terça-feira, 29 de agosto de 2023

Lula assina MP para taxar fundos dos 'super-ricos': entenda como funciona investimento usado por milionários

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou nesta segunda-feira (28/08) Medida Provisória (MP) para taxar os chamados fundos exclusivos.

Também conhecidos como "fundos dos super-ricos", eles exigem investimento mínimo de R$ 10 milhões e têm um custo de manutenção anual que pode chegar a R$ 150 mil, segundo assessores de investimento consultados pela BBC News Brasil.

Com a medida, o governo espera conseguir R$ 24 bilhões entre 2023 e 2026, parte de um esforço de aumento da arrecadação, na tentativa de zerar um déficit (diferença entre receitas e despesas) estimado em mais de R$ 100 bilhões nas contas públicas em 2024.

A proposta, junto a duas outras já anunciadas – a taxação de investimentos nos exterior através de offshores e o fim do JCP (Juros Sobre Capital Próprio, uma modalidade de distribuição de lucros que permite às empresas pagarem menos impostos) –, antecipam pontos da segunda etapa da reforma tributária, que deve mexer com os impostos sobre renda e patrimônio.

A taxação dos fundos exclusivos deve servir, segundo o plano do governo, como compensação para o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda para contribuintes que recebem até R$ 2.640 mensais, aprovada pelo Congresso e também sancionada por Lula nesta segunda-feira.

"Estamos falando de 2,4 mil fundos que envolvem patrimônio de R$ 800 bilhões", disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista no fim de julho, sobre a taxação dos fundos exclusivos.

"É uma legislação anacrônica, que não faz sentido nenhum. Não é tomar nada de ninguém, é cobrar rendimento deste fundo, como qualquer trabalhador paga imposto de renda."

Segundo estimativas do Executivo, hoje 2,5 mil brasileiros contam com recursos aplicados em fundos exclusivos, que acumulam R$ 756,8 bilhões e respondem por 12,3% dos fundos no país.

O governo também informou que encaminhou ao Congresso projeto de lei que prevê a tributação anual de rendimentos de capital aplicado no exterior (offshore), com alíquotas progressivas de 0% a 22,5% e expectativa de arrecadação de cerca de R$ 20 bilhões até 2026.

·         Como funcionam os fundos exclusivos

"Os fundos abertos são como um clube em que todo mundo pode participar, basta comprar cotas desse clube e participar dos rendimentos que ele vai proporcionar", diz Michael Viriato, assessor na Casa do Investidor.

"Já o fundo exclusivo é como se fosse um clube fechado, que pertence a uma única pessoa ou grupo familiar", exemplifica o especialista em investimentos.

Desenhados sob medida, dependendo do perfil de risco e dos objetivos de rendimento do investidor, esses fundos são muito usados por famílias ricas em processos sucessórios.

Para um milionário transmitir uma herança, por exemplo, basta doar cotas do fundo para os herdeiros ainda em vida, evitando os custos e burocracias do processo de inventário.

No fundo exclusivo, há algumas restrições quanto ao número de aportes e resgates que o investidor pode fazer e quanto à periodicidade dessas retiradas.

Mas a grande vantagem desse tipo de fundo – antes da mudança agora proposta pelo governo – era a isenção do chamado "come-cotas", uma antecipação do Imposto de Renda cobrada semestralmente (normalmente em maio e novembro de cada ano) sobre os rendimentos, a uma alíquota de 15% para investimentos de curto prazo e 20% para os de longo prazo.

Sem a incidência do come-cotas, o investidor podia obter até 30% a 40% de retornos a mais do que teria em fundos com a cobrança do imposto, estima Viriato. Isso porque o valor que seria descontado na forma de tributo seguia rendendo no fundo, ampliando os ganhos.

Por exemplo, se uma pessoa investia R$ 10 milhões, com um rendimento de 12% ao ano, ela teria R$ 182 milhões após 30 anos num fundo com a cobrança de come-cotas, ou R$ 256 milhões num fundo isento, calculava o assessor financeiro.

Nos fundos exclusivos, o Imposto de Renda era cobrado apenas no momento do resgate e de forma regressiva, o que significava que, quanto maior o tempo de aplicação, menor a tributação.

·         Qual é a mudança apresentada pelo governo

A ideia do governo é igualar os fundos exclusivos aos demais fundos de investimentos. Com isso, os fundos dos "super-ricos" passarão a ter a cobrança periódica do come-cotas, de 15% a 20% sobre os rendimentos dos fundos.

Havia uma dúvida no mercado financeiro se a cobrança de impostos se daria também sobre os estoques – rendimentos passados, acumulados desde a criação desses fundos.

Uma fonte do governo havia antecipado no começo de agosto à BBC News Brasil que provavelmente os contribuintes teriam a opção de antecipar o pagamento do imposto sobre o estoque, a uma alíquota reduzida. Quem não quisesse, ficaria na sistemática antiga, pagando o imposto quando e se resgatar o investimento.

Nesta segunda-feira, o Palácio do Planalto confirmou a alíquota inferior, de 10%, para quem optar por regularizar os valores ainda neste ano.

Essa não é a primeira vez que o governo federal tenta tributar os fundos exclusivos.

Em 2017, o ex-presidente Michel Temer chegou a editar uma medida provisória instituindo a cobrança a cada deis meses do IR sobre os fundos dos super ricos. Mas a MP sofreu resistência do Congresso e acabou perdendo a validade.

A proposta também foi incluída pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, no projeto de reforma tributária enviado ao Congresso em 2021, mas não avançou.

A MP apresentada nesta segunda-feira tem efeito de lei, passando a valer assim que editada. Mas, para que a medida se torne uma legislação permanente, precisará passar por aprovação do Congresso em até 120 dias.

·         Questão de justiça tributária

Especialistas veem com bons olhos a proposta de taxação dos fundos.

"Essa medida deveria ter sido aprovada há anos, não faz o menor sentido essa brecha que foi criada", diz Viriato, da Casa dos Investidores.

"Não é que eu seja a favor de tributar os mais ricos, é que foram criados dois veículos de investimentos similares [o fundo exclusivo e o fundo aberto] com impostos diferentes, não faz sentido algum", afirma o assessor de investimentos.

"De fato existem distorções, então realmente é uma medida que visa tornar mais igualitária a tributação da renda, mas acredito que essa medida e outras que estão sendo apresentadas pelo governo [na tributação de renda], como o fim do JCP, vão enfrentar resistência significativa no Congresso", diz Yihao Lin, economista na gestora de recursos Genial Investimentos.

O auditor fiscal Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Instituto Justiça Fiscal e coordenador da campanha "Tributar os Super-Ricos", acredita que será preciso vencer essa resistência para tornar o sistema tributário brasileiro mais progressivo – isto é, com ricos pagando mais impostos e pobres pagando menos.

Ele defende que, além das medidas já anunciadas pelo governo de mudanças na tributação da renda, são necessários outros avanços, como a taxação de dividendos e a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), conforme previsto na Constituição.

"Sem ampliar a tributação dos mais ricos, fica muito difícil para o Estado conseguir reduzir os tributos sobre os mais pobres", diz o auditor fiscal.

"É preciso enfrentar a iniquidade do sistema tributário para conseguirmos resolver nossos problemas sociais históricos, enfrentar a desigualdade e promover o desenvolvimento econômico."

 

Ø  'Taxar super-ricos não é mais ideia só da esquerda': os argumentos de milionário americano que quer pagar mais imposto

 

Morris Pearl tenta há quase dez anos fazer com que milionários como ele próprio paguem mais impostos nos Estados Unidos.

Ex-diretor de um dos maiores fundos de investimentos do mundo, o BlackRock, ele preside a organização Patriotas Milionários (Patriotic Millionaires, no original em inglês), que busca aumentar a pressão sobre os políticos americanos para que aprovem mais tributos sobre a renda e o patrimônio dos super-ricos.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele reconhece que houve pouco avanço concreto nessa última década.

Por outro lado, acredita que o sentimento a favor de taxar mais os milionários tem ficado mais forte, em meio à crescente desigualdade no país.

"Essas ideias sobre tributar os ricos eram consideradas ideias da esquerda. Agora, o presidente dos Estados Unidos (Joe Biden) está abraçando ao menos algumas das nossas ideias. O presidente do Comitê de Finanças do Senado dos Estados Unidos (o democrata Ron Wyden) está propondo algumas das nossas ideias", comemora, ao mesmo tempo em que admite que não há maioria no Congresso americano para aprovar as medidas.

Pearl compartilhará um pouco da sua experiência com o público brasileiro nesta terça-feira (29/08), quando participa virtualmente do Fórum Internacional Tributário (FIT), promovido em Brasília por entidades como a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital Fenafisco) e o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz).

Sua mesa tem como tema "Tributação da Renda e da Riqueza: a Experiência Internacional e o Brasil".

Dados oficiais dos dois países mostram que Brasil e Estados Unidos têm um cenário semelhante: os contribuintes mais ricos pagam, em média, alíquotas menores de imposto de renda que a classe trabalhadora. Isso ocorre, em boa parte, porque salários são mais tributados do que aplicações financeiras.

Uma análise realizada por economistas da Casa Branca em 2021 estimou que as 400 famílias bilionárias mais ricas do país teriam pago, em média, apenas 8,2% de seus ganhos totais em imposto de renda, entre 2010 e 2018.

Em comparação, uma família de um trabalhador de renda média com dois filhos (dependentes que dão desconto no imposto de renda) era taxada em 19,8% em 2022, enquanto um trabalhador solteiro pagava alíquota de 30% naquele ano, segundo cálculos da instituição Tax Foundation.

"Aqui nos Estados Unidos, infelizmente, temos um sistema em que as pessoas que já são ricas, as pessoas que obtêm o seu dinheiro dos seus investimentos e das coisas (propriedades, por exemplo) que possuem, pagam taxas de impostos mais baixas do que as pessoas que de fato trabalham para viver", ressalta Pearl.

"E isso significa que se você já é rico, tende a ficar mais rico com o tempo. Enquanto todos os outros estão apenas lutando para permanecerem iguais", crítica.

Para o milionário, esse processo está ampliando a desigualdade no país e pode desestabilizar a democracia americana.

"Estamos preocupados com a perspectiva de que muito em breve, em algum momento, as pessoas não aguentem mais isso. Esperamos usar o processo democrático para mudar essas políticas, reduzir a crescente desigualdade e tornar toda a nossa sociedade mais estável", defende.

Na visão de Pearl, defender que lhe sejam cobrados mais impostos não se trata de bondade, mas de pensar no seu próprio interesse.

Ele contesta argumentos de que tributar riqueza reduziria investimentos, prejudicando a economia e a geração de empregos.

"Quando o governo arrecada dinheiro tributando as pessoas ricas, o dinheiro não desaparece simplesmente. Na verdade, o dinheiro é realmente colocado na economia, porque as pessoas muito ricas têm muito dinheiro (parado) em investimentos e em contas bancárias", argumenta.

"Se você tirar parte do dinheiro deles (os milionários), eles ficarão um pouco menos ricos, é verdade. Mas, quando você usa esse dinheiro para pagar professores, funcionários de hospitais e todos os tipos de trabalhadores do governo, esse dinheiro é gasto (por esses trabalhadores) e é isso que realmente ajuda os empresários", continua.

O milionário gosta de usar uma analogia para ilustrar seu raciocínio.

"Costumo dizer que o dono do bar se preocupa muito mais com quanto dinheiro está nos bolsos de todas as pessoas sentadas no bar do que com o salário do cara que está atrás do bar servindo a cerveja. Precisamos construir negócios numa nação onde haja pessoas com dinheiro suficiente para pagar as coisas", reforça.

"Por isso eu digo para investidores e empresários olharem para o longo prazo, olharem para o seu próprio interesse com clareza e pensarem sobre onde estão e onde querem estar. Ou onde seus filhos e netos querem estar", diz ainda.

·         Biden quer nova taxa sobre fortunas

Nos Estados Unidos, Joe Biden tem feito sugestões ambiciosas de aumento de impostos sobre os mais ricos.

Algumas delas entraram na proposta de orçamento do governo para 2024, como a ideia de criar um imposto de 20% que incidira sobre a valorização de ações (mesmo sem a venda dos papéis) e atingiria um grupo pequeno de pessoas - pouco mais de 20 mil contribuintes nos EUA com fortunas superiores a US$ 100 milhões (cerca de R$ 488 milhões atualmente).

O investidor Warren Buffett, o chefe da Tesla, Elon Musk, e o fundador da Amazon, Jeff Bezos, estariam entre os afetados.

A proposta de Biden também prevê o aumento da alíquota do imposto de renda sobre as famílias que ganham mais de US$ 400 mil - subiria de uma alíquota de 37% para 39,6%.

E o imposto para empresas seria elevado a 28%, revertendo parcialmente os cortes feitos sob o governo Trump.

Morris Pearl, porém, reconhece que essas tentativas não devem passar no Congresso.

Na sua avaliação, os parlamentares sofrem muita influência de grandes financiadores de campanha, pessoas ricas que não estão interessadas em pagar mais impostos.

Um dos caminhos para combater isso, diz, é convencer mais pessoas a votar (o voto é opcional nos EUA) e a pressionar o Congresso.

"Nossos congressistas passam muito tempo com esses doadores e não falam com pessoas que trabalham para viver e que pagam ainda mais impostos. Por isso, pensamos que fazer com que mais pessoas votem e expressem a sua opinião é a resposta certa (para reverter a resistência no Congresso)", acredita Pearl.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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