Israel
faz de Gaza sua demontração ao ar livre de tecnologia de guerra, diz ativista e
jurista palestina
Gaza virou um campo de demonstração ao ar livre
de tecnologias de guerra de Israel, que podem ser vendidas para outros regimes
repressivos após serem testadas em palestinos. A avaliação é da palestina Rula
Shadeed, jurista em Direito Penal Internacional e co-diretora do Instituto Palestino
de Diplomacia Pública,
o PIPD.
Ela conversou com o Intercept Brasil em São
Paulo. A visita ao Brasil é parte de uma viagem ao redor do mundo para discutir
estratégias de ação e estabelecer conversas com movimentos sociais.
O genocídio em Gaza, iniciado após o 7 de outubro de
2023, permitiu a Israel acelerar o desenvolvimento e teste de diversas
tecnologias de guerra, de armamentos a sistemas de inteligência artificial.
Quando aperfeiçoadas, essas tecnologias podem ser usadas por Israel como moeda
de troca para garantir o apoio institucional de países, explicou Shadeed.
O uso de tecnologias de reconhecimento facial para
operar metralhadoras e definir alvos de ações militares contribuiu para a
escala de devastação da ação israelense em Gaza, que já deixou
mais de 45 mil mortos. Ao Intercept, a jurista disse que não ficaria surpresa
de ver essas mesmas tecnologias sendo vendidas e adquiridas por países ao redor
do mundo muito em breve.
Por outro lado, Shadeed diz que as redes sociais
desempenham um papel crucial ao permitir que o genocídio seja “transmitido ao
vivo”. Sua avaliação é de que as ações poderiam ser piores sem essa conexão com
o restante do mundo, ao mesmo tempo que se questiona sobre o que não aparece.
“Se Israel não liga que o mundo todo esteja assistindo a eles queimarem
crianças, então quais são as coisas que nós não sabemos sobre? Que são, aliás,
muito maiores e profundas.”
<><> Leia a entrevista na íntegra:
·
Como você enxerga o papel da tecnologia em
Gaza, tanto positivo quanto negativo?
Rula Shadeed –
Interessante que você me pergunte sobre o lado positivo, porque eu não tenho
pensado sobre o lado positivo. A tecnologia está sendo usada como uma
ferramenta de guerra.Sabemos que Israel é um dos países pioneiros em
desenvolver tecnologias ligadas a guerras cibernéticas, inteligência,
vigilância, identificação facial, imagens de satélite para fins de espionagem e
vigilância.
Nós definimos o povo palestino como sendo um povo sob
constante operações experimentais pela colonização de Israel e seu aparato na
Palestina, seja em Gaza, Jerusalém, Cisjordânia ou em qualquer outra cidade.
Então, temos que pensar na tecnologia como esse tipo de grande ferramenta e,
dependendo de onde e como você usa, ela produz resultados.
Se falarmos dos efeitos negativos , porque Israel é um
dos maiores exportadores de tecnologia de vigilância e reconhecimento facial,
isso ajuda a prover inteligência sobre pessoas, políticos e jornalistas.
Você provavelmente ouviu falar das tecnologias de
spyware como Pegasus. Essa é só uma de muitas tecnologias de spyware que Israel
desenvolveu. São principalmente empresas privadas, mas essas empresas são
apoiadas por governos, e a venda e uso dessas tecnologias não é autorizada sem
aval do Ministério de Guerra ou do que eles chamam de Ministério da
Defesa.
O Pegasus é uma tecnologia spyware zero-clique. Isso
significa que você não precisa interagir ou engajar com nada que você receber
no seu dispositivo. Seja um telefone celular ou computador, ele simplesmente
infiltra o seu dispositivo. O que ele faz, basicamente, é operar no seu
telefone exatamente como a pessoa que possui o telefone. Então, eles conseguem
infiltrar cada aplicativo e falsificar registros de acesso. É muito importante
saber que essas tecnologias foram definitivamente usadas. Mas, primeiro, elas
foram desenvolvidas através do uso em palestinos e testes para uso.
Assim que as tecnologias avançam o suficiente e
continuam se desenvolvendo , eles as usam para manipular alguns países em troca
de seu apoio ou para criar aliados e relacionamentos com outros estados. Isso
se dá falando: ‘podemos oferecer essas tecnologias de spyware, de inteligência
e coleta de dados, ilegal ou legal e, em troca, queremos seu apoio, seus
votos’. Talvez em outros países eles queiram entrar na agricultura, em outros
tipos de investimentos.
·
E no que diz respeito a armas?
Israel assina acordos de inovação com os Estados Unidos
porque eles recebem um apoio enorme do país. Mas com a União Europeia eles
também têm um acordo de associação [um acordo de 2000 rege as relações
comerciais entre Israel e países da UE]. ,
Isso seria somente entre países europeus, mas já que há
uma relação com Israel, eles têm permissão para entrar como licitantes em
muitos acordos. O Acordo de Associação Israel-UE vale 1 bilhão
de euros.
Esses acordos envolvem principalmente inovação e
desenvolver tecnologias que são ligadas a armamento, spyware, vigilância e
imagens de satélite.
É tão conectado com regimes repressivos ao redor do
mundo porque esses grupos, ou autoridades e governos, querem ter todas as
ferramentas e meios possíveis para colher inteligência e espionar seus
oponentes, ameaçar ativistas de direitos humanos, jornalistas, por meio
da coleta de informações.
Desde o começo do genocídio, a quantidade de acordos
que Israel fez e vendeu é inacreditável. A última vez que chequei, há seis
meses, os acordos eram equivalentes a 27 bilhões de dólares para os próximos
dez anos, porque nessa guerra genocida em Gaza eles conseguiram usar armas que
nunca tinham usado antes.
Então, no minuto em que alguns tipos de armas foram
usados, outros países estavam observando como se fosse uma demonstração ao
vivo. É, literalmente, uma demonstração ao vivo. Eles veem essa nova arma, como
ela funciona. Esse é o dano, ou, para eles, talvez o sucesso. Então, querem ter
um contrato com Israel para desenvolver e fabricar essas armas por um período
de 10, 20 anos.
E tudo isso a custo de humanos, de civis, crianças,
mulheres, idosos, todo mundo. É muito importante saber que, infelizmente, a
tecnologia é um monstro que só cresce, alimentado por essas guerras.
·
E um outro aspecto dessa guerra tecnológica
são os apagões de telecomunicações em Gaza.
No início de outubro de 2023, Israel decidiu cortar as telecomunicações dos palestinos,
deixando eles totalmente no escuro. E por estarmos sob ocupação, cada um dos
recursos que temos, incluindo eletricidade, água, internet e combustível, está
na mão dos israelenses. Então, eles podem literalmente cortar tudo e apagar
tudo com um botão.
Nós demos um jeito através de diferentes grupos na
região. Conseguimos dar a pessoas em Gaza diferentes chips de telefone do Egito
e da Jordânia para apoiar as pessoas no acesso [à internet].
Também houve uma grande quantidade de eSims que as
pessoas compraram e começaram a enviar para lá. Então, as pessoas deram um
jeito de alguma maneira. Eu não sei o que a vida diária é para as pessoas hoje,
porque é diferente de região para região, mas a situação está claramente
piorando.
A manipulação e o monopólio no desenvolvimento da
comunicação são outra tecnologia. É o que vemos agora com Elon Musk, que está
se tornando o presidente dos Estados Unidos, apoiando e investindo tanto no
espaço e na tecnologia ao redor disso.
·
E o uso de inteligência artificial?
Claro, o uso de IA é outro monstro assustador. Você
deve ter ouvido falar do BlueWolf, que é
basicamente uma IA que opera metralhadoras.
Em Hebron, uma das maiores cidades da Palestina e a
maior da Cisjordânia, nós temos metralhadoras instaladas nos checkpoints. Temos
muitos checkpoints na cidade, especialmente na parte da cidade velha, que é
exatamente ao lado da mesquita Ibrahimi. Quando você cruza esses checkpoints,
além das grades e de tudo, eles instalaram no topo dos checkpoints essa
metralhadora desenhada para atirar automaticamente, sem ação humana.
E essas metralhadoras estão em vários lugares
diferentes agora. Nós vivemos literalmente em uma distopia, isso é além da
imaginação. E são programas que atiram com um certo sensor. Não sabemos que
tipo de programa opera, quais dados alimentaram. Não sabemos o que dispararia essa
metralhadora.
Em Gaza, houve muitas notícias sobre o uso de IA e isso
também é um dos fatores pelo qual houve tantas mortes civis. Porque agora são
usados mísseis, foguetes e metralhadoras operados por IA. Teve uma grande reportagem sobre como a
palavra-gatilho é ‘papai’. Então, se alguém falar ‘pai’ em árabe, o míssil é
disparado. Isso porque eles pensavam que crianças chamariam seus pais de uma
maneira específica quando eles retornassem para casa, então, eles saberiam que
há homens na casa e atirariam.
O que estamos vendo hoje no genocídio que está
acontecendo em Gaza é uma gigantesca guerra automatizada contra civis e, de
novo, isso é um teste. Eu não ficaria surpresa se todo esse armamento fosse
comprado muito em breve, se é que ainda não foi comprado, por muitos países que
sonham com isso. Que sonham em ter que enviar menos humanos para esses espaços
[em conflito].
·
Você acredita que o ritmo com que essas
tecnologias vêm sendo testadas aumentou desde 7 de outubro?
Sim, por conta da escala. Várias dessas armas são
muito, muito perigosas. A quantidade de bombas que foram derrubadas sobre Gaza
é equivalente a três bombas atômicas – e, na verdade, essa informação está
desatualizada, é de junho.
Eles não precisam mais explodir uma bomba nuclear. Eles
já fizeram isso. Então, sim, houve uma aceleração no uso de todas essas
tecnologias terríveis que são utilizadas em armamentos, especificamente.
Também tem o Domo de Ferro israelense, que eles chamam
de domo de proteção. Eles venderam para muitos países, porque um dos níveis não
havia disparado o gatilho antes dessa guerra genocida por conta da distância de
onde os mísseis vêm. No momento em que esse gatilho disparou, a 300 quilômetros
de distância, esse nível foi testado e funcionou.
O mais importante é que a carta branca que Israel tem
hoje é a razão pela qual eles puderam experimentar esse tanto e transformar
Gaza e a região em uma demonstração de armas ao ar livre . É literalmente isso.
Eles definitivamente conseguiram fazer, no período de um ano, coisas que antes
eles não conseguiriam fazer em 10 anos, no que diz respeito a
experimentações.
·
E você consegue ver um lado positivo do uso
da tecnologia em Gaza?
Uma das coisas mais importantes são as redes sociais e
a comunicação. Eu acho que se isso tivesse acontecido antes da existência das
redes sociais, ninguém saberia de nada. Não para dizer que, agora que todos
sabem, está parando. E é isso que nos importa. Nós medimos que o melhor
resultado é que tudo isso pare, Israel seja responsabilizado e nós acabemos com
a colonização. Mas é possível dizer que poderia ter sido pior? Não sabemos.
Seria diferente se não estivesse sendo transmitido ao vivo? Não sabemos.
Provavelmente, sim.
Porque, em 1948, quando a Nakba aconteceu, eles
conseguiram limpar e deslocar etnicamente quase 75% de toda a população
palestina em quatro semanas. Então, eu realmente não sei. Mas o positivo é que,
através da informação, de ter pessoas assistindo ao genocídio ao vivo, nós
conseguimos trazer de volta a Palestina. Na verdade, eles conseguiram, com sua
brutalidade e violência.
A Palestina está se tornando mais e mais conhecida
agora. As pessoas começaram a entender que isso é uma colonização, que isso não
começou em 7 de outubro. Que as pessoas morando ali têm lutado por sua
libertação há 76 anos, que eles estão sendo brutalmente atacados e oprimidos e
sistematicamente assassinados há muitos anos. E, agora, as pessoas assumem que
se isso está acontecendo ao vivo, quais são as coisas que nós não sabemos.
Se Israel não liga que o mundo todo esteja assistindo a
eles queimarem crianças, então quais são as coisas que nós não sabemos sobre?
Que são, aliás, muito maiores e profundas.
A outra coisa positiva é a interseccionalidade com
outras causas. Isso é algo que a tecnologia agora nos permitiu explorar e
cimentar. Nós estamos, através dessas diferentes comunicações e mídias, nos
aproximando de outras lutas e de entender como os regimes opressivos aprendem
uns com os outros e como praticam as mesmas opressões sistemáticas contra seu
próprio povo, contra indígenas e pessoas de cor.
Isso, somado ao fato de que, com a IA e outras
ferramentas, nós somos capazes de chegar à informação de maneira mais rápida,
somos capazes de pesquisar em fontes abertas, fazer análises, entender a cadeia
de produção e seguir o dinheiro para entender porque essas coisas estão
acontecendo.
Também conseguimos pressionar por uma mudança na narrativa,
no ângulo da narrativa sobre a Palestina e sobre o que o povo palestino está
enfrentando.Quando a narrativa começa a mudar, é aí que as pessoas entendem o
diagnóstico real e que a única solução é a libertação e acabar com a
colonização da Palestina.
Isso dá muita esperança. Espero que abra os olhos das
pessoas que também têm muito medo dos Estados Unidos e de suas políticas ao
redor do mundo e de sua dominância. Porque, se os palestinos conseguem fazer
com tão poucos recursos, vocês também conseguem como países nessa região. E
muitos dos países sul-americanos estão sob a sombra dos Estados Unidos. As
pessoas aqui, governos, parlamentares, têm medo.
Quando o Lula falou que era um genocídio, o Blinken
[secretário de estado dos EUA] chegou aqui no dia seguinte. Então, até quando
vamos abrir mão da nossa soberania para os Estados Unidos? Eu acredito que
estamos vendo uma mudança no sistema. O que está acontecendo na Palestina está
nos permitindo ver e pensar: ‘espera, esse sistema não está funcionando’. O
framework dos direitos humanos está morto, e o sistema que eles estão
construindo desde a Segunda Guerra Mundial falhou e não está funcionando,
então, há uma oportunidade de criarmos um novo que seja representativo das
pessoas de cor, da maioria global, porque nós somos a maioria e a maioria que
sofre bullying há tantos anos.
É importante pensar sobre a hegemonia das redes sociais
e o racismo anti-palestino que está crescendo de maneira sem precedentes
também. Pessoas que curtiram um post específico podem ser responsabilizadas por
isso como apoiadoras de terrorismo ou antissemitas. E isso é outra ferramenta
de intimidação e difamação contra pessoas que querem ser parte dessa luta maior
por um mundo com mais liberdades para humanos.
·
Como nós saímos deste lugar onde as pessoas
estão, através das redes sociais, conhecendo a verdadeira face desse genocídio,
para um lugar em que essas pessoas tomem ações e se tornem aliados dessa
luta?
Nós temos visto ótimas ações em muitos lugares,
especialmente em relação ao embargo de energia. Conseguimos mobilizar pessoas
para impedir navios de atracarem, conseguimos trazer pessoas para trabalharem
em campanhas ligadas a boicotes de produtos, conseguimos ver parlamentos
tomando decisões para impor sanções contra Israel, vimos acampamentos nas
universidades, vimos uma conscientização enorme, que é algo que nós
definitivamente precisamos. Nós precisamos de conscientização para construir o
próximo passo que queremos.
Aqui no Brasil, os movimentos que mais importam, que
são o negro e o indígena, mostraram um apetite enorme para trabalhar junto em
muitas coisas diferentes. Eu encontrei o movimento negro no Rio e em São Paulo,
as Mães de Maio, nós participamos do funeral de Ryan em Santos, e a Palestina
esteve presente em tudo isso. O MST fez um tribunal popular no Rio, eu visitei
diversas favelas, fui ao Instituto Marielle Franco, conheci sobre sua luta e
seu assassinato.
Todos esses grupos querem fazer coisas. Então, é
importante que eles estejam conectados às pessoas certas para saber o que
precisa ser feito. É importante que eles comuniquem e tentem contatar
organizações palestinas que estejam na Palestina para que saibam mais sobre as
campanhas atuais e sobre como eles podem atuar.
Uma das coisas tristes que eu vi aqui é que boicotes
não pegaram. Eu fico pensando porque esse é um dos passos mais fáceis. As
pessoas não entendem como é perigoso continuar a apoiar empresas que estão
diretamente apoiando o exército israelense em seu genocídio hoje. Acho que, se
soubessem disso, muitas pessoas parariam. Em muitos países, o Carrefour fechou,
o McDonald’s fechou, KFC e outras cadeias pararam de trabalhar. E essas listas são muito
fáceis de achar e quais são as alternativas, também.
O que precisa ser feito é a crença de cada indivíduo de
que eles podem na verdade fazer uma diferença. Eu digo da minha própria
experiência. Você não imagina quanto poder cada ser humano tem, especialmente
com as redes sociais e com essas comunicações, que são transnacionais.
Outro alerta é a fadiga genocida. É muito importante
continuar lembrando às pessoas que o genocídio hoje está ainda pior, que a
situação está pior e que não podemos simplesmente dizer ‘estamos cansados de
saber’. Porque isso pode acontecer com você um dia, e como você se sentiria
sabendo disso? E aliás, as pessoas em Gaza, no Líbano, na Cisjordânia, você não
imagina o quanto significa que você aqui no Brasil esteja escrevendo algo sobre
eles. Eles nos perguntam: as pessoas sabem sobre nós? Ou estamos sendo mortos
silenciosamente e sozinhos?
Quão triste é isso? Eu só quero ser morto e ser notado.
Há uma falha não só no sistema, mas na humanidade. O que não podemos permitir é
que todo esse custo humano tenha ocorrido em troca de algo que não seja, no
mínimo, uma mudança de sistema.
Fonte: Por Laís
Martins, em The Intercept
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