Há
50 anos, o Brasil foi capturado pela mais longa, mais cruel e mais tacanha
ditadura de sua história.
Meio
século é mais que suficiente tanto para aprendermos quanto para esquecermos
muitas coisas.
É
preciso escolher de que lado estamos diante dessas duas opções.
1ª.
LIÇÃO: AQUELA FOI A PIOR DE TODAS AS DITADURAS
No
período republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da
de 1964, a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de
"Estado Novo".
A
ditadura de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em
1964 durou 21 anos.
Vargas
e seu regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na
escala do que ocorreu a partir de 1964.
Os
torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e
em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto
"Brasil, nunca mais" ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.
Em
qualquer aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.
2ª.
lição: QUALIFICAR A DITADURA SÓ COMO “MILITAR” ESCAMOTEIA O PAPEL DOS CIVIS
Foram
os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o
aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda.
Mas
a ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda
externa do governo Kennedy.
O
golpismo não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de
imprensa agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados
contra Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas
que os militares.
Sem
os civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto
militar. Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus
empresários prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.
3ª.
LIÇÃO: NÃO HOUVE REVOLUÇÃO, E SIM REAÇÃO, GOLPE E DITADURA
Ernesto
Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e
confidente, Elio Gaspari, em 1981:
"O
que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia,
em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar
João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a
subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a
corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo
destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".
Quase
ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção
de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda
dormem de botinas, e alguns desavisados, como o presidenciável Aécio
Neves, que recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi
durante o 57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013).
Questionado
depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos:
“Ditadura, revolução, como quiserem”.
A
ditadura foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta
de reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.
4ª.
LIÇÃO: A CORRUPÇÃO PROSPEROU MUITO NA DITADURA
Ditaduras
são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo,
pela ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem
tudo.
A
ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a
Caixa de Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o
paraíso do superfaturamento.
Também
ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf,
aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.
5ª.
LIÇÃO: A DITADURA ACABOU, MAS AINDA TEM MUITO ENTULHO AUTORITÁRIO POR AÍ
O
Brasil ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela
ditadura.
A
Polícia Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança
Nacional (LSN) duas pessoas presas durante protestos.
A
tortura ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo.
Os
corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura -
deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional,
que apoiava o regime).
6ª.
LIÇÃO: BANALIZAR A DITADURA É ACENDER UMA VELA EM SUA HOMENAGEM
Há
duas formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura
assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente.
O
primeiro caso tem seu pior exemplo no uso do termo "ditabranda" no
editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009.
Para
a Folha de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi uma branda
(“ditabranda”), se comparada à da Argentina e à chilena.
A
ditadura brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca
foi “branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação
Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e
torturados.
Como
disse a cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de
chamar de brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?
A
outra maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não
reconhecer as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns,
qualquer coisa agora parece ditadura.
A
proposta de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime
dos “comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais
dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a
prisão perpétua e a pena de morte.
O
diplomata brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina
para o Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura.
Para
se parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar
aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de
cadeira elétrica), palmatória etc.
Banalizar
a ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.
7ª.
LIÇÃO: JÁ PASSOU DA HORA DE PARAR COM AS HOMENAGENS OFICIAIS DE COMEMORAÇÃO DO
GOLPE
Por
muitos e muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de
março em comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964.
A
provocação oficial, em plena democracia, levou um cala-a-boca em 2011, primeiro
ano da presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da
Verdade.
A
referência ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração
do golpe fosse o 1º. de abril – Dia da Mentira.
A
justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da
4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção
ao Rio de Janeiro.
Se
é assim, a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de
agosto, que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se
deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
A
palavra golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder.
No dia 1º. de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a
retornar para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois,
exilou-se no Uruguai mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja
para a capital um dia depois do golpe?
O
Almanaque da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação:
“31.mar.64
— O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”.
Entende-se. Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.
O
que continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado
pelo Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a
seguinte frase:
“Em
31 de março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de
Fora, Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de
Janeiro. A despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart
reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”.
De
novo, o conto da Carochinha do 31 de março.
Ainda
mais incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na
lista dos presidentes da República.
A
lista (errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como
informação sobre os presidentes do Brasil.
Nem
os membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava seus
atos riscando a expressão “Presidente da República”.
No
caso da junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato
Institucional nº. 12 (AI-12) "dava posse à junta militar" composta
pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ledo engano.
O
AI-12, textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e
da Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República,
Marechal Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”.
Oficialmente, o presidente continuava sendo Costa e Silva.
Há
outro problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da
matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço
ao mesmo tempo – que dirá três corpos.
Não
há como três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da
República. Que república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo?
O
que os membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente,
ou seja, tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo
oficialmente vago, quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se
irreversível.
Os
três comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um
capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente
satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.
Que
história, afinal, estamos contando?
Uma
história que ainda não faz sentido.
Uma
história cujas lições ainda nos resta aprender.
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