Entenda as fases da
Guerra da Ucrânia, que chega aos 500 dias
O
conflito entre Estados de maior importância geopolítica desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, a invasão russa da Ucrânia completa 500 dias neste sábado (8).
E contando, como as incertezas lançadas por sua nova fase sugerem.
Como
nas etapas anteriores, ela pode ser delimitada de forma mais ou menos precisa:
no caso, 4 de junho, quando as forças de Volodimir Zelenski enfim começaram as
salvas iniciais de sua aguardada contraofensiva. Passado mais de um mês,
ucranianos e aliados ocidentais procuram explicações para a lentidão nos
resultados esperados.
Não
que a situação do antípoda russo de Zelenski, Vladimir Putin, esteja
confortável. Além do grande atrito que os combates geraram, o presidente
administrou a mais grave crise interna de seus quase 24 anos no poder, o motim
dos mercenários do Grupo Wagner.
O
efeito dessa combinação de fatores torna a ainda mais imprevisível o desenrolar
do conflito. A evolução mais fluida em campo pode tanto levar a um novo
entrincheiramento e o prolongamento da guerra quanto a uma mudança brusca que
obrigue um dos lados a negociar. O dinheiro do mundo, no momento, está na
primeira hipótese.
Tanto
é assim que tema central da cúpula da Otan (aliança militar ocidental) na
semana que vem em Vilnius, capital lituana, será o fornecimento de mais armas
para Zelenski —nesta quinta (6), ele já se queixava de que
o ritmo lento da contraofensiva era decorrente da falta de armas prometidas.
Só
no primeiro ano da guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022, segundo o
Instituto para Economia Internacional de Kiel (Alemanha), Otan e aliados deram
o equivalente a R$ 837 bilhões a Kiev, equivalente a 85% do seu PIB no ano
anterior. Os EUA estão à frente, com R$ 383 bilhões, R$ 231 bilhões só em ajuda
militar —quase 60 vezes o orçamento de defesa de
Kiev em 2021.
O
custo em vidas é imensurável, até porque não há dados confiáveis, mas
ultrapassa a casa da centena de milhares dos dois lados. Do lado civil, a ONU
fala em 18 mil mortos ou feridos civis, número que a entidade mesmo diz ser
subestimado. Refugiados somam hoje 6,3 milhões, fora quase 6 milhões de pessoas
deslocadas internamente, numa população pré-guerra de 44 milhões.
Os
impactos se espraiam, seja no rearranjo frágil do fornecimento energético à
Europa, na remilitarização do continente, na ascensão de China e Índia como
mercados para hidrocarbonetos russos, na inflação de alimentos, no corte de
Moscou do sistema internacional, na pressão sobre não alinhados como o Brasil e
na volta do fantasma de uma Terceira Guerra Mundial.
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A seguir, um resumo breve dos 500 dias da Guerra da Ucrânia, em suas fases.
FASE
1 - CHOQUE, PAVOR E FRACASSO
Após
quatro meses de preparação a céu aberto e ultimatos, Putin tentou algo que a
Rússia nunca havia feito: uma invasão ao estilo "choque e pavor"
usada pelos americanos nas suas guerras no Golfo Pérsico. Chuva de mísseis de
precisão e ataques em três frentes simultâneas, com emprego de forças
aerotransportadas e colunas blindadas. O Pentágono achou que Kiev cairia em
três dias.
De
fato, no segundo dia já havia combates nos subúrbios da capital, mas era
ilusório. Problemas logísticos, soberba e falhas táticas, somadas à reação
rápida dos ucranianos, levaram ao fracasso na conquista da capital. Isso animou
o Ocidente a transformar o conflito em uma guerra por procuração, na prática.
A
primeira fase se mostrou encerrada quando os russos anunciaram que iriam focar
combates no Donbass, o leste russófono cuja guerra civil entre ucranianos e
separatistas pró-Kremlin já durava oito anos. Apesar da debacle, os russos
fizeram muitas conquistas importantes nessa etapa, avançando além do leste e
conquistando boa parte do sul ucraniano.
FASE
2 - DONBASS E MARIUPOL
A
batalha do Donbass começou no dia 18 de abril de 2022, com ataques coordenados
de mísseis. É um terreno tão complexo que, mesmo com a tomada quase total da
província de Lugansk, a de Donetsk segue contestada até hoje. Na realidade, é
uma fase que não chegou a acabar, sobrepondo-se às outras na guerra. Foi um
momento de reagrupamento para Kiev, que ainda conseguiu vitórias simbólicas,
como o afundamento da nau capitânia da Frota do Mar Negro da Rússia, o Moskva.
Por
outro lado, Moscou conseguiu conquistar o porto de Mariupol, em boa parte
reduzido a ruínas, numa batalha sangrenta que lhe garantiu a consolidação da
ponte terrestre entre Rússia, Donbass e a península da Crimeia, anexada por
Putin em 2014.
FASE
3 - A REAÇÃO DE KIEV
Com
o início do envio de mísseis de mais longo alcance e precisão dos EUA, a
Ucrânia começou a tomar iniciativas visando recuperar território. Lançou sua
primeira contraofensiva em 29 de agosto contra Kherson, no sul, mas seu grande
sucesso veio num ataque surpresa contra posições desguarnecidas da frente russa
em Kharkiv, província que foi praticamente toda retomada.
Neste
momento, Putin pôs em marcha uma tentativa de redesenhar o mapa ucraniano e
promoveu referendos altamente questionáveis visando, como fizera na Crimeia,
anexar Kherson e Zaporíjia, no sul, e Donetsk e Lugansk, a leste. O fez com
pompa no Kremlin em 30 de setembro, e aumentou suas ameaças nucleares. Na
prática, não tinha controle sobre tudo o que anexou, mas sinalizou as
fronteiras que talvez o satisfaçam numa negociação, excisando 20% da Ucrânia.
Ao
mesmo tempo, ciente do peso que a falta de soldados teve no início da guerra,
Putin lança uma campanha de mobilização de reservistas que se mostrou polêmica,
mas aparentemente adicionou 320 mil soldados às suas forças, a levar em conta
dados oficiais. Tão ou mais importante, combates desde então mostraram uma
melhor do desempenho tático dos russos, adaptando suas doutrinas rígidas ao
ambiente saturado de tecnologia.
FASE
4 - JOGO DE PRESSÃO
No
dia 8 de outubro, os ucranianos conseguiram mais um feito simbólico, explodindo
um caminhão-bomba e danificando a ponte da Crimeia, estrela do projeto de
anexação de Putin, que liga a península à Rússia continental. Dois dias depois,
Moscou começou uma campanha para degradar a rede de fornecimento de energia da
Ucrânia nos meses mais frios do ano, com ataques quase semanais que duraram até
o começo deste ano.
Enquanto
isso, os mercenários do Grupo Wagner apertaram o cerco à estratégica Bakhmut,
em Donetsk, abrindo o capítulo mais cruel da guerra, o "moedor de
carne" que matou milhares —16 mil admitidos
pelas forças de Ievguêni Prigojin, às
turras com o Ministério da Defesa russo.
A
pressão veio também do lado ucraniano. Ataques com drones passaram a atingir
mais cidades na Rússia, que também viu algumas ações de sabotadores
infiltrados. Isso culminaria em danos a bombardeiros de emprego nuclear e, em
março, em ações contra Moscou.
Mais
importante, em 9 de novembro, os russos deixaram a capital homônima da
província de Kherson, tornada indefensável, e estabeleceram o rio Dnipro como
sua nova linha defensiva, iniciando um processo de entrincheiramento duraria
meses.
O
atrito em Bakhmut avançou até maio, com a vitória do Wagner. Mas uma nova
realidade da guerra já se desenhava, marcado também por duas viradas no ânimo
ocidental de apoio: o envio de tanques pesados, a maioria Leopard-2 alemães,
mais mísseis e baterias antiaéreas. Além disso, a discussão sobre o
fornecimento de caças, algo antes tabu por ensejar um conflito mais direto com
os russos.
FASE
5 - A CONTRAOFENSIVA E O MOTIM
Chegamos
ao ponto atual, com a contraofensiva lançada em junho passado por Zelenski que,
até aqui, não passou do estágio probatório de defesa e de atrito para impor
perdas aos russos —e, aí mora o problema de Kiev, receber também perdas
sem a mesma capacidade de reposição de pessoal. Autoridades de defesa
ocidentais defendem que é assim mesmo, e que o grosso dos ataques não ocorreu
ainda, mas o presidente ucraniano mantém um discurso de pressão.
Na
teoria, o objetivo da ação é romper a ponte terrestre e isolar a Crimeia, mas
isso tem se mostrado difícil. A chegada de mísseis de cruzeiro britânicos Storm
Shadow facilitou, contudo, ataques à infraestrutura da península, mantendo a
pressão local.
Para
adicionar opacidade ao cenário, na primeira da contraofensiva uma explosão
destruiu a barragem de Nova Kakhovka, cujo reservatório no rio Dnipro atendia
canais de irrigação, o resfriamento da usina nuclear de Zaporíjia e uma unidade
hidroelétrica. O desastre ambiental que se seguiu foi enorme, com terras
arrasadas nas duas margens do rio até sua foz no mar Negro.
Padrão
no conflito, ambos os lados se acusam pelo episódio, o que se repete agora com
as falas de Kiev e de Moscou acerca de uma eventual explosão da usina de
Zaporíjia. Militarmente, ambos aferiram vantagens e desvantagens, com um escore
mais favorável aos russos.
Enquanto
isso, a carta nuclear volta à mesa com o anúncio da instalação de ogivas
táticas, de uso mais restrito, por Putin em Belarus. Como resposta, a Polônia
já pediu que a Otan posicione bombas americanas em seu território.
Mais
imprevisível, contudo, foi o motim de Prigojin nos dias 23 e 24 de junho, uma
história ainda inconclusa que demonstrou uma instabilidade interna na Rússia
que não se conhecia, mas que pode servir a alguns objetivos de consolidação de
poder do presidente ao fim.
Seja
como for, a revolta mercenária foi debelada com alguns telefonemas mediados
pelo ditador belarrusso, Aleksandr Lukachenko, e uma dúzia de pilotos russos
abatidos. É a batalha mais nebulosa desta guerra até aqui, e não será a última.
Ø
Otan
lava as mãos sobre envio de bombas polêmicas à Ucrânia
Diante
de uma crise potencial entre seu principal membro, os Estados Unidos, e a mais
rica nação europeia do clube, a Alemanha, às vésperas de uma vital reunião de
cúpula, a Otan lavou as mãos acerca do fornecimento das polêmicas bombas de
fragmentação para a Ucrânia.
"A
Otan não tem uma posição sobre elas. Isso cabe aos governos decidir, não à Otan.
Nós estamos ante uma guerra brutal, em que munições cluster [como as bombas são
conhecidas em inglês] são usadas por ambos os lados", afirmou nesta sexta
(7) o secretário-geral da aliança militar ocidental, o norueguês Jens
Stoltenberg.
A
Casa Branca disse que está analisando um pedido de Kiev para receber as bombas,
mas nesta sexta os ministros alemães Boris Pistorious (Defesa) e Annalena
Baerbock (Relações Exteriores) disseram que seu país não apoia a ideia, até por
ser signatário da convenção que proíbe tal armamento.
A
questão é que bombas de fragmentação carregam dezenas ou centenas de explosivos
menores, que são dispersados por grandes áreas quando ela é acionada. São
particularmente eficazes contra concentrações de tropa, objeto do pedido de
Kiev, que não tem armas de precisão suficientes para sua contraofensiva que se
arrasta desde 4 de junho.
O
problema é que, além de serem armas antipessoais brutais, muitas das bombas
menores não explodem, ficando no ambiente como minas terrestres a céu aberto,
matando e ferindo pessoas —particularmente
crianças, que não discernem o
perigo do que manipulam. Por isso, desde 2010 há a convenção proibindo
fabricação e emprego do armamento, adotada por 111 nações.
Dos
31 países da Otan, 25 são signatários, como a Alemanha. Mas EUA, Ucrânia e
Rússia não fazem parte do time, o que os exime de quaisquer punições
internacionais. Como disse Stoltenberg, nesta guerra ambos os rivais usaram as
bombas, mas ele enfatizou que Kiev o fez "de forma defensiva". Nota à
parte, o Brasil também não apoia a convenção, e é exportador do armamento.
Direito
humanitário à parte, o norueguês tirou da sala mais um bode potencial para a
reunião de cúpula da aliança que ele acaba de ser reconduzido para liderar por
mais um ano, que ocorrerá em Vilnius (Lituânia) na terça (11) e quarta (12).
Em
entrevista nesta sexta, Stoltenberg tentou deixar encaminhada outra polêmica, o
pedido da Ucrânia para "medidas concretas" acerca de sua entrada na
aliança, como disse o presidente Volodimir Zelenski na véspera.
Enquanto
Zelenski diz compreender que é impossível a Otan receber um país em guerra,
pois isso vai contra sua carta de fundação, ele busca estabelecer garantias de
segurança para etapas posteriores ao conflito —sem, claro, admitir
que pode perder qualquer território para a Rússia,
que ocupa cerca de 20% de seu país, invadido em
fevereiro de 2022.
"Por
500 dias, Moscou trouxe morte e destruição para o coração da Europa. Nossa
cúpula vai mandar uma mensagem clara: a Otan permanece unida, e a agressão russa
não irá ser bem-sucedida", afirmou.
Na
prática, o que ele tem a oferecer é o estabelecimento do chamado Fórum
Otan-Ucrânia, um instrumento de consultas que já está funcionando desde que o
Ocidente assumiu a tarefa de armar, rearmar e treinar Kiev para conter os
russos.
A
Rússia diz, com razão, que assim a Otan luta por procuração contra o Kremlin.
Por outro lado, a dissimulação retórica está na base da invasão russa, chamada
de "operação militar especial" para evitar implicações legais de uma
declaração de guerra.
A
falta de envolvimento direto de forças da Otan e de ataques russos além da
fronteira ucraniana tem um motivo claro, que é o de evitar a Terceira Guerra
Mundial. Tal sombra persiste sobre todos os movimentos e escaladas do conflito,
contudo. Isso explica o ritmo lento, crescente, da ajuda militar ocidental.
Pouco
a pouco foram caindo tabus: primeiro, vieram artilharia de precisão e
blindados, depois tanques e baterias antiaéreas, depois caças soviéticos usados
e, agora, discute-se fornecimento de aviões ocidentais a Kiev. Mas ainda assim
há o temor, entre membros da Otan, de que trazer a Ucrânia mais para perto
possa mudar a natureza da guerra.
Isso
pode não acontecer, apesar de o "casus belli" central de Vladimir
Putin era o de impedir a adesão de Kiev à Otan. Ele já guerreara na Geórgia em
2008 com esse objetivo e, desde 2014, desestabilizava uma Ucrânia hostil ao
Kremlin com a anexação da Crimeia e a guerra civil no leste russófono do país.
Até
aqui, contudo, só viu a Otan se reforçar, apesar das divisões pontuais. A
Finlândia abandonou sete décadas de neutralidade e entrou no bloco neste ano, e
a Suécia espera que nesta cúpula seja resolvido o impasse colocado pelo veto de
Turquia e Hungria à sua adesão.
Ali,
o que vale é política: os suecos sinalizaram mais dureza com a oposição curda
exilada no país ao condenar um ativista nesta semana, justamente o que o
presidente Recep Tayyip Erdogan espera. Os húngaros jogam no ritmo de Ancara
neste jogo.
Tudo
indica que as divergências serão resolvidas, especialmente se os EUA aceitarem
vender mais material militar para os turcos.
Erdogan,
aliás, irá receber ainda nesta sexta Zelenski, que passou pela Bulgária,
Eslováquia e República Tcheca desde quinta (6), visando aumentar o apoio à sua
demanda por mais material bélico para a contraofensiva que ele mesmo diz estar
abaixo do ritmo esperado.
Fonte:
FolhaPress
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