Racismo é barreira para ensino da história e da cultura afro-brasileira
nas escolas
Cerca de 20 anos após sua publicação, mais de 70% das secretarias municipais de Educação do país fizeram pouca ou
nenhuma ação para implementar a Lei nº 10.639, que determina a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura
Afro-Brasileira nos currículos das instituições de Educação Básica.
Considerada um importante instrumento para a
construção de uma educação antirracista, a lei, promulgada durante o primeiro
mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), teve como relatora a
professora Petronilha Gonçalves, primeira mulher negra a ter assento
no Conselho Nacional de Educação.
Décadas depois da publicação da norma, que
nasceu para combater o racismo enraizado há séculos no Brasil, resgatando
“a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil”, a professora diz que vê mudanças positivas
no país, mas que ainda é preciso avançar muito no combate ao racismo e na
difusão do conhecimento sobre as contribuições da população negra na construção
da nação brasileira.
“Durante muito tempo, para a cabeça de muitas
pessoas, as pessoas negras eram descendentes, não de pessoas, mas de
ferramentas. Pouco se divulgou, e ainda se divulga pouco, que os escravizados
trouxeram tecnologias para o país”, disse Petronilha Gonçalves, em entrevista
à Agência Pública.
<<<< Leia alguns trechos da
entrevista.
·
O que motivou a criação da Lei 10.639 e qual era o contexto que
justificava a necessidade de uma legislação específica sobre a história e
cultura afro-brasileira?
O contexto era o racismo. O racismo brasileiro que
existia há séculos e que precisava ser tratado, no sentido de que se conhecesse
as raízes da participação da população negra na construção da nação brasileira
e também as raízes do racismo para poder combater, porque não dá para mudar 500
anos em poucos meses ou anos.
A iniciativa [de se ensinar história e cultura
afro-brasileira] é muito antiga. Foi muitas vezes solitária, outras vezes de
grupos de professoras negras e não negras que tinham um projeto de sociedade em
que o racismo necessitava ser combatido e superado. É uma iniciativa também
importante do Movimento Negro em nosso país.
·
A Lei fez 20 anos este ano. Qual balanço você faz? Acha que a legislação
vem sendo efetiva para combater o racismo no ensino?
É preciso que nas comunidades escolares, os
professores e outras pessoas que fazem parte dessa comunidade, como os
servidores das escolas, estejam empenhados no combate ao racismo. A lei sozinha
não é suficiente para combater o racismo.
Para algumas pessoas, essa estrutura, plantada lá
no século XVI, talvez lhe convenha, convenha a seus grupos, por manter um
projeto de sociedade em que alguns – pessoas, seus grupos sociais e
raciais – seriam mais valorizados do que outros. A história desses grupos de
participação na construção da nação brasileira, muitas vezes é escondida, ou
desconsiderada, como a participação dos descendentes japoneses, da população
negra, por exemplo.
Durante muito tempo, para a cabeça de muitas
pessoas, as pessoas negras eram descendentes, não de pessoas, mas de
ferramentas. Pouco se divulgou, e ainda se divulga pouco, que os escravizados
trouxeram tecnologias para o país. Por exemplo, Portugal tinha um subsolo rico
que não sabia, ou não tinha conhecimentos de como explorá-lo. Então, eles
trouxeram escravizados da África, em que o subsolo era rico. E assim, por
diferentes ciclos econômicos, essas populações africanas desenvolveram essas
habilidades com a agricultura, que aplicavam em suas terras, nas regiões
econômicas onde eram escravizados.
·
Eu, Bianca, tenho 27 anos e tive em livros didáticos da escola pública
que tratam da colonização do país, em que eu só via o negro como uma condição
de exploração, de escravizado. Você vê alguma mudança nessas escolas a respeito
uma nova visão sobre o povo negro?
Felizmente, sim. Não o que se desejaria, ainda não.
Mas não se pode dizer que se está no mesmo pé de 20 anos atrás. Às vezes, pelo
que me dizem, um pouco distorcidas ainda. Quer dizer, é importante que se
aprofunde o estudo da História, não só em relação à participação,
evidentemente, da população descendente africana, mas também da população
indígena, das diferentes descendências que formam a nação brasileira, mas não
valorizando mais umas do que outras. E é o que aconteceu e ainda acontece em
alguns lugares. Algumas pessoas imaginam que a contribuição dos europeus seria
mais valiosa, mais importante. No entanto, nós sabemos que não é.
·
Quais foram e são os principais desafios enfrentados na aplicação
efetiva da legislação?
Eu acho que o principal desafio é justamente o
racismo. Não que o racismo seja uma coisa impossível de combater, porque o que
está em questão realmente é o que temos como projeto de sociedade, que com
muita frequência fortalece a ideia de que há grupos e certas culturas que devem
ser mais valorizadas que outras, como é o caso dos descendentes de europeus
notadamente no nosso país.
·
Na sua opinião, existe uma complementaridade entre a lei que estabelece
o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e as políticas de cotas, que visa garantir a representatividade da população negra em diversos
setores?
Eu diria que elas fazem parte de um projeto de
sociedade, que reconhece os diferentes povos que constituem a nação brasileira
e valorizam igualmente a contribuição desses povos. E valorizar implica
conhecer as suas histórias e as suas culturas distintas, incentivar o que já
acontece no dia a dia, que é o diálogo entre essas culturas, esses modos de
ser, essas histórias, sem valorizar mais algumas do que outras.
É um trabalho difícil, sobretudo quando a gente vem
com uma tradição de séculos de valorização da contribuição dos europeus, às
vezes negando o papel fundamental, no sentido que está no fundamento, dos
diferentes povos indígenas.
·
Além da lei, enquanto política pública, o que mais poderia ser fomentado
na educação pública pra avançar mais ainda na direção de uma educação
antirracista, de um projeto de sociedade que visa valorizar a população negra?
Prever o combate ao racismo, prever e conhecer as
histórias e culturas dos diferentes povos que constituem a nação brasileira.
·
Como essas legislações e políticas públicas sobre as quais comentamos
impactam concretamente nos desafios que a população negra ainda enfrenta, e que
são derivados do racismo, como as dificuldades no acesso à saúde e moradia, a questão da violência?
Elas ajudam a compreender que existem problemas e
que esses problemas precisam ser resolvidos. E trazem informações, espero que
reflexões no sentido de que atitude e contribuição que cada pessoa pode trazer,
cada grupo social pode trazer, cada instância política pode trazer.
Agora, depende muito do projeto de sociedade, não
unicamente, mas particularmente dos professores.
Não unicamente porque, evidentemente, cada
estudante traz consigo o projeto de sociedade da sua família, do grupo social,
do grupo étnico-racial a que pertence. Então, exige uma capacidade de diálogo,
de compreensão e de busca, conhecer. A gente tem que conhecer os
diferentes modos de entender a vida, de construir a cidadania e dialogar. A
escola é o lugar.
·
Para você, o que é necessário para que a resistência na aceitação de
elementos da cultura negra, como por exemplo, religiões de matriz africana, e essas barreiras que comentamos de acesso às
políticas públicas para a população negra sejam superadas no Brasil?
É conversar abertamente sobre o projeto de
sociedade, acho que isso é uma conversa que tem que ser feita nas famílias,
evidentemente que nas escolas, nos diferentes níveis de ensino, formulando a
pergunta desta forma ou de outras maneiras. A gente pode ver nos projetos que
as escolas, as universidades desenvolvem, os objetivos que têm os planos de
ensino, os objetivos que têm os currículos,o plano político pedagógico da
escola, da universidade, as atividades que se desenvolvem, e como eu já disse,
a forma como as pessoas se relacionam.
·
De acordo com uma pesquisa do Instituto Peregrino e do Projeto SETA,
sobre a percepção do brasileiro em relação ao racismo, mais da metade, 64%,
afirmaram que práticas racistas acontecem dentro da escola. Como as escolas
podem lidar e combater o racismo?
Bom, eu voltaria ao projeto de sociedade que a
escola visa transmitir, e essa é uma discussão que tem que ser feita no nível
dos professores, dos demais servidores da escola. E justamente uma pergunta:
para que sociedade eu trabalho? De que forma, a maneira como eu me relaciono
com as pessoas, transmite o meu projeto de sociedade? Até no simples, ao cruzar
com outra pessoa, se eu viro o rosto, ao ultrapassar essa pessoa, eu estou
dizendo para ela, eu não te reconheço. Mas ao reconhecer a presença da outra pessoa,
de outro ser humano, cada um de nós está transmitindo um projeto de sociedade.
Ø A
etnografia no centro da magia da cultura popular negra da Bahia. Por Leo
Navarro
A obra Estação etnográfica Bahia: a construção
transnacional dos Estudos Afro-brasileiros (1935-1967), escrita pelo sociólogo
e antropólogo Livio Sansone, acaba de ser lançada pela Editora da Unicamp.
Nela, o autor revisita as principais teorias raciais desenvolvidas na cidade de
Salvador (BA) a partir da década de 1930, baseando-se nos estudos de quatro
antropólogos estrangeiros: o casal Frances e Melville Herskovits, Edward
Franklin Frazier e Lorenzo Turner. Seduzidos pela cultura popular negra da cidade,
os quatro pesquisadores foram essenciais para o avanço dos estudos
afro-brasileiros. Leia abaixo a entrevista com Sansone, atualmente professor
titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia
(UFBA).
·
No livro, o senhor menciona que a cidade de
Salvador possuía uma magia. O que distinguia a cultura popular negra de
Salvador da registrada em outras cidades brasileiras?
Livio Sansone – As cidades têm aura. Nos anos
1940, Salvador tinha uma aura própria que certamente se caracterizava por ser o
produto de uma cidade, em sua grande maioria, negra onde parecia possível
sonhar com um mundo racialmente misturado ou onde as relações e hierarquias
raciais não resultassem, necessariamente, em crescente negação do outro ou até
ódio, purgas étnicas e massacres. A cordialidade desigual das festas populares
da cidade dava para os forasteiros a impressão de estarem em uma cidade onde algum
tipo de harmonia racial era uma realidade – algo tragicamente necessário em um
mundo que começava a ser triturado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. A
grande demanda por paz e tolerância entre intelectuais do mundo inteiro,
suscitada pela guerra, pelo racismo nazista, e também pela segregação racial
nos Estados Unidos, precisava de uma cidade com a qual sonhar, de uma utopia.
Isso teve uma função importante e humanizadora, mas contribuiu para
“tropicalizar” e infantilizar a cidade da Bahia e para fortalecer o mito de que
lá se desse algum tipo de democracia racial.
·
O que tornava o chamado Novo Mundo atraente para
estudiosos da época?
Livio Sansone – O assim dito Novo Mundo sempre
foi fonte de inspiração para intelectuais, artistas e políticos do Velho Mundo.
Em um complexo jogo de espelhos, procuravam no Novo Mundo tanto
elementos do próprio passado como indícios do futuro próximo. O
conhecimento antropológico, com sua priorização da etnografia como método,
cresce dentro desse processo, que também engendrava uma crescente curiosidade e
sensibilidade com relação ao outro, ao exótico e ao tropical.
·
Por que o senhor selecionou esses quatro
pesquisadores para analisar em seu livro?
Livio Sansone – Os quatro protagonistas do
livro, dois brancos e dois negros, tiveram um papel central no estabelecimento
da agenda de pesquisa pós-guerra, tanto dos estudos afro-brasileiros como dos
estudos afro- -americanos e africanos nos Estados Unidos. Eles, ademais,
focaram não somente a Bahia, mas também um conjunto específico de informantes,
o povo de santo de um seleto número de terreiros. Embora fossem movidos por
agendas teórica e politicamente diferentes, os quatro uniam-se pelo compromisso
antirracista e pelo desejo de incentivar os intercâmbios e a compreensão mútua
entre o Brasil e os Estados Unidos.
·
Como o senhor vê a produção intelectual brasileira,
em relação à cultura negra, no Brasil de hoje? Como sua obra pode ajudar a
fortalecê-la?
Livio Sansone – Nas últimas três décadas tem
havido um grande crescimento da qualidade e da quantidade da pesquisa sobre
hierarquias raciais e produção cultural negra no Brasil. O país também mudou
muito e, hoje, há muito mais consciência da necessidade de combater
a desigualdade racial, assim como há maior aceitação das medidas
inspiradas pelas ações afirmativas. Espero poder contribuir com essa justa luta
mostrando como, no decorrer do tempo, se deram tanto continuidades como
rupturas no que diz respeito à biografia e às agendas dos pesquisadores.
Espero, dessa forma, ter contribuído com a história social dos estudos
afro-brasileiros, mostrando também o quanto eles, embora fossem representados
como associados ao “local”, na realidade sempre tiveram contato também com
agendas transnacionais.
·
Quais foram as principais adversidades encontradas
ao revisitar e organizar duas décadas de pesquisas produzidas?
Livio Sansone – Tive duas ordens de problemas.
Por um lado, pesquisar agendas e trajetórias de pesquisadores (prevalentemente)
norte-americanos a partir de Salvador – uma cidade situada no Sul do Sul Global
– representa em si um desafio, devido à falta de bons arquivos e bibliotecas
locais, assim como uma certa precariedade da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado da Bahia (Fapesb). Por outro lado, o pouco tempo disponível para
pesquisa, as distâncias e a dificuldade em angariar recursos para poder viajar
rumo aos Estados Unidos e à França, onde se encontram os arquivos mais
importantes, têm me obrigado a basear minha pesquisa em curtas e
superintensivas missões de pesquisa, intercaladas por longos períodos
aproveitados para estudar e sistematizar os documentos. Preciso acrescentar que
minha pesquisa não teria sido exequível sem a ampla rede de colegas,
distribuídos em muitas universidades, sobretudo do Norte Global, que, com
grande abnegação e generosidade, têm compartilhado comigo documentos, matérias
e publicações. Devo muitíssimo a essa generosidade digital!
Título: Estação
etnográfica Bahia
Autor: Livio
Sansone
Edição: 1a
Páginas: 320
Dimensões: 16 cm x
23 cm
Fonte: Agencia Pública/Jornal da Unicamp
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