O método do ‘ogronegócio’ para frear a
reforma agrária no epicentro da luta pela terra
Palco de massacres
históricos de trabalhadores rurais sem terra, como os de Eldorado dos Carajás e
de Pau D’Arco, a região sudeste do Pará foi a mais afetada pelo desmonte das
políticas de reforma agrária empreendido pelo ex-secretário de Assuntos Fundiários
do governo de Jair Bolsonaro (PL), Luiz Antonio Nabhan Garcia, segundo
especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
A região tem pelo
menos 200 ocupações em fazendas e propriedades improdutivas ou situadas em
terras da União. Há ainda 516 projetos de assentamentos, totalizando quase 5
milhões de hectares em disputa – uma área maior que países como Holanda e Suíça
–, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Igreja
Católica.
Durante o governo
Bolsonaro, contudo, os projetos de reforma agrária foram desmantelados no Pará,
assim como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O órgão deveria ser um
instrumento de distribuição de terras e pacificação no campo, mas foi usado em
prol da “manutenção do latifúndio”, analisa o advogado José Batista Afonso, da
CPT. “O principal representante dos latifundiários passou a comandar o órgão”,
diz ele, em referência a Nabhan.
Durante os quatro anos
em que foi o responsável pela política fundiária no país, Nabhan abriu as
portas do governo para grileiros, infratores ambientais e produtores rurais que
atentaram contra a democracia, como mostra a série de reportagens “Ogronegócio:
milícia e golpismo na Amazônia”.
Foi o que se viu em
Marabá em fevereiro de 2020, quando Nabhan participou de uma audiência na
Câmara Municipal da cidade, onde se reuniu com empresários e fazendeiros
contrários à atuação de movimentos sociais na região.
Entre os presentes
estavam os irmãos Fernão e Murilo Zancaner, que ficaram conhecidos em 2007
quando a usina deles, a Pagrisa, foi alvo de uma fiscalização trabalhista que
resgatou da escravidão 1.064 trabalhadores que atuavam no plantio e colheita da
cana-de-açúcar. É o maior resgate de trabalhadores já realizado no Brasil.
“Precisamos organizar
essa bagunça que foi feita ao longo de 30 anos por outros governos que estavam
muito mais interessados em vender a Amazônia lá fora do que se preocupar com o
povo aqui dentro”, disse Fernão, que foi muito aplaudido.
Fernão é um dos
vice-presidentes da Federação da Agricultura do Estado do Pará (Faepa) e tem
como hobby participar de campeonatos de tiro esportivo. Ele fez ainda uma
visita de cortesia a Nabhan em Brasília em junho de 2022, segundo a agenda
oficial do auxiliar de Bolsonaro.
Procurada, a
assessoria de imprensa da Faepa não respondeu às perguntas enviadas para
Fernão. “Não temos informações sobre o tema solicitado”, disse. Já Nabhan disse
que não se importa com as críticas à sua gestão e diz que a opinião que vale é
a dos produtores rurais.
Sem o mesmo acesso ao
governo, o sem-terra Luis Carlos Silva Barbosa, de 57 anos, está há mais de dez
anos perambulando entre acampamentos na região de Marabá tentando conseguir um
lote. Ele estava entre os acampados que foram expulsos de forma violenta no
acampamento Hugo Chávez do MST, em 2018. Hoje, vive em uma área improvisada
cedida por outro acampamento do movimento social.
Barbosa tenta
sobreviver trabalhando para os fazendeiros da região, mas relata ter
dificuldade de conseguir trabalho quando os empregadores descobrem que ele
espera pela reforma agrária. “Quando a gente fala que é sem-terra, eles pensam
que a gente é ladrão, mas não somos. Estamos lutando por um pedaço de terra
para sustentar a família”, afirma.
• Recorde de titulação de terras no Pará
Nabhan Garcia voltaria
a Marabá em junho de 2021, desta vez acompanhado do então presidente Jair
Bolsonaro, para a entrega de títulos de propriedade rural. Em plena pandemia de
Covid-19, com média de 55 mil mortes por mês naquela época, o espaço estava lotado
de apoiadores, quase todos vestindo roupas verde e amarelas e sem máscaras.
O evento foi a maior
entrega de novos títulos de terra após a criação do Titula Brasil, um programa
de parceria entre municípios e o governo federal, que, por meio do Incra,
capacita as prefeituras para agilizar os procedimentos de titulação. A
iniciativa continua vigente até hoje.
No palco, além do
ex-presidente, estavam políticos paraenses como o senador Zequinha Marinho
(Podemos), os deputados federais Joaquim Passarinho (PL) e Éder Mauro (PL) e
bastiões do neopentecostalismo, como o pastor Silas Malafaia e os deputados
Marco Feliciano (PL-SP) e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).
“Desde que eu conheci
esse homem, ainda deputado federal, ele dizia: ‘para mim, propriedade é
sagrada’”, gritou Nabhan Garcia, um dos primeiros a discursar. Bolsonaro
encerrou os pronunciamentos, reforçou que “a propriedade privada é sagrada” e
que o programa de titulação afastaria as “atividades nefastas do MST”.
A estratégia de Nabhan
Garcia e Bolsonaro foi distribuir títulos de propriedade para quem já estava
assentado. Foram cerca de 370 mil títulos nos quatro anos de governo, um
recorde se comparado às outras gestões. No período de Michel Temer (2016-2019),
quando a legislação foi alterada para flexibilizar a titulação, foram 235 mil
títulos, ante 137 mil nos governos Dilma Rousseff (2011-2016) e 105 mil nos
dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010).
“O Pará foi o estado
que mais conseguiu dar título de terra”, afirma o deputado Joaquim Passarinho,
que acompanhou Nabhan em agendas no Pará. Foram 120 mil títulos somente no
estado, o que corresponde a um terço dos títulos distribuídos pelo governo Bolsonaro.
Na visão do deputado, a transferência do título para o assentado dá a
possibilidade de conseguir crédito bancário e crescer.
Apesar do recorde de
titulação, o governo Bolsonaro praticamente não incorporou terras ao Programa
Nacional de Reforma Agrária. Foram apenas 2.800 hectares, ante 47,6 milhões de
hectares nos governos Lula, 20,8 milhões de hectares no período FHC, 3,1 milhões
nos governos de Dilma e 664 mil no governo Temer.
Na análise da
presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Yamila Goldfarb,
a entrega de títulos de propriedade para assentados pode parecer sedutora, mas
é perigosa:
“O assentado pode dar
a terra como garantia para conseguir empréstimos e, se desistir de produzir,
pode vender a área e pronto. Dá a ideia de que ele tem algo na mão que pode
salvá-lo”.
A titulação
representa, contudo, a possibilidade de o Estado se retirar completamente das
áreas de assentamento, sem oferecer linhas de fomento especiais e sem
proporcionar infraestrutura e assistência técnica, analisa Goldfarb.
“O programa de
titulação desenfreado coloca a terra de volta no mercado e leva a um processo
de reconcentração fundiária, em um momento em que o valor da terra está
altamente aquecido”, avalia.
As falas e atitudes de
Bolsonaro e Nabhan Garcia intensificaram no Brasil um processo chamado de
“contra reforma agrária”, segundo análise de professores e pesquisadores da
UFRJ e UFF publicada pela CPT, no caderno Conflitos no Campo, em abril.
Caracterizada pelo
avanço da concentração fundiária, intensificação da grilagem de terras,
abandono das políticas de redistribuição de terras e desmantelamento de
políticas públicas de apoio aos trabalhadores rurais, essa política foi
iniciada durante o governo Temer, agravada no governo Bolsonaro e não revertida
por Lula.
A consequência disso é
o agravamento dos conflitos no campo, segundo os especialistas. Durante a
gestão Temer, por exemplo, mais de 85% dos conflitos foram provocados pelos
grupos dominantes do campo contra comunidades rurais. No governo Bolsonaro, o
percentual saltou para mais de 96%. “O que demonstra o estímulo e abandono do
Estado em relação aos processos de violência no campo”, escreveram os
pesquisadores.
##
Esta reportagem teve
apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
• Invasão massiva pelo garimpo ilegal e
facções criminosas afetam intensivamente as terras indígenas em RR, alertam
organizações
O Comitê Xapiri,
movimentos sociais e populares, redes e organizações da sociedade civil,
denunciaram as graves violações ocorridas contra os povos do campo, da cidade,
migrantes, mulheres, crianças, adolescentes, juventudes, povo negro, do
terreiro e indígenas de Roraima. A carta de repudio foi divulgada após a
realização da Caravana de Direitos Humanos, como parte da Semana Social
Brasileira, que ocorreu nos dias 16 e 17 de agosto de 2024 em Boa Vista (RR).
Liderada pelo
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), as Caravanas dos
Direitos Humanos têm por objetivo ajudar atores locais a enfrentar e superar
violações como tortura, precarização das prisões, elevados índices de morte
violenta e até casos de prisões ilegais.
“Com a grave situação
de violação de direitos humanos em Roraima, os mais afetados e impactados com a
invasão massiva pelo garimpo ilegal são os povos indígenas”, foi destaque na
carta. Isso porquê a atividade garimpeira em terras indígenas afetou fortemente
os povos Yanomami e Ye’kwana, os quais de forma sistemática tiveram seus
territórios e comunidades invadidos por mais de 20 mil garimpeiros,
principalmente durante os quatro anos do governo Bolsonaro.
De forma lenta, o
atual governo tem dado passos no combate à violência crescente que impacta as
comunidades indígenas no estado.
Na avaliação das
organizações que assinam a carta, em número de 38 no total, a prática do
garimpo ilegal favoreceu a criação e o fortalecimento de organizações
criminosas a exemplo de facções. Segundo investigações do Ministério Público
Federal (MPF), existem diversos crimes associados ao garimpo (tortura,
extorsão, execução, agentes do Estado agindo como segurança de garimpo e
garimpeiros etc”), lista o documento.
No Relatório de
Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023, produzido pelo
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roraima lidera o índice de
assassinatos de indígenas com 47 registros. Sem contar que “só no ano passado
foram registrados 573 casos de estupros, que se tornaram uma violência
invisível. Em 2023, o número de feminicídio dobrou, o que ceifa a vida de
muitas mulheres de várias faixas etárias”, lista a carta.
A violência no campo
se agravou ainda mais nos últimos anos com ocorrência de conflitos gerados a
partir da grilagem de terras. Segundo dados do Caderno de Conflitos da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), em 2023, “Roraima destaca-se no aumento da concentração
de renda da elite. É o maior número de conflitos registrados no estado nos
últimos 10 anos, com 60 casos”.
Além de abordar os
dados alarmantes, as organizações repudiam a complacência da “classe política
do estado de Roraima que tem assistido, de forma pacífica, essas diversas
formas de violência”. Ao mesmo tempo, fazem um chamado a toda sociedade: “para
lutarmos a favor de nossos povos, da nossa biodiversidade e das nossas
liberdades de ser e de existir”.
Fonte: Repórter
Brasil/Cimi
Nenhum comentário:
Postar um comentário