quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O método do ‘ogronegócio’ para frear a reforma agrária no epicentro da luta pela terra

Palco de massacres históricos de trabalhadores rurais sem terra, como os de Eldorado dos Carajás e de Pau D’Arco, a região sudeste do Pará foi a mais afetada pelo desmonte das políticas de reforma agrária empreendido pelo ex-secretário de Assuntos Fundiários do governo de Jair Bolsonaro (PL), Luiz Antonio Nabhan Garcia, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.

A região tem pelo menos 200 ocupações em fazendas e propriedades improdutivas ou situadas em terras da União. Há ainda 516 projetos de assentamentos, totalizando quase 5 milhões de hectares em disputa – uma área maior que países como Holanda e Suíça –, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Igreja Católica.

Durante o governo Bolsonaro, contudo, os projetos de reforma agrária foram desmantelados no Pará, assim como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O órgão deveria ser um instrumento de distribuição de terras e pacificação no campo, mas foi usado em prol da “manutenção do latifúndio”, analisa o advogado José Batista Afonso, da CPT. “O principal representante dos latifundiários passou a comandar o órgão”, diz ele, em referência a Nabhan.

Durante os quatro anos em que foi o responsável pela política fundiária no país, Nabhan abriu as portas do governo para grileiros, infratores ambientais e produtores rurais que atentaram contra a democracia, como mostra a série de reportagens “Ogronegócio: milícia e golpismo na Amazônia”.

Foi o que se viu em Marabá em fevereiro de 2020, quando Nabhan participou de uma audiência na Câmara Municipal da cidade, onde se reuniu com empresários e fazendeiros contrários à atuação de movimentos sociais na região.

Entre os presentes estavam os irmãos Fernão e Murilo Zancaner, que ficaram conhecidos em 2007 quando a usina deles, a Pagrisa, foi alvo de uma fiscalização trabalhista que resgatou da escravidão 1.064 trabalhadores que atuavam no plantio e colheita da cana-de-açúcar. É o maior resgate de trabalhadores já realizado no Brasil. 

“Precisamos organizar essa bagunça que foi feita ao longo de 30 anos por outros governos que estavam muito mais interessados em vender a Amazônia lá fora do que se preocupar com o povo aqui dentro”, disse Fernão, que foi muito aplaudido.

Fernão é um dos vice-presidentes da Federação da Agricultura do Estado do Pará (Faepa) e tem como hobby participar de campeonatos de tiro esportivo. Ele fez ainda uma visita de cortesia a Nabhan em Brasília em junho de 2022, segundo a agenda oficial do auxiliar de Bolsonaro.

Procurada, a assessoria de imprensa da Faepa não respondeu às perguntas enviadas para Fernão. “Não temos informações sobre o tema solicitado”, disse. Já Nabhan disse que não se importa com as críticas à sua gestão e diz que a opinião que vale é a dos produtores rurais.

Sem o mesmo acesso ao governo, o sem-terra Luis Carlos Silva Barbosa, de 57 anos, está há mais de dez anos perambulando entre acampamentos na região de Marabá tentando conseguir um lote. Ele estava entre os acampados que foram expulsos de forma violenta no acampamento Hugo Chávez do MST, em 2018. Hoje, vive em uma área improvisada cedida por outro acampamento do movimento social.

Barbosa tenta sobreviver trabalhando para os fazendeiros da região, mas relata ter dificuldade de conseguir trabalho quando os empregadores descobrem que ele espera pela reforma agrária. “Quando a gente fala que é sem-terra, eles pensam que a gente é ladrão, mas não somos. Estamos lutando por um pedaço de terra para sustentar a família”, afirma.

•        Recorde de titulação de terras no Pará

Nabhan Garcia voltaria a Marabá em junho de 2021, desta vez acompanhado do então presidente Jair Bolsonaro, para a entrega de títulos de propriedade rural. Em plena pandemia de Covid-19, com média de 55 mil mortes por mês naquela época, o espaço estava lotado de apoiadores, quase todos vestindo roupas verde e amarelas e sem máscaras.

O evento foi a maior entrega de novos títulos de terra após a criação do Titula Brasil, um programa de parceria entre municípios e o governo federal, que, por meio do Incra, capacita as prefeituras para agilizar os procedimentos de titulação. A iniciativa continua vigente até hoje.

No palco, além do ex-presidente, estavam políticos paraenses como o senador Zequinha Marinho (Podemos), os deputados federais Joaquim Passarinho (PL) e Éder Mauro (PL) e bastiões do neopentecostalismo, como o pastor Silas Malafaia e os deputados Marco Feliciano (PL-SP) e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). 

“Desde que eu conheci esse homem, ainda deputado federal, ele dizia: ‘para mim, propriedade é sagrada’”, gritou Nabhan Garcia, um dos primeiros a discursar. Bolsonaro encerrou os pronunciamentos, reforçou que “a propriedade privada é sagrada” e que o programa de titulação afastaria as “atividades nefastas do MST”.

A estratégia de Nabhan Garcia e Bolsonaro foi distribuir títulos de propriedade para quem já estava assentado. Foram cerca de 370 mil títulos nos quatro anos de governo, um recorde se comparado às outras gestões. No período de Michel Temer (2016-2019), quando a legislação foi alterada para flexibilizar a titulação, foram 235 mil títulos, ante 137 mil nos governos Dilma Rousseff (2011-2016) e 105 mil nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010). 

“O Pará foi o estado que mais conseguiu dar título de terra”, afirma o deputado Joaquim Passarinho, que acompanhou Nabhan em agendas no Pará. Foram 120 mil títulos somente no estado, o que corresponde a um terço dos títulos distribuídos pelo governo Bolsonaro. Na visão do deputado, a transferência do título para o assentado dá a possibilidade de conseguir crédito bancário e crescer.

Apesar do recorde de titulação, o governo Bolsonaro praticamente não incorporou terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária. Foram apenas 2.800 hectares, ante 47,6 milhões de hectares nos governos Lula, 20,8 milhões de hectares no período FHC, 3,1 milhões nos governos de Dilma e 664 mil no governo Temer.

Na análise da presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Yamila Goldfarb, a entrega de títulos de propriedade para assentados pode parecer sedutora, mas é perigosa:

“O assentado pode dar a terra como garantia para conseguir empréstimos e, se desistir de produzir, pode vender a área e pronto. Dá a ideia de que ele tem algo na mão que pode salvá-lo”.

A titulação representa, contudo, a possibilidade de o Estado se retirar completamente das áreas de assentamento, sem oferecer linhas de fomento especiais e sem proporcionar infraestrutura e assistência técnica, analisa Goldfarb.

“O programa de titulação desenfreado coloca a terra de volta no mercado e leva a um processo de reconcentração fundiária, em um momento em que o valor da terra está altamente aquecido”, avalia.

As falas e atitudes de Bolsonaro e Nabhan Garcia intensificaram no Brasil um processo chamado de “contra reforma agrária”, segundo análise de professores e pesquisadores da UFRJ e UFF publicada pela CPT, no caderno Conflitos no Campo, em abril. 

Caracterizada pelo avanço da concentração fundiária, intensificação da grilagem de terras, abandono das políticas de redistribuição de terras e desmantelamento de políticas públicas de apoio aos trabalhadores rurais, essa política foi iniciada durante o governo Temer, agravada no governo Bolsonaro e não revertida por Lula.

A consequência disso é o agravamento dos conflitos no campo, segundo os especialistas. Durante a gestão Temer, por exemplo, mais de 85% dos conflitos foram provocados pelos grupos dominantes do campo contra comunidades rurais. No governo Bolsonaro, o percentual saltou para mais de 96%. “O que demonstra o estímulo e abandono do Estado em relação aos processos de violência no campo”, escreveram os pesquisadores.

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Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

 

•        Invasão massiva pelo garimpo ilegal e facções criminosas afetam intensivamente as terras indígenas em RR, alertam organizações

O Comitê Xapiri, movimentos sociais e populares, redes e organizações da sociedade civil, denunciaram as graves violações ocorridas contra os povos do campo, da cidade, migrantes, mulheres, crianças, adolescentes, juventudes, povo negro, do terreiro e indígenas de Roraima. A carta de repudio foi divulgada após a realização da Caravana de Direitos Humanos, como parte da Semana Social Brasileira, que ocorreu nos dias 16 e 17 de agosto de 2024 em Boa Vista (RR).

Liderada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), as Caravanas dos Direitos Humanos têm por objetivo ajudar atores locais a enfrentar e superar violações como tortura, precarização das prisões, elevados índices de morte violenta e até casos de prisões ilegais.

“Com a grave situação de violação de direitos humanos em Roraima, os mais afetados e impactados com a invasão massiva pelo garimpo ilegal são os povos indígenas”, foi destaque na carta. Isso porquê a atividade garimpeira em terras indígenas afetou fortemente os povos Yanomami e Ye’kwana, os quais de forma sistemática tiveram seus territórios e comunidades invadidos por mais de 20 mil garimpeiros, principalmente durante os quatro anos do governo Bolsonaro.

De forma lenta, o atual governo tem dado passos no combate à violência crescente que impacta as comunidades indígenas no estado.

Na avaliação das organizações que assinam a carta, em número de 38 no total, a prática do garimpo ilegal favoreceu a criação e o fortalecimento de organizações criminosas a exemplo de facções. Segundo investigações do Ministério Público Federal (MPF), existem diversos crimes associados ao garimpo (tortura, extorsão, execução, agentes do Estado agindo como segurança de garimpo e garimpeiros etc”), lista o documento.

No Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023, produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roraima lidera o índice de assassinatos de indígenas com 47 registros. Sem contar que “só no ano passado foram registrados 573 casos de estupros, que se tornaram uma violência invisível. Em 2023, o número de feminicídio dobrou, o que ceifa a vida de muitas mulheres de várias faixas etárias”, lista a carta.

A violência no campo se agravou ainda mais nos últimos anos com ocorrência de conflitos gerados a partir da grilagem de terras. Segundo dados do Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2023, “Roraima destaca-se no aumento da concentração de renda da elite. É o maior número de conflitos registrados no estado nos últimos 10 anos, com 60 casos”.

Além de abordar os dados alarmantes, as organizações repudiam a complacência da “classe política do estado de Roraima que tem assistido, de forma pacífica, essas diversas formas de violência”. Ao mesmo tempo, fazem um chamado a toda sociedade: “para lutarmos a favor de nossos povos, da nossa biodiversidade e das nossas liberdades de ser e de existir”.

 

Fonte: Repórter Brasil/Cimi

 

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