme vem das nossas inseguranças e de um
processo de disputa que estabelecemos; é o medo da perda daquela pessoa, o que
está ligado ao sentimento de posse.”
Para Jamile Santana, o problema está na
normalização do ciúme, um sentimento que, em sua visão, deveria ser controlado,
assim como a raiva, por exemplo, e não valorizado. “O ciúme na monogamia é
muitas vezes visto como uma prova de amor; se fulano não sente ciúmes de você,
ele não te ama”, pontua.
>>> Fique por dentro do assunto
# Séries, documentários e filmes
• Monogamia
- episódio 18 da temporada 1 da série Explicando (Netflix)
• Monogamish
- documentário (Amazon Prime Video)
• A
porta ao lado (Amazon Prime Video)
• Eu,
Tu e Ela (Netflix)
• Wanderlust
- Navegar é preciso (Netflix)
# Podcasts
• Eta
Porra!
• Temperos
Ñ Mono
• NM em
Foco
• RC
Não Mono
• Louva
a Deusa (episódios #82, #84 e RDV #05)
# Livros
• Novas
formas de amar - Regina Navarro Lins
• Amor
na vitrine - Regina Navarro Lins
• O
livro do amor: da Pré-história à Renascença - Regina Navarro Lins
• O
livro do amor: do Iluminismo à atualidade - Regina Navarro Lins
• Poliamor
e Relações Livres, do amor a militância contra a monogamia compulsória - Mônica
Barbosa
# Perfis para acompanhar no Instagram
• @nossatriiiade_
• @fenobre
• @psianamendes
• @eta.nega
• @sattaflor
• @snaomono
• @clubedosafetos
• @jamilesalima
# Para trocar ideia
• Clube
dos Afetos (grupo no Telegram)
• Problemas
de Não-Mono (grupo no Facebook)
• Festa
Komboza (@a_komboza)
>>>> Glossário não mono:
# Monogamia - Condição de ter apenas um vínculo
amoroso por vez, mantendo a exclusividade afetiva e sexual entre o casal.
# Mono normatividade - Normas culturais e sociais
que propagam e defendem a ideia da monogamia.
# Poligamia - Possibilidade de ter vários
casamentos, sendo possível apenas para uma das partes. Proibida no Brasil.
# Adultério - Relações sexuais ou afetivas com mais
de uma pessoa ao mesmo tempo de forma não consensual.
# Não monogamia - Termo guarda-chuva para as
diversas formas de manter relações sexuais e/ou afetivas com mais de uma pessoa
ao mesmo tempo de forma consensual.
# Relacionamento aberto - Exclusividade afetiva
entre os membros envolvidos, mas com liberdade para se envolver sexualmente com
outras pessoas fora da relação.
# Poliamor - Condiz com a possibilidade de amar
mais de uma pessoa ao mesmo tempo, podendo viver mais de um relacionamento
simultâneo com o consentimento de todos.
# Polifidelidade - Quando as pessoas que se
relacionam a três, quatro ou mais têm uma relação fechada, existindo o acordo
de fidelidade entre todos.
# Relação livre/amor livre - As pessoas são livres
para se relacionar sexualmente e/ou afetivamente com outras pessoas.
# Anarquia relacional - É o modelo de relacionamento
não regido por regras que envolve relações sexuais e/ou afetivas e que não
estabelece uma hierarquia entre as relações, não classificando entre
relacionamento sério, namoro, etc.
# Swing - Troca de casais é a parte mais conhecida
nas relações entre duas pessoas que juntos vivenciam envolvimentos sexuais com
outras pessoas.
# Ménage à trois - Experiência sexual entre três
pessoas.
Fonte: Correio
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