Megafundos financeiros: Abrimos a caixa-preta
A
quem o mundo pertence? Nos últimos anos, um tipo de ator financeiro despontou
como resposta a esta questão: as empresas de administração de ativos.
As
“administradoras de ativos” supervisionam dezenas de trilhões de dólares em
investimentos em ativos em todo o mundo. As empresas mais conhecidas são as “Três Grandes”: BlackRock,
Vanguard e State Street Global Advisors. Seu modelo de negócios baseia-se em
grande parte nos chamados fundos de índice “passivos”, cujos investimentos em
ações tornam essas empresas os principais acionistas de milhares de
corporações. Mas as administradoras de ativos não possuem apenas instrumentos
financeiros como ações e títulos da dívida de empresas e Estados. Elas são cada
vez mais as proprietárias diretas dos ativos “reais ” que
moldam nossos meios de subsistência. De casas a hospitais, redes de água a
parques eólicos – as empresas de administração de ativos [asset management
firms, em inglês] com nomes como Blackstone, Brookfield e Macquarie
estão devorando as estruturas básicas das quais todos dependemos para existir.
E com o objetivo de extrair grandes lucros da forma mais implacável e rápida
possível, essa nova sociedade não é um bom presságio para a humanidade.
Este
é o tema do novo livro de Brett Christophers, Our Lives in Their Portfolios: Why
Asset Managers Own the World [“Nossas vidas em seus portfólios:
Por que as administradoras de ativos governam o mundo”, em tradução
aproximada], publicado pela Verso press. Christophers abre a cortina de um
setor notoriamente opaco e o desmistifica, examinando clara e minuciosamente o
que é, as forças que o impulsionam a extrair lucro impiedosamente e o que tudo
isso significa para o nosso futuro coletivo.
Christophers
é professor do departamento de Geografia Social e Econômica da Universidade de
Uppsala, na Suécia. Ele é o autor ou coautor de cinco livros anteriores,
incluindo Rentier Capitalism: Who Owns the
Economy, and Who Pays for It? Nesta entrevista exclusiva a Truthout,
Christophers discute o que as administradoras de ativos fazem, como são
programadas para ampliar agressivamente os lucros, como capturam cada vez mais
“ativos reais” como habitação e infraestrutura de energia, e o que podemos
fazer a respeito.
LEIA
A ENTREVISTA:
·
Embora as administradoras de ativos tenham
muito poder em nossa sociedade, muitas pessoas não sabem o que são, como operam
e por que são tão poderosos. Você pode nos propor um breve resumo?
Brett
Christophers :
Na realidade, é um negócio simples. Administradoras de ativos são empresas que
investem em nome de terceiros. Eles captam dinheiro de investidores finais, —
tanto indivíduos ricos quanto investidores institucionais, como planos de
aposentadoria privados e seguradoras. As administradoras de ativos realizam
seus investimentos e esses investidores pagam taxas por esse serviço.
Isso
é basicamente o que as administradoras de ativos fazem: investem o dinheiro dos
outros e ganham comissões por isso. Elas podem investir em muitas coisas
diferentes, como ativos financeiros (ações, títulos, ou outros) – qualquer
coisa, na verdade.
Elas
deixaram de ser atores marginais na economia há algumas décadas, para
serem muito significativas hoje. A forma tradicional de medir
seu tamanho ou importância é a quantidade de capital que administram. Na década
de 1970, era menos de um trilhão de dólares globalmente. Hoje, esse número é da
ordem de US$ 100 trilhões — mais que o PIB de
todo o planeta.
Ou
seja: elas passaram de nada, essencialmente, a extremamente grandes, em um
espaço de tempo relativamente curto.
·
Qual é o papel dos “fundos” no negócio
de administração de ativos?
Se
você é um administrador de ativos que reúne capital de clientes, precisa de um
veículo que lhe permita amealhar estes recursos e investi-los. O fundo de
investimento é o principal veículo utilizado para isso. Esses fundos vêm em
diferentes formas e tamanhos – fundos de riqueza privada [private equity],
fundos de índice, fundos mútuos – mas são todos criações da indústria de
administração de ativos.
Quando
você lê que, digamos, a BlackRock comprou este ou aquele ativo, é uma forma
abreviada de dizer que um fundo de investimento administrado pela BlackRock
comprou o ativo. Na verdade, isso significa que os verdadeiros proprietários do
ativo não são os gestores de ativos, mas as diferentes entidades – e pode haver
centenas delas – que destinaram dinheiro a esse fundo de investimento. A
BlackRock pode colocar uma pequena quantia de seu próprio capital em seus
fundos – normalmente, cerca de 2% — mas a maior parte do capital do fundo é de
fundos privados de aposentadoria, seguradoras e indivíduos de alto patrimônio
líquido.
O
fundo está no cerne do setor porque é o veículo por meio do qual os
administradores de ativos fazem o que fazem. É por isso que eles costumam ser
chamados de “gerentes de fundos”.
·
Administradoras de ativos
como a BlackRock e Vanguard recebem muita atenção. Têm
participações acionárias significativas em milhares de empresas. Mas
você quer colocar o foco em administradoras que controlam
diretamente “ativos reais”, como residências, serviços públicos e hospitais.
Por que achou importante fazer essa distinção em sua análise?
As
administradoras de ativos convencionais investem principalmente em ações de
empresas de capital aberto, como as da Apple e Google, e títulos de dívida
emitidos por essas empresas e por governos. Normalmente, fazem isso por meio
dos chamados “fundos de índice” que replicam o
desempenho dos principais índices do mercado, como o S&P 500.
Há
uma boa razão pela qual as administradoras de ativos convencionais estão no
foco. É aí que a ocorre a maior parte do investimento, em termos de números
absolutos. Se você olhar o registro de acionistas de qualquer grande empresa
listada nos Estados Unidos, verá os BlackRocks e os Vanguards.
Eu
mudo o foco por alguns motivos. Por um lado, gestores de ativos convencionais
como BlackRock e Vanguard já receberam muita atenção como proprietários de
corporações capitalistas contemporâneas. Mas também argumento que seu
significado é superestimado. Argumenta-se que, como essas empresas possuem 7%
ou 8% de todas as grandes empresas, elas de alguma forma controlam a economia
global. Não acho que tenham esse tipo de controle, nem mesmo que o desejem.
Esse não é seu modelo de negócios.
Argumento
que há toda uma outra área de gerenciamento de ativos, muito mais
diretamente relevante para a vida cotidiana das pessoas: a propriedade e
controle, pelos administradores de fundos, de “ativos reais” dos quais
dependemos fundamentalmente — como habitação e infraestrutura: redes elétricas,
sistemas de estacionamento em centros urbanos, estradas com pedágio, hospitais,
escolas, terras agrícolas e assim por diante.
Na
medida em que os gestores de ativos são proprietários de moradias e
infraestruturas das quais dependemos, e que determinam quanto custa para nós
morarmos naquela moradia e usarmos essa infraestrutura, eles também determinam
as condições em que esses ativos existem e têm um enorme impacto sobre
nossas vidas diárias. É algo que tem sido muito pouco abordado e debatido.
·
Às vezes, você usa palavras como “extrativo” e
“colonizador” para descrever a relação entre os gestores de ativos e os ativos
reais que eles controlam. Você pode elaborar?
Embora
todos os proprietários privados tentem obter lucro, os administradores de
ativos tendem a ser particularmente implacáveis e obstinados
em ganhar com os ativos que supervisionam.
Há
várias razões estruturais para isso. Uma delas são os altíssimos salários
nessas empresas. Um artigo no Financial Times relatou que o
salário médio na Blackstone agora é de cerca de US$ 2 milhões anuais. Não é
possível pagar esse tipo de salário, a menos que você seja bastante implacável
em extrair lucros dos ativos que possui. Você não pode ser um proprietário que
oferece descontos no aluguel aos inquilinos e paga US$ 2 milhões para seus
diretores.
Da
mesma forma, os fundos de investimento administrados por gestores de ativos
reais cobram taxas muito altas, em comparação com os fundos de
índice. A norma do setor é cobrar dos investidores uma taxa de administração de
2% ao ano e uma taxa de desempenho de 20%. Isso só é possível quando se promete
aos investidores retornos muito altos. E você só pode entregar esses altos
retornos se for muito implacável e focado em extrair lucro. Como gerente de
ativos, você é compelido pela natureza do seu negócio a ser implacável.
Outro
fator importante são os horizontes de tempo de curto prazo envolvidos na gestão
de ativos reais. Os gestores de ativos afirmam ser guardiões comprometidos e
cuidadosos de habitação e infraestrutura. Mas, na realidade, seus investimentos
em ativos reais são realizados principalmente por meio de fundos “fechados” que
têm uma vida fixa – digamos, 10 anos. Isso significa que — e esta é uma das
coisas mais importantes a entender sobre todo o setor de gestão de ativos —
quando os gestores de ativos compram casas e infraestrutura, quase sempre os
compram com a intenção de vendê-los dentro de sete ou oito anos – ou mesmo
dois ou três anos, se puderem obter um grande lucro.
Em
outras palavras, assim que um gestor de ativos investe em um ativo habitacional
ou de infraestrutura, a primeira coisa em sua mente é: “Como podemos maximizar
o preço de venda o mais rápido possível?” Se estamos falando sobre habitação,
isso significa aumentar os aluguéis o mais rápido e o mais alto possível.
Significa minimizar os custos operacionais relacionados a investir dinheiro e
ser um bom proprietário, e aderir a soluções Band Aid para manutenção.
·
Você pode dizer mais sobre como a necessidade humana
básica de habitação caiu sob o domínio dos gestores de ativos e as implicações
disso?
No
início da década de 1990, os gestores de ativos começaram a comprar
significativamente nos mercados imobiliários globais, mas isso aumentou após a
crise financeira de 2008. De repente, você tinha enormes estoques de “moradias
problemáticas” por causa de execuções hipotecárias maciças, especialmente nos
Estados Unidos. Muitas casas ficaram rapidamente disponíveis e muito baratas.
Vergonhosamente, o governo dos Estados Unidos permitiu que grandes gestores de
ativos comprassem grandes quantidades de imóveis em condições muito favoráveis.
Desde
então, o investimento das administradoras de ativos em habitação cresceu cada
vez mais. Não surpreende que os aluguéis subam tanto, nos Estados Unidos e
internacionalmente. Não há casas suficientes sendo construídas em muitos
lugares, os aluguéis estão subindo, e isso é algo em que os gestores de ativos
querem investir. Os governos não impediram que as administradoras comprassem
uma imensa quantidade de moradias. Na verdade, eles as encorajaram.
As
implicações foram muito negativas. Por um lado, o rápido aumento dos aluguéis
em moradias que ficaram sob o controle das administradoras de ativos. Por outro
lado, resultados deletérios em outros aspectos da habitação além do aluguel,
como despejos. Se você observar os índices de despejo em uma determinada região
metropolitana e comparar as moradias alugadas pertencentes a administradoras de
ativos com as habitações pertencentes a outros tipos de proprietários, verá que
os índices de despejo tendem a ser substancialmente mais altas quando os proprietários
são gestores de ativos.
·
Você aponta como os gerentes de ativos
capturaram grande parte de nossa infraestrutura. E é provocativo ao dizer
que “a transição dos combustíveis fósseis para os renováveis também representa
uma transição para a sociedade de administração de ativos”. Você pode
elaborar essa afirmação?
Uma
coisa que quase nunca se fala em relação à transição energética é o que isso
significa em termos de propriedade. A infraestrutura de energia baseada em
combustíveis fósseis foi, em todo o mundo mais ou menos dividida entre o setor
público e o setor privado. Empresas estatais são grandes proprietárias de
reservas de combustíveis fósseis. Mas, no Ocidente, o Estado está ausente das
instalações de energia limpa. É algo que ficou, em sua maior parte, nas mãos do
setor privado.
Por
isso, à medida que fazemos a transição da energia fóssil para a verde, estamos
migrando, nas condições atuais, para um tipo de infraestrutura
predominantemente de propriedade privada. Isso não deveria ser surpreendente. A
propriedade privada tornou-se o padrão para a governança neoliberal nos últimos
30 ou 40 anos, quando a transição para a energia verde começou.
Em
todo o mundo, usando várias formas de incentivos, os governos contam com o
setor privado para construir infraestruturas de energia verde. E onde, no setor
privado, está a maior parte do capital para investimento? É mantido por
administradoras de ativos. Elas têm o maior capital disponível para realizar
esse investimento.
Por
exemplo, a Brookfield Asset Management, sobre a qual escrevo, é uma das maiores proprietárias de ativos de
energia limpa de qualquer tipo. Se for aos bosques da Suécia, onde moro, e vir
um parque eólico, são muito altas as chances de que a BlackRock seja a
proprietária.
Assim,
à medida em que fazemos a transição de combustíveis fósseis para energia limpa,
também estamos cada vez mais transitando para o que chamo de “sociedade gestora
de ativos”. E precisamos ter muito cuidado com isso. Quando as administradoras
de ativos são proprietárias da infraestrutura, os resultados geralmente não são
bons para a sociedade.
Além
disso, ao contar com o setor privado em geral e com os gestores de ativos em
particular para conduzir a transição energética, estamos de fato contando
com o contínuo subsídio do Estado a esses investimentos. As administradoras de
ativos são avessas ao risco. Quando se trata de energia limpa, eles esperam que
os Estados reduzam o risco desses investimentos com subsídios
— exatamente como, por exemplo, o governo Biden fez, nos EUA, por meio da Lei
de Redução da Inflação. Ao vincular as sociedades a subsídios de longo prazo à
energia limpa de propriedade das administradoras de ativos, o setor público
está assumindo grande parte do risco sem nenhuma recompensa.
·
A empresa de administração de ativos mais
conhecida atualmente pode ser o Blackstone Group, que você discute em seu
livro. Como a Blackstone incorpora os principais recursos da sociedade de
gestão de ativos?
A
Blackstone tornou-se um para-raios para uma crítica mais ampla aos gestores de
ativos. Pode ser por causa dos personagens envolvidos. Stephen Schwarzman, que
cofundou a Blackstone em 1985 e é seu CEO desde então, é um indivíduo de alto
perfil e pitoresco. Era um defensor declarado de Donald Trump, o
que atraiu muita atenção para ele. Sempre que os políticos nos Estados Unidos
tentam controlar o setor de gestão de ativos, ele revida com muita
agressividade.
É
também o tamanho de Blackstone. É o maior proprietário mundial de imóveis.
Tornou-se a maior proprietária de residências
unifamiliares nos Estados Unidos. Mas embora seja muito importante, ela não
está fazendo nada fundamentalmente diferente de outras administradoras de
ativos. Todas adotam o mesmo tipo de modelos. A Blackstone consegue levantar
mais capital de investidores, mas não está conduzindo seus negócios de maneira
fundamentalmente diferente.
·
A sociedade de administração de ativos
representa, para você, uma forma fundamentalmente nova de capitalismo?
Não
acho que o papel mais proeminente dos gestores de ativos represente uma
nova forma de capitalismo. No entanto, acredito que é a
principal manifestação da dimensão rentista do o capitalismo
contemporâneo.
Sempre
houve um aspecto do capitalismo que trata controlar, de modo monopolista, os
recursos ou ativos essenciais — e ganhar renta por meio desse
controle. Nas últimas décadas, entramos em uma etapa do capitalismo em que
esse aspecto rentista é particularmente
proeminente, e onde os rentistas acumularam muito mais poder e
lucro que anteriormente. A política neoliberal criou as condições para um
ressurgimento do rentista , e as administradoras de ativos são
uma personificação primária dessa re-rentização do capitalismo.
·
Você apresenta um caso convincente sobre o poder e o alcance das
administradoras de ativos sobre nossas vidas e como elas são estruturadas
para hiperexplorar trabalhadores e inquilinos. O que deve ser feito para
desafiar seu poder?
Acho
que as administradoras de ativos estão pouco vulneráveis no momento. Parte de
sua força vem do fato de serem praticamente invisíveis para a maior parte das
pessoas. E conseguiram enganar com sucesso muitos formuladores de políticas. De
alguma forma, persuadiram os governos de que são guardiões decentes dos ativos
que controlam e também estão ajudando os aposentados comuns a obter bons
retornos de suas economias para a aposentadoria.
Mas
elas têm uma vulnerabilidade. Muitas pesquisas mostram que
os tipos de gestores de ativos que examino em meu livro não fornecem
retornos particularmente fortes. Quando deduzidas as taxas que cobram, elas não
estão entregando retornos muito melhores, em média, do que um fundo de índice
básico. E os casos de falência catastrófica são comuns.
Há
algo a fazer? Claro. Você pode simplesmente impedi- los de
possuir certos tipos de coisas. Não há nada que impeça os governos de dizerem
que certos tipos de ativos simplesmente não deveriam pertencer a certos tipos
de atores, como gestores de ativos. Você poderia proibi-lo e isso seria
provavelmente bastante popular.
Você
também pode tornar ativos reais pouco atraentes para investir. Por exemplo, a
Blackstone começou a comprar muitas casas em Berlim em 2017, mas o governo
local introduziu uma nova regulamentação que limitou a capacidade dos
proprietários de aumentar os aluguéis e até forçou uma redução. A Blackstone
disse imediatamente: “Ok, não estamos mais investindo em moradias em Berlim”. É
possível pode fazer coisas assim. Infelizmente, cerca de um ano depois, a lei
de aluguel de Berlim foi anulada , mas o fato de a
Blackstone ter dito que não iria mais investir mostra que você pode aprovar
medidas para tornar esses ativos pouco atraentes.
Fonte:
Por Brett Christophers em entrevista a Derek Seidman, no Truthout | Tradução:
Antonio Martins, para Outras Palavras
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