Violência no campo e Estado
"A impunidade, totalmente garantida aos
assassinos, mandantes e executores materiais, de indígenas e camponeses, nestes
últimos quarenta anos, é mais uma prova incontestável desta análise. A
impunidade não é consequência do descaso dos inquéritos policiais e da
morosidade do Judiciário, mas o resultado, deliberadamente construído, de um
Estado, que é o próprio Crime Organizado", escrevem Flávio Lazzarin, padre
italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá e agente da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), e Cláudio Bombieri, padre, missionário comboniano e
agente da pastoral junto aos Guajajaras do Maranhão.
Segundo ele, "o Brasil nos proporciona uma
versão tropical do Estado de Exceção: a originalidade da Exceção brasileira
está no fato que ela se alimenta de forma absolutamente independente da
legalidade constituída".
"Milícia e pistoleiros - constatam Lazzarin e
Bombieri - são elementos constitutivos, orgânicos, do Estado brasileiro.
<<<< Eis o artigo.
De 27 de outubro até 10 de novembro, houve um
aumento estatisticamente significativo da violência no campo, com vários
assassinatos ocorridos em áreas de conflitos fundiários nos estados do
Maranhão, Pará, Pernambuco e Paraíba.
Escandalosamente significativo o que aconteceu, no
dia 10 de novembro, no Maranhão, quando um grupo de dez pistoleiros a mando de
um fazendeiro invadiu o povoado São Francisco, localizado em Barra do Corda,
resultando na morte de um deles. Outros dois integrantes da quadrilha foram
baleados e socorridos, enquanto outros sete foram resgatados por policiais e
presos em flagrante.
Noticia-se imediatamente que dos dez bandidos nove
são policiais militares e um penal.
A dimensão, a simultaneidade e a configuração
destes fatos provocam reações e debates, que vão além da pontual e preciosa
nota da CPT do dia 12.
Eis algumas perguntas e reflexões que circulam
nestes dias.
Seria uma mera trágica coincidência a confluência
desses atos violentos no arco de cerca quinze dias em diferentes regiões do
Brasil? Ou são violências programadas e coordenadas?
Esta última não é uma hipótese aceitável, mas é bom
sublinhar que existem articulações parlamentares e políticas, que poderiam
repetir as estratégias da antiga UDR: a Frente parlamentar "Invasão
zero" (200 parlamentares), criada logo após CPI do MST e, na Bahia, em
paralelo, o Movimento "Invasão zero" (10mil proprietários em 200
municípios).
Descartada, evidentemente, a hipótese de uma
coordenação destas violências, poderíamos pô-las no âmbito da polarização entre
bolsonarismo e lulismo?
Chama a nossa atenção o fato de que ao longo dos
quatro anos do governo fascista de Bolsonaro não haja havido, pelo que se sabe,
uma concentração de assassinatos e atentados contra quilombola, camponeses e
indígena tal como a que se deu nesses dias. Teria sido mais lógico que atos
violentos dessa magnitude tivessem ocorrido ao longo daquele mandato, e não
agora, num governo que, formalmente, estaria a defender e a favorecer as
categorias mais fragilizadas do campo. Ou, seria, por acaso, a reação de retaliação
do latifúndio justamente diante de uma nova e aguerrida postura do atual
governo em favor das populações do campo? Contudo, numa rápida e superficial
leitura da política fundiária levada adiante pelo MDA e o INCRA do atual
governo não nos parece entrever ações políticas que tenham criado algum tipo de
impacto significativo tal a ponto de provocar possíveis retaliações do
latifúndio. Muito pelo contrário...
Haveria uma outra hipótese a ser considerada:
estariam as populações do campo se sentindo fortalecidas e/ou, supostamente,
protegidas pelo atual governo de forma a torná-las mais aguerridas e ousadas em
suas lutas e reivindicações, e as novas agressões do latifúndio seriam, afinal,
uma mera resposta defensiva a essas novas empreitadas sociais desses
movimentos?
Não nos parece, também nesse caso, vislumbrar ações
de mobilização, de ocupação fundiária e de retomada de territórios originários
e tradicionais de tal envergadura que venham a justificar uma renovada
metodologia das populações do campo, num novo e suposto favorável contexto
político.
Ao descartar a ‘mera coincidência’ desses
acontecimentos cabe tentar compreender quais outras razões pressionam, por
exemplo, um grupo de policiais para se colocarem a serviço de um ‘fazendeiro’
com a finalidade de limpar de forma clandestina uma determinada área. Seria o
movente pecuniário a única razão? O que move um grupo consistente de PMs da
mesma cidade a colocar em risco a sua profissão para fazer um ‘trabalho sujo’?
Insiste-se por parte de muitos sobre o papel do Estado
nestes conflitos territoriais e repetimos as figuras da ‘omissão’, com anexa
impunidade, e da ‘cumplicidade’. Essas leituras são suficientes para entender a
responsabilidade do estado nestas agressões?
Achamos que estas perguntas e reflexões,
aparentemente oportunas e necessárias, nos deixam, porém, na escuridão e,
sobretudo, não abrem portas e caminhos para uma praxe política coerente de
enfrentamento da violência.
Talvez, possamos encontrar alguma luz retomando a
análise do protagonismo político das elites rentistas e empresariais do Brasil.
Somos assim obrigados a repetir a única descrição
ao nosso ver incontestável do Estado brasileiro: desde a sua origem, se
caracteriza como estamento oligárquico-patrimonialista; desde sempre o Estado é
o próprio ‘Crime Organizado’.
Podem aparecer ao longo da nossa história, além das
ditaduras e dos golpismos, sempre por interferência militar, maquiagens
republicanas, democráticas e hipócritas afirmações sobre a vigência do ‘Estado
de Direito”, mas também em Estados, como o Rio Grande do Sul, em que parecia
vingar uma tradição liberal autêntica, nas últimas décadas vingou a versão do
Estado oligárquico-patrimonialista, o Estado como ‘Crime Organizado’. E seria
míope continuar pensando que essas características do Estado brasileiro estariam
presentes somente no Rio de Janeiro.
Resumindo: o Estado não é cumplice da violência nem
é meramente omisso diante dela, porque ele é incontestavelmente o
quartel-general desta guerra contra os pobres e os pequenos.
O Brasil nos proporciona uma versão tropical do
Estado de Exceção: a originalidade da Exceção brasileira está no fato que ela
se alimenta de forma absolutamente independente da legalidade constituída.
As nossas elites sempre conviveram, sem problema
éticos e políticos, com a convicção profunda, atávica e fortemente enraizada da
primazia da autolegitimação sobre a legalidade.
Todo o aparato jurídico – código civil e código
penal – está submetido ao privilégio incontestável das elites, que decidem,
independendo das leis, o que é legítimo, necessário e conveniente para a
manutenção do poder. E as leis são normalmente usadas como arma política contra
os inimigos e adversários, enquanto familiares, amigos e aliados são
dispensados de obedece-las e absolvidos de antemão, também em casos de crimes
hediondos.
Evidentemente, as leis cumprem também a função de
disfarce da primazia da autolegitimação, encenando a ficção do ‘Estado de
direito’.
Ficção que consegue ocultar o papel indispensável
que o Poder Judiciário ocupa no pacto oligárquico: respeitar caninamente, com
rara exceções, a solidariedade de classe, a cumplicidade entre brancos ricos,
cultos, proprietários e profissionais liberais.
Saber disto deveria minar o eventual entusiasmo dos
defensores dos direitos humanos, porque no confronto jurídico com o Poder
Judiciário saem quase sempre derrotados o com vitórias mutiladas por
negociações injustas e parciais.
No embate processual com o Estado, as comunidades
camponesas saem sempre derrotadas.
A impunidade, totalmente garantida aos assassinos,
mandantes e executores materiais, de indígenas e camponeses, nestes últimos
quarenta anos, é mais uma prova incontestável desta análise. A impunidade não é
consequência do descaso dos inquéritos policiais e da morosidade do Judiciário,
mas o resultado, deliberadamente construído, de um Estado, que é o próprio
Crime Organizado.
E, então, no âmbito da autolegitimação oligárquica,
não há como estabelecer uma diferença entre Polícia e Milícia, come se somente
ocasionalmente a elite precisasse dos serviços da jagunçada e pistolagem.
Milícia e pistoleiros são elementos constitutivos,
orgânicos, do Estado brasileiro. E esta configuração não é característica das
oligarquia do passado: no Maranhão funcionava com Vitorino Freire e José Sarney
e na Bahia com Antônio Carlos Magalhães, mas continua funcionando com os
governos sucessivos, com a única variável do acompanhamento de uma narrativa
progressista.
Assim a violência no campo permanece com José
Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Dilma
Roussef, Lula e, obviamente, continuou com Bolsonaro.
Os populistas de extrema direita aceitam e
incentivam a violência para defender os valores tradicionais e, para eles,
inegociáveis - Deus-Pátria-Família - ameaçados pelos ‘comunistas’. Repetem a
encenação antissistémica nazista e fascista para, de fato, hoje como ontem,
terminar radicalizando a violência do sistema capitalista.
A esquerda ainda acha que ainda pode se declarar
aliada dos pequeninhos, mas hoje é incapaz de reconhecer a distância que o
progressismo da classe média construiu entre si e as massas famintas e
desempregadas.
Uma esquerda que está equivocada quando se pensa
como a herdeira do legado dos trabalhadores que, porém, há muito tempo, não se
reconhecem mais como classe.
Uma esquerda que, quando está no governo, não tem
antídotos contra a violência do capitalismo e é obrigada a obedecer à lógica do
mercado e às reivindicações das elites amplamente representadas pelo Centrão
que manda na Câmara, no Senado e no País.
Uma esquerda derrotada e sem futuro, acometida pelo
cansaço ideológico, pela repetitividade eleitoreira, pela incapacidade de
entender que a sociedade mudou, pela falta de discernimento que bloqueia
qualquer projeto alternativo para o Brasil, em tempos de fome, de desemprego,
de violência contra indígenas e camponeses, tempos de novas subjetividades e de
dramáticas conjunturas climáticas e bélicas, que marcam tragicamente a
atualidade.
Uma esquerda, que, mais tarde o mais cedo, será
varrida do panorama político internacional, pela onda demencial e trágica do
populismo de extrema direita.
• O que
fazer diante de tantos escombros?
Alguns dias atrás, Marcello Tarí nos deu uma dica
preciosa: uma profecia bela e intensa de Emmanuel Mounier, que pode ser um
presente para aqueles que ainda queiram lutar.
“O perigo, a preocupação são o nosso destino. Nada
nos deixa prever que esta luta possa terminar numa fração de tempo calculável,
nada nos incentiva a supor que a luta seja constitutiva da nossa condição. Com
efeito a perfeição do universo pessoal encarnado não se identifica com a
perfeição de uma ordem, como pretendem todos os filósofos (e todos os
políticos), que pensam que um dia o ser humano possa totalizar o mundo. A nossa
é uma perfeição de uma liberdade que luta e luta incansavelmente. E que continua
firme até depois da derrota. Entre o otimismo intolerante da ilusão liberal ou
revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o verdadeiro caminho do
ser humano é este otimismo trágico, em que ele pode encontrar a sua justa
medida num ambiente de grandeza e de luta”. (Mounier Emmanuel, Il personalismo,
Ave ed. 2004, pag. 56)
A única arma com a qual é permitido marchar para a
guerra é a Palavra. E é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz.
Palavra que decide desestabilizar o status quo: “Não penseis que vim trazer a
paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre
o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos
do homem serão as pessoas de sua própria casa.” (Mt 10,34-36).
Não é Palavra que simplesmente aceita a
inevitabilidade do conflito. É a própria Palavra que o instaura e o preserva
com radicalidade.
Fonte: Por Flávio Lazzarin e Cláudio Bombieri, para
IHU
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