Prevista em lei, ressocialização de presos é
exceção estatística no Brasil
Quando Yorrana Keyte, 28 anos, saiu da cadeia após três anos presa,
viu-se diante de quatro questões fundamentais para quem sai do sistema
prisional: “Para onde vou? O que vou fazer? Onde vou morar? O que vou comer?”
Ré primária, Yorrana cumpriu pena por tráfico na Professor Jason, em São
Joaquim de Bicas, na Grande Belo Horizonte – a única penitenciária LGBTQIA+ de
Minas Gerais. Passou os três anos sem trabalhar: “Lá só temos o mínimo. As
vagas de trabalho são poucas, para a maioria não há oportunidade”, conta. Em
seu vasto tempo livre, Yorrana planejava como se reerguer quando se visse em
liberdade.
Resolveu que correria atrás de dois sonhos antigos: retificar seu nome
(Yorrana é uma mulher trans) e abrir seu próprio negócio, uma sex shop. Foram
anos “futricando a lei” para entender os trâmites da retificação – que,
descobriu, não seria aceita enquanto estivesse presa.A loja foi idealizada em
longos diálogos com seu ex-companheiro, que conheceu no presídio. Yorrana
preencheu cadernos inteiros calculando o capital inicial necessário, as vendas
online e o contato com clientes. Planejar ajudou a evitar um problema comum: “A
soltura é tão idealizada que muita gente não pensa no que fazer quando a hora
chega. Quando você não planeja, acaba na rua; da rua, acaba nas drogas; das
drogas, acaba cometendo outro crime, e daí cai de novo no sistema”, diz
Yorrana.
Embora seus parentes a visitassem na prisão, avisaram que não haveria
lugar para ela na casa da família. Em 2021, ao ser solta, só rompeu o ciclo
vicioso graças a uma mão que lhe foi estendida – e não pelo Estado.
• “Mãe de preso”
“Dona Angelita, eu preciso de ajuda”. Angelita Mercês, 44 anos, está
acostumada a ouvir essa frase. Ela trabalhou oito anos como agente
penitenciária em São Joaquim de Bicas, e a maior parte do tempo passou em
“desvio de função”, indo de cela em cela conversar com os presos e fazendo as
vezes ora de assistente social, ora de enfermeira, psicóloga e pedagoga. Por
conhecer, “nome por nome”, cada um dos apenados, foi convidada em 2019 a
integrar o Conselho da Comunidade – órgão fiscalizador que auxilia o juiz de
execução penal da comarca.
Yorrana a procurou assim que saiu da penitenciária. Do próprio bolso,
Angelita pagou as taxas para a retificação do nome da egressa e lhe ajudou a
encontrar um trabalho de meio período. Um ano depois, Yorrana arranjou emprego
num pet shop, e com o dinheiro pôde inaugurar o seu sex shop. Agora batalha
para pagar, em prestações, a multa processual que lhe foi aplicada quando de
sua condenação: R$ 17 mil.
Se dependesse só do Estado, o destino de Yorrana poderia ser outro,
reflete Angelita. “A maioria dos presos fica 24 horas dentro da cela, quando a
lei determina que todos devem ter acesso ao estudo e trabalho”, diz.
O “conjunto de falhas” que ela percebe na Lei de Execução Penal (LEP),
que considera “linda, mas só no papel”, vai desde a comida azeda ao
racionamento de água, passando pelas recorrentes agressões físicas e
psicológicas por parte dos agentes penitenciários. A soma desses fatores é
perversa: “Quem está na prisão tem risco de sair pior do que entrou”.
Em todo o Brasil, apenas 24% dos presos trabalham, mostram dados da
Secretaria Nacional de Políticas Penais. Em Minas, são 28%, e somente 15% têm
acesso a estudo dentro das prisões. Não há um dado exato sobre ressocialização.
De acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, 46% dos egressos
retornam para as prisões após reincidir em delitos – o que não quer dizer que
os 54% restantes conseguiram se restabelecer após o cárcere. Exemplos
bem-sucedidos de ressocialização, como Yorrana, são exceções que se enquadram
num perfil claro: costumam ser réus primários, ter sólida estrutura familiar ou
contar com uma mão amiga fora da prisão – no caso de Yorrana, a própria
Angelita.
Ajudar presos ou ex-presos, porém, dificilmente fará com que um
funcionário do sistema prisional fique popular entre os policiais penais. Em
Minas, há um apelido depreciativo para esse servidor ou servidora: “mãe de
preso”. “Há rivalidade entre a área de segurança e a área voltada para a
ressocialização”, afirma Angelita, que já chegou a ser denunciada por policiais
penais. O motivo: ela entrou com um pedido judicial requerendo que um egresso,
cadeirante, fosse levado de volta à casa do pai, que aceitou acolhê-lo no
Espírito Santo. Ao fim do processo, ela foi inocentada.
• “Sensação de derrota”
Com população carcerária em torno de 60 mil pessoas, as unidades
prisionais de Minas têm mais de 16 mil agentes de segurança, mas apenas 553
técnicos e analistas trabalham com ressocialização dentro das prisões. Desses,
226 são psicólogas – ou seja, cada uma atende 265 detentos. Renata Nasser, 45
anos, é uma delas.
Ela trabalha no presídio de Machado, no sul de Minas. Antes de passar
por uma intervenção judicial no ano passado, a unidade operava com o dobro de
sua lotação, que é de 134 vagas. Ela lembra que, pela LEP, todo preso tem de
receber atenção de assistentes sociais, mas o presídio não conta com esses
profissionais, que têm entre suas atribuições resgatar laços dos detentos com
seus familiares. “Quanto maior a rede de apoio do interno, melhor será sua vida
pós-cárcere e maior a chance dele não reincidir”, explica Renata. Os que
cumprem pena longe de sua terra sofrem também com a falta de notícias da
família e raramente recebem visitas.
A consequência da falta de verbas e funcionários é o descumprimento da
lei: “Nada voltado para a ressocialização é feito aqui. É triste. A nossa
sensação é de derrota”, lamenta Renata.
Entre os funcionários de segurança, impera a ignorância sobre o
significado da ressocialização. “Muitos acham que é dar ao preso tudo o que ele
quer. Não é: é um direito”, desabafa. Quem, como ela, busca um olhar mais
humanizado, recebe de volta a animosidade de muitos policiais penais. De abril
a dezembro de 2022, Renata esteve afastada de sua função por motivos psiquiátricos, e entende que as situações de
estresse no trabalho foram determinantes para seu adoecimento. Em sua
avaliação, os carcereiros não conseguem entender que o que segura a cadeia, ao
contrário do que muita gente pensa, não é a força bruta. “Por que os presos não
fazem rebeliões sempre? Porque têm coisas a perder: escola, atendimento de
saúde, psicólogo. A ressocialização é uma medida de segurança”.
• “Questão de segurança”
No presídio onde trabalha o assistente social Kalil Lauar, 36, em
Teófilo Otoni, norte de Minas, o Estado tinha sob sua custódia, até março deste
ano, 724 pessoas, das quais 97 trabalhavam. Nenhum deles tem acesso a cursos
profissionalizantes ou escola. Em seus atendimentos, Kalil escuta sempre a
mesma súplica. “Não é força de expressão, os apenados imploram para trabalhar”,
conta.
Interessado em alterar essa realidade, ele teve uma ideia: abrir uma
oficina de marcenaria e serralheria que, a um só tempo, auxiliaria a prefeitura
construindo placas de trânsito e consertando carteiras escolares e capacitaria
os presos para exercer um ofício quando saíssem da prisão. Kalil escreveu o
projeto, a prefeitura comprou a ideia, uma empresa entrou na parceria e um
deputado se dispôs a destinar uma emenda parlamentar para a compra de material
e maquinário. Faltava a aprovação da direção do presídio. Os policiais penais
até elogiaram a iniciativa, mas, na hora de implementá-la, desconversavam,
adiando a decisão para uma reunião futura.
Certo dia, depois de muitos adiamentos e desculpas, o assistente social
foi informado de que, “por questão de segurança”, o projeto fora vetado pela
direção do presídio. “Entendi que não conseguiria fazer nada ali dentro, porque
projetos como esse não são para dar certo”, diz. Para compreender o porquê
disso, ingressou no mestrado em Segurança Pública e Cidadania na Universidade
do Estado de Minas Gerais. E a impressão empírica sobre a lógica policialesca
dominante nos presídios se confirmou. “A ideia punitiva, que ignora quase
completamente a perspectiva da ressocialização, é institucionalizada. Está além
de qualquer servidor específico”, afirma.
Outro flagrante desrespeito à LEP é a prisão de pessoas em locais
distantes de seu núcleo familiar. Kalil estima que, no presídio em que
trabalha, metade dos presos são de outras cidades – alguns, inclusive, de
outros estados. “O critério de manter a pessoa perto da família não é levado em
conta”, diz. Ele critica também a falta de acompanhamento sobre a
ressocialização: “O Estado não tem nenhum parâmetro para determinar se alguém
se ressocializou ou não”.
• Outro lado
Procurada pela Pública, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de
Minas Gerais discordou dos profissionais ouvidos pela reportagem. Afirmou que a
resistência da área de segurança aos projetos voltados para a ressocialização
“não é a realidade”, e que, ao contrário, existe “empenho de servidores,
havendo vários exemplos de ações de sucesso em prol da ressocialização de
presos”.
Sobre a falta de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, a Sejusp
informou que o último concurso para essas áreas ocorreu em 2013, e que “não há
previsão para novo certame para estes cargos”. Já a área de segurança está com
um concurso em andamento, “podendo ser nomeados mais de 3 mil novos policiais
penais”.
A secretaria destacou ainda a atuação do Programa de Inclusão Social de
Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), que no ano de 2022 auxiliou 4919 pessoas
egressas, prestando atendimentos psicossociais e encaminhando-as para o mercado
de trabalho. A população carcerária de Minas é de 60 mil pessoas.
O PrEsp, com efeito, foi elogiado por Kalil, Angelita e outros
profissionais entrevistados pela Pública, que lamentaram, porém, sua pouca
abrangência. Dos 854 municípios mineiros, o programa está presente em 15
cidades, sendo responsável, assim, por atender os egressos oriundos das 172
unidades prisionais do Estado.
O PrEsp trabalha com a adesão voluntária, isto é, os egressos não são
encaminhados ao programa após o cumprimento das penas. Cabe a eles a iniciativa
de procurar uma das sedes do projeto.
Jéssica Borges, 32, lidera o PrEsp de BH, que conta com uma equipe de
oito funcionários. “O que a gente faz é tentar que todas as pessoas egressas do
sistema prisional consigam chegar ao programa. Mas a gente tem limite na nossa
mobilização, no nosso alcance”, reconhece.
Fonte: Por Leandro Aguiar, da Agencia Pública
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