A contra-hegemonia e o papel dos “arcaicos”
Volto ao tema da
última postagem, mas agora procurando mostrar o que já está sendo criado e
recriado por alguns grandes conjuntos de classes sociais exploradas,
particularmente em áreas das matas,
campos e águas: povos indígenas e quilombolas, ribeirinhos, camponeses baseados
na agricultura familiar. São importantes pela sua identidade, potente cultura e
história de resistências diante de ameaças a seu modo de vida, afirmando seus
direitos de cidadania. Eles não são o passado, mas pelo contrário, são resistências
que podem apontar outro futuro. Pelo impacto político de suas iniciativas,
podem ser consideradas como experimentos contra-hegemônicos e com capacidade de
inspirar outras iniciativas, em diferentes situações territoriais de viver em
nosso país. Pela sua composição e ativismo são uma potente denúncia e força
social no enfrentamento do capitalismo dominante e suas mazelas.
As múltiplas
alternativas territoriais existentes em áreas rurais são manchas e nódulos de
vida e resistência muito diversos. São cercados e ameaçados pelo agronegócio
expansionista, colonizador, usurpador de terras, com desmatamento e queimadas,
sementes transgênicas, agrotóxicos, poluidor de rios e aquíferos, e muitas
vezes com trabalho escravo. Mas também são comunidades inteiras ameaçadas por
grandes empreendimentos extrativistas (minas, garimpo ilegal, grandes
hidroelétricas, fazendas de energia solar…).
Em sua ousadia de
resistir e construir, afirmando e lutando por direitos, esses núcleos
alternativos enfrentam um duplo desafio.
De um lado, existe uma questão estrutural de fundo, que, com seu enorme
poder econômico e político, está levando a um desastre anunciado: o paradigma
de desenvolvimento capitalista globalizado e financeirizado, com a destruição
da natureza e exclusão social, e novas formas de extração e acumulação de valor
em nome do “livre mercado”, com políticas e normas que nos estão levando a
depender de uma reprimarização econômica ameaçadora, com um frontal ataque
destrutivo dos territórios em que levam a sua vida. A integridade do imenso
território do Brasil, o bem comum da vida, já está comprometida (tendo
ultrapassado vários dos limites planetários para a reprodução da sua
integridade). A mudança climática já se tornou um novo normal entre nós, que se
soma a uma herança maldita de colonização, escravidão e patriarcalismo.
De outro lado, temos
uma questão política não menor para nos insurgirmos contra isto tudo. A
democracia que vibrantemente conquistamos, contra a ditadura militar, nasceu
encurralada, sem capacidade de avanços transformadores. Pior, nos últimos dez
anos, como ameaça politicamente devastadora, surgiu e ganhou espaço na
sociedade e no comando do Estado uma direita de perfil extremamente autoritário
e excludente, para poucos, que propõe um desenvolvimento capitalista ainda mais
destruidor. Já experimentamos praticamente como opera tal direita a partir do
poder estatal e como ela disputa a hegemonia no chão da sociedade. Além disto,
ela está se articulando com direitas autoritárias crescendo na região à nossa volta e mundo a fora.
O contexto político é,
indiscutivelmente, adverso para alternativas mais ousadas. No entanto, como
esperança, sempre é bom ter presente que as lutas políticas nunca são ganhas ou
perdidas antes de serem disputadas. O que precisamos, sim, é nos fortalecer
para disputar hegemonia no aqui e agora, com perspectiva de longo prazo. Por
isto, a tarefa que devemos priorizar é
trocar e nos inspirar uns e umas aos outros e outras, aprendendo com as
“trincheiras e resistências” cidadãs já existentes e demonstrando potência. Precisamos ter claro que tais lutas não são,
necessariamente, replicáveis para outros territórios e situações, mas sim
faróis a iluminar caminhos e possibilidades de ação transformadora.
Num país “baleia” como
o Brasil, na construção e disputa de hegemonia é incontornável a construção de
coalizões cidadãs para ganhar força e intensidade diante da direita com suas
coalizões e formas de expressão política, visíveis e até invisíveis, espalhadas
pelo país. O fato inegável é que a direita vem conquistando espaço nas ruas,
que se soma ao que ela já controla no campo da comunicação e na própria
institucionalidade estatal. E temos uma eleição estratégica ainda este ano para
definir a base do poder político nos 5.570 municípios brasileiros. Isto,
politicamente, não é amanhã, pois é urgência política que exige ação imediata.
Um caso exemplar e com
grande protagonismo cidadão transformador é a proposta elaborada pela ASA –
Articulação do Semiárido. A ASA tem uma concepção, uma proposta prática e uma
experiência acumulada sobre o que fazer. Além disto, praticou um ativismo exemplar
na questão de garantir o acesso à água no sertão nordestino, algo transformador
pela participação direta das famílias camponesas pobres, as mais afetadas pelas
secas periódicas. Vale a pena lembrar que o bioma brasileiro do Semiárido é o
maior do mundo. Nele acontecem sazonalmente secas, todo ano. Mas com uma
periodicidade variável, algo como de década em década, a seca pode se estender
por um ou mais anos, de forma ininterrupta.
Como coalizão de
múltiplas expressões, a ASA é composta por mais de 3.000 organizações de
cidadania ativa da região, espalhados pelos dez estados nordestinos. Como
prática, tem foco nas famílias camponesas nordestinas que sofrem periodicamente
com a seca. Mas ASA não trata a questão da seca como fatalidade, pelo
contrário, busca formas que potencializem a vida e o bem viver em tal
território e seu sistema climático, fortalecendo a agricultura familiar
camponesa. Já são disponíveis muitos estudos publicados e um banco de dados de
grande qualidade sobre esta experiência exemplar de protagonismo cidadão no
enfrentamento dos desafios que a seca representa para o contingente de famílias
camponesas, em extremamente pobres, o maior contingente rural brasileiro.
A questão central a
destacar é a proposta ecossocial transformadora que a ASA criou, desenvolveu
praticamente, ampliou e aperfeiçoou ao longo do tempo. O que a ASA acumulou
vale para o Semiárido. Mas os princípios e as concepções que a ASA formulou são
de ordem de mudança de paradigma no modo de ser, produzir, se organizar e viver
dentro dos limites e possibilidades ecológicas dos territórios e sua dinâmica
natural. Além disto, é eficaz na luta contra a expansão do excludente e
destruidor agronegócio, voltado para fora.
Considero que o processo cidadão concebido e desenvolvido pela ASA,
tendo como pilar a questão central da água como um bem comum de todas e todos,
é um patrimônio coletivo com potencial para inspirar e realizar transformações,
para além do Nordeste rural. É emancipador e democrático, além de
ecologicamente adequado, pois, ao mesmo tempo que potencializa o modo camponês
de produzir e viver diante de “severas adversidades climáticas”, busca garantir
direitos ecossociais iguais na diversidade de situações naturais e políticas,
especialmente aos grupos populacionais condenados a viver nas periferias de
nosso país.
Como concepção, a
definição central da ASA é a convivência com a seca, simples assim. Mas carrega
uma mensagem potente de luta e construção de alternativa transformadora do
desenvolvimento capitalista dominante que, há mais de um século, combate a seca
com grandes obras de engenharia. A política de promoção de uma engenharia para
o enfrentamento da seca levou à criação do DNOCS, à CODEVASF e à própria
Sudene, como estratégias do Governo Federal do Brasil e apoio das classes
dominantes nordestinas. Foram feitos muitos açudes, nas grandes propriedades e
especialmente para elas, assim como as hidrelétricas, com perímetros irrigados
no entorno, para gerar eletricidade e junto promover o agronegócio
especializado, com irrigação e todo o
pacote químico na produção agrícola para o mercado, nacional e mundial. Para a
maioria da população, especialmente as famílias camponesas e seus povoados,
sobrou a tarefa diária – especialmente para mulheres e meninas – de buscar água
nos açudes, quase sempre distantes. Nas grandes secas, estas famílias foram
condenadas a esperar o incerto carro pipa da prefeitura para ter acesso à vital
água. Ou, então, migrar para outras regiões, especialmente o Sudeste como polo
do capitalismo brasileiro. Muitos se engajavam em trabalhos temporários sem
carteira, em outras regiões, especialmente jovens e pais de famílias (os
“boias-frias”).
Vale a pena lembrar
aqui a gigante obra de engenharia no Nordeste da “Transposição do São
Francisco”, pelo Governo Lula I, depois de uma secular discussão nos meios
dominantes do capitalismo brasileiro. O fato é que a transposição é a
continuidade de uma política desenvolvimentista de combate à seca e não de
convivência com ela. Não vale a pena a gente discutir isto como emblema de algo
que nasceu sem perspectiva transformadora, mas antes de continuidade exacerbada
do mesmo. É lamentável ter que lembrar
algo assim diante dos enormes desafios democráticos transformadores que temos,
criando maior resiliência, diante da mudança climática que vem se
intensificando e destruindo vastos territórios e ameaçando modos de viver em
diferentes biomas brasileiros, de formas também diferentes, como este ano, em
particular, testemunha.
Voltando à proposta de
convivência com a dinâmica ecológica territorial, central na concepção e
metodologia prática da ASA para o bioma do Semiárido brasileiro, importa
ressaltar o que tal proposta implica em termos práticos e de metodologia
emancipadora, inspirada nas propostas de educação popular de Paulo Freire, um
nordestino de expressão mundial. Limito-me a destacar alguns elementos
centrais. Em termos práticos, trata-se de uma proposta que envolve a construção
de cisternas que coletam água da chuva para consumo humano de cada família
camponesa, moradora de determinado povoado/comunidade rural, começando por
aquelas mais vulneráveis – algo decidido coletivamente – até garantir cisternas
para todas as famílias. Aí se passa a outro povoado, até atingir todos os
povoados típicos de um município rural nordestino. A construção da cisterna,
barata e durável, é na base de mutirão da comunidade, com apoio de pedreiro que
orienta praticamente. Os recursos para compra de materiais são buscados pela
própria ASA, junto às fundações e às agências de cooperação internacional. Mas
passou a receber apoio público em forma de parceria, desde o final do governo
FHC, que se intensificou de forma expressiva com o Governo Lula I e II. Há dois
tipos de cisternas: uma primeira se destina ao consumo humano, com coleta de
água dos telhados da própria casa. A outro, é para animais e produção de
alimentos, geralmente cisterna em baixios do terreno em que vive a família
camponesa. A produção de alimentos assenta nos princípios da agroecologia e
produtos locais, com foco na comida boa, levando à criação de “bancos
comunitários de sementes” de produtos alimentares do bioma, com troca de
saberes do como produzir. Tudo em busca de soberania e segurança alimentar, com
troca de excedentes, no interior da própria comunidade camponesa. No final,
todas as famílias atendidas com cisterna, celebra-se uma verdadeira emancipação
cidadã naquelas condições de domínio secular dos donos de gado e gente.
De forma sintética,
defino a concepção e a metodologia assentada no princípio da convivência, como
base, que leve a dois outros princípios fundamentais numa perspectiva
democrática ecossocial transformadora: princípios do cuidado e do
compartilhamento, com a natureza e entre todos os moradores, como é praticado
pela aplicação da metodologia da ASA como condição para conviver com a seca de
forma emancipadora.
Mas por que
convivência com o clima e a natureza é apontada aqui como um dos pilares
na construção de contra-hegemonia? Antes
de tudo para como contraponto à proposta de “abrir a porteira e largar a
boiada” do ministro de meio ambiente do governo autoritário de 2019-22. A
extrema direita autoritária não esconde o que quer: liberar a colonização de
terras protegidas em favor do desenvolvimento predador, sem reservas
permanentes, sem demarcação de novos territórios Indígenas e quilombolas, sem
limitação ao extrativismo de madeiro e do garimpo ou minas. O fato é que, mesmo
o nosso país dispor de uma legislação de regulação ecossocial democrática, a
devastação dos diferentes territórios continua. Em consequência, os eventos
climáticos extremos se multiplicam e intensificam na mesma rapidez no país como
um todo.
O enfrentamento da
mudança climática é um desafio planetário. No Brasil, praticamente em todas as
regiões temos sinais de mudanças. Limito-me a três situações de eventos
climáticos atuais, extremos e emblemáticos, em diferentes biomas, no Brasil que
nos desafiam coletivamente, portanto são uma tarefa coletiva para cidadanias e
para os governos que elegemos. Por
exemplo, o Rio Grande do Sul foi devastado com chuvas extraordinárias, que
podem se repetir mais de uma vez por ano e cada vez de forma mais intensa, pois
além da mudança climática existe o território agredido e depredado, a forma de
ocupação e a forma de construção de cidades sem mata protetora, nas margens de
rios e lagos, com ocupação irregular, expansão do negócio imobiliário sem
limites, desmatamentos em encostas e de matas ciliares nas margens dos rios,
construção de barragens no leito dos rios para água de irrigação, etc.
A questão que
precisamos enfrentar é: trata-se somente de restaurar o destruído (estradas,
pontes, cidades, escolas, hospitais, casas de moradores…), priorizando obras de
engenharia, boas para as grandes empresas empreiteiras de engenharia? Não estou
afirmando que todas as obras de engenharia são ruins em si, pelo contrário.
Precisamos, porém, de um diagnóstico preliminar e fundado sobre a integridade
ecossocial territorial específica da cada lugar que foi comprometido em sua
dinâmica, bem antes das atuais chuvas intensas. É hora de reconhecer que
precisamos mudar. É o caso de pensar a partir de um paradigma de convivência,
que dada a especificidade, é de
convivência com muita água, com as chuvas e os temporais intensos, com ventos
fortes e o sistema natural de drenagem pelos rios existentes, suas margens e
suas áreas úmidas, que canalizam as águas de grande parte do Norte e Centro do
RS para o Guaíba e a Lagoa dos Patos. De todo modo, trata-se de um desafio para
cidadanias ativas pautadas por agenda ecossocial democrática. Mas algo
essencial é priorizar concepções, princípios e valores, com imaginários que
mobilizam, para se confrontar e superar as propostas desenvolvimentistas de
sempre. Não dá para esperar soluções virtuosas do Estado, sem pressão de cidadanias.
O financiamento é necessário, mas não qualquer financiamento em grande escala,
para as empresas loucas por recursos públicos abundantes.
Temos outro exemplo no
Pantanal, que vem sofrendo incêndios destruidores da fauna e da flora, cada vez
mais intensos nos últimos anos. Trata-se de um bioma muito especial e frágil,
cheio de vida, água e beleza natural. Mas está sendo atingido por descontrolados
incêndios. A causa maior é a expansão do agronegócio, com desmatamento das
nascentes e margens de rios que formam a bacia do Rio Paraguai. Assim, falta o
elemento fundamental para o funcionamento da integridade ecológica do Pantanal:
a inundação periódica pelas águas do território, compartido com países
vizinhos, mas que no período seco conserva naturalmente ainda muita água em
pequenas lagoas e pequenos córregos. Com recuperar a convivência com tal
dinâmica ecológica vital, tanto para humanos como para a maravilhosamente linda
e rica biodiversidade, hoje violentamente agredida pelo fogo. Neste ano, foram
queimados em torno de 700 mil hectares do Pantanal, na parte brasileira. Ações
de emergência de combate ao fogo sempre serão necessárias. O curioso do caso é
que na pecuária tradicional da região se praticava o fogo controlado das
pastagens na estação mais seca, para regenerá-las. Mas vem ocorrendo um
processo de formação de ainda maiores fazendas para a pecuária. Junto,
cresceram em tamanho os incêndios, tornando-se de difícil manejo ou, até,
custoso demais para quem busca lucro na criação de gato de forma extensiva.
Trago ainda um exemplo
mais de agressão descontrolada or desmatamentos nas últimas décadas, que estão
afetando particularmente a Amazônia das maiores florestas e rios do Brasil. São
dois tipos de eventos extremos sazonais: secas mais intensas numa época e
enchentes maiores na estação chuvosa. Aqui se trata de um complexo bioma que
combina rios, lagos e extensas matas nativas. Os Povos Originários são seus
guardiões, dada a forma de vida baseada na convivência com a fantástica
biodiversidade e preservação de sua integridade, somada ao cuidado e ao
compartilhamento com todas e todos da comunidade, que praticam. Além disto,
eles detêm um saber único de como no lidar com os rios e lagos, reservatórios
de peixes – alimento indispensável – e “estradas aquíferas” fundamentais para
se deslocar e comunicar, entre outras utilidades. Um elemento fundamental da
Amazônia é que ela produz os “rios voadores”, pela evaporação, especialmente
das florestas (maior até do que a evasão de água do Rio Amazonas no mar,
segundo cientistas), que regulam diretamente a maior parte das chuvas no
Cerrado, Pantanal e Centro-Sul do Brasil, além de o regime de chuvas em outros países, como a Bolívia, o Paraguai
e o Norte da Argentina. Os desmatamentos descontrolados – garimpo ilegal
destruidor, enormes obras de engenharia para construção de hidrelétricas,
agronegócio em expansão, extração de minérios em grande escala, exploração
petrolífera, obras de infraestrutura,
tudo junto – contribuem para desregular o modo de operar do grande sistema ecológico fundamental para o
Brasil e América do Sul. Não vê quem não quer. Volto à necessidade trazer a
convivência como base, como modo de vida e prioridade estratégica. Muitos
produtos podem ser gerados pela região sem agredi-la. Não ao desenvolvimento
capitalista e seus projetos de costas para a Amazônia e os seus habitantes. No
caso da Amazônia, os Povos Tradicionais, especialmente os Indígenas, tem muito
a nos ensinar como conviver, antes que seja tarde.
Enfim, são indicações
de possibilidades concretas e transformadoras para começar a implantar mudanças
para os referidos territórios e populações locais. São, ao mesmo tempo, bases
fundamentais na construção de contra-hegemonia – uma disputa que supõe adesão
majoritária na sociedade – para construir um Brasil democrático de direitos
ecossociais iguais para todos. Nesta empreitada, precisamos contar com a adesão
política cidadã, o coração e os imaginários coletivos na sociedade civil,
urbana e rural, para aspirar a um país com base a um modo “saboroso de viver”.
A disputa de hegemonia com o “mercado” e seus “donos” e a direita autoritária
exige uma perspectiva democrática ecossocial poderosa e transformadora.
Fonte: Por Cândido
Grzybowski, em Outras Palavras
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