segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Prevista em lei, ressocialização de presos é exceção estatística no Brasil

Quando Yorrana Keyte, 28 anos, saiu da cadeia após três anos presa, viu-se diante de quatro questões fundamentais para quem sai do sistema prisional: “Para onde vou? O que vou fazer? Onde vou morar? O que vou comer?”

Ré primária, Yorrana cumpriu pena por tráfico na Professor Jason, em São Joaquim de Bicas, na Grande Belo Horizonte – a única penitenciária LGBTQIA+ de Minas Gerais. Passou os três anos sem trabalhar: “Lá só temos o mínimo. As vagas de trabalho são poucas, para a maioria não há oportunidade”, conta. Em seu vasto tempo livre, Yorrana planejava como se reerguer quando se visse em liberdade.

Resolveu que correria atrás de dois sonhos antigos: retificar seu nome (Yorrana é uma mulher trans) e abrir seu próprio negócio, uma sex shop. Foram anos “futricando a lei” para entender os trâmites da retificação – que, descobriu, não seria aceita enquanto estivesse presa.A loja foi idealizada em longos diálogos com seu ex-companheiro, que conheceu no presídio. Yorrana preencheu cadernos inteiros calculando o capital inicial necessário, as vendas online e o contato com clientes. Planejar ajudou a evitar um problema comum: “A soltura é tão idealizada que muita gente não pensa no que fazer quando a hora chega. Quando você não planeja, acaba na rua; da rua, acaba nas drogas; das drogas, acaba cometendo outro crime, e daí cai de novo no sistema”, diz Yorrana.

Embora seus parentes a visitassem na prisão, avisaram que não haveria lugar para ela na casa da família. Em 2021, ao ser solta, só rompeu o ciclo vicioso graças a uma mão que lhe foi estendida – e não pelo Estado.

•        “Mãe de preso”

“Dona Angelita, eu preciso de ajuda”. Angelita Mercês, 44 anos, está acostumada a ouvir essa frase. Ela trabalhou oito anos como agente penitenciária em São Joaquim de Bicas, e a maior parte do tempo passou em “desvio de função”, indo de cela em cela conversar com os presos e fazendo as vezes ora de assistente social, ora de enfermeira, psicóloga e pedagoga. Por conhecer, “nome por nome”, cada um dos apenados, foi convidada em 2019 a integrar o Conselho da Comunidade – órgão fiscalizador que auxilia o juiz de execução penal da comarca.

Yorrana a procurou assim que saiu da penitenciária. Do próprio bolso, Angelita pagou as taxas para a retificação do nome da egressa e lhe ajudou a encontrar um trabalho de meio período. Um ano depois, Yorrana arranjou emprego num pet shop, e com o dinheiro pôde inaugurar o seu sex shop. Agora batalha para pagar, em prestações, a multa processual que lhe foi aplicada quando de sua condenação: R$ 17 mil.

Se dependesse só do Estado, o destino de Yorrana poderia ser outro, reflete Angelita. “A maioria dos presos fica 24 horas dentro da cela, quando a lei determina que todos devem ter acesso ao estudo e trabalho”, diz.

O “conjunto de falhas” que ela percebe na Lei de Execução Penal (LEP), que considera “linda, mas só no papel”, vai desde a comida azeda ao racionamento de água, passando pelas recorrentes agressões físicas e psicológicas por parte dos agentes penitenciários. A soma desses fatores é perversa: “Quem está na prisão tem risco de sair pior do que entrou”.

Em todo o Brasil, apenas 24% dos presos trabalham, mostram dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Em Minas, são 28%, e somente 15% têm acesso a estudo dentro das prisões. Não há um dado exato sobre ressocialização. De acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, 46% dos egressos retornam para as prisões após reincidir em delitos – o que não quer dizer que os 54% restantes conseguiram se restabelecer após o cárcere. Exemplos bem-sucedidos de ressocialização, como Yorrana, são exceções que se enquadram num perfil claro: costumam ser réus primários, ter sólida estrutura familiar ou contar com uma mão amiga fora da prisão – no caso de Yorrana, a própria Angelita.

Ajudar presos ou ex-presos, porém, dificilmente fará com que um funcionário do sistema prisional fique popular entre os policiais penais. Em Minas, há um apelido depreciativo para esse servidor ou servidora: “mãe de preso”. “Há rivalidade entre a área de segurança e a área voltada para a ressocialização”, afirma Angelita, que já chegou a ser denunciada por policiais penais. O motivo: ela entrou com um pedido judicial requerendo que um egresso, cadeirante, fosse levado de volta à casa do pai, que aceitou acolhê-lo no Espírito Santo. Ao fim do processo, ela foi inocentada.

•        “Sensação de derrota”

Com população carcerária em torno de 60 mil pessoas, as unidades prisionais de Minas têm mais de 16 mil agentes de segurança, mas apenas 553 técnicos e analistas trabalham com ressocialização dentro das prisões. Desses, 226 são psicólogas – ou seja, cada uma atende 265 detentos. Renata Nasser, 45 anos, é uma delas.

Ela trabalha no presídio de Machado, no sul de Minas. Antes de passar por uma intervenção judicial no ano passado, a unidade operava com o dobro de sua lotação, que é de 134 vagas. Ela lembra que, pela LEP, todo preso tem de receber atenção de assistentes sociais, mas o presídio não conta com esses profissionais, que têm entre suas atribuições resgatar laços dos detentos com seus familiares. “Quanto maior a rede de apoio do interno, melhor será sua vida pós-cárcere e maior a chance dele não reincidir”, explica Renata. Os que cumprem pena longe de sua terra sofrem também com a falta de notícias da família e raramente recebem visitas.

A consequência da falta de verbas e funcionários é o descumprimento da lei: “Nada voltado para a ressocialização é feito aqui. É triste. A nossa sensação é de derrota”, lamenta Renata.

Entre os funcionários de segurança, impera a ignorância sobre o significado da ressocialização. “Muitos acham que é dar ao preso tudo o que ele quer. Não é: é um direito”, desabafa. Quem, como ela, busca um olhar mais humanizado, recebe de volta a animosidade de muitos policiais penais. De abril a dezembro de 2022, Renata esteve afastada de sua função por motivos  psiquiátricos, e entende que as situações de estresse no trabalho foram determinantes para seu adoecimento. Em sua avaliação, os carcereiros não conseguem entender que o que segura a cadeia, ao contrário do que muita gente pensa, não é a força bruta. “Por que os presos não fazem rebeliões sempre? Porque têm coisas a perder: escola, atendimento de saúde, psicólogo. A ressocialização é uma medida de segurança”.

•        “Questão de segurança”

No presídio onde trabalha o assistente social Kalil Lauar, 36, em Teófilo Otoni, norte de Minas, o Estado tinha sob sua custódia, até março deste ano, 724 pessoas, das quais 97 trabalhavam. Nenhum deles tem acesso a cursos profissionalizantes ou escola. Em seus atendimentos, Kalil escuta sempre a mesma súplica. “Não é força de expressão, os apenados imploram para trabalhar”, conta.

Interessado em alterar essa realidade, ele teve uma ideia: abrir uma oficina de marcenaria e serralheria que, a um só tempo, auxiliaria a prefeitura construindo placas de trânsito e consertando carteiras escolares e capacitaria os presos para exercer um ofício quando saíssem da prisão. Kalil escreveu o projeto, a prefeitura comprou a ideia, uma empresa entrou na parceria e um deputado se dispôs a destinar uma emenda parlamentar para a compra de material e maquinário. Faltava a aprovação da direção do presídio. Os policiais penais até elogiaram a iniciativa, mas, na hora de implementá-la, desconversavam, adiando a decisão para uma reunião futura.

Certo dia, depois de muitos adiamentos e desculpas, o assistente social foi informado de que, “por questão de segurança”, o projeto fora vetado pela direção do presídio. “Entendi que não conseguiria fazer nada ali dentro, porque projetos como esse não são para dar certo”, diz. Para compreender o porquê disso, ingressou no mestrado em Segurança Pública e Cidadania na Universidade do Estado de Minas Gerais. E a impressão empírica sobre a lógica policialesca dominante nos presídios se confirmou. “A ideia punitiva, que ignora quase completamente a perspectiva da ressocialização, é institucionalizada. Está além de qualquer servidor específico”, afirma.

Outro flagrante desrespeito à LEP é a prisão de pessoas em locais distantes de seu núcleo familiar. Kalil estima que, no presídio em que trabalha, metade dos presos são de outras cidades – alguns, inclusive, de outros estados. “O critério de manter a pessoa perto da família não é levado em conta”, diz. Ele critica também a falta de acompanhamento sobre a ressocialização: “O Estado não tem nenhum parâmetro para determinar se alguém se ressocializou ou não”.

•        Outro lado

Procurada pela Pública, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais discordou dos profissionais ouvidos pela reportagem. Afirmou que a resistência da área de segurança aos projetos voltados para a ressocialização “não é a realidade”, e que, ao contrário, existe “empenho de servidores, havendo vários exemplos de ações de sucesso em prol da ressocialização de presos”.

Sobre a falta de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, a Sejusp informou que o último concurso para essas áreas ocorreu em 2013, e que “não há previsão para novo certame para estes cargos”. Já a área de segurança está com um concurso em andamento, “podendo ser nomeados mais de 3 mil novos policiais penais”.

A secretaria destacou ainda a atuação do Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), que no ano de 2022 auxiliou 4919 pessoas egressas, prestando atendimentos psicossociais e encaminhando-as para o mercado de trabalho. A população carcerária de Minas é de 60 mil pessoas.

O PrEsp, com efeito, foi elogiado por Kalil, Angelita e outros profissionais entrevistados pela Pública, que lamentaram, porém, sua pouca abrangência. Dos 854 municípios mineiros, o programa está presente em 15 cidades, sendo responsável, assim, por atender os egressos oriundos das 172 unidades prisionais do Estado.

O PrEsp trabalha com a adesão voluntária, isto é, os egressos não são encaminhados ao programa após o cumprimento das penas. Cabe a eles a iniciativa de procurar uma das sedes do projeto.

Jéssica Borges, 32, lidera o PrEsp de BH, que conta com uma equipe de oito funcionários. “O que a gente faz é tentar que todas as pessoas egressas do sistema prisional consigam chegar ao programa. Mas a gente tem limite na nossa mobilização, no nosso alcance”, reconhece.

 

Fonte: Por Leandro Aguiar, da Agencia Pública

 

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