- Trabalhando na necroeconomia
Durante minha pesquisa em Tyrone, pequena cidade rural localizada nos
Montes Apalaches nos Estados Unidos, entrevistei Samantha Melius, uma faxineira
que durante a semana trabalhava no campus da Universidade Estadual da
Pensilvânia em State College e, nos finais de semana, integrava a equipe de
estoquistas de uma loja da rede de supermercados Walmart. Fiquei espantado ao
saber que Samantha trabalhava todos os dias de sua vida, sem descanso, com
exceção do período das festas natalinas.
Samantha me contou que seu filho, Stephen Beckwith, um jovem empregado
em uma companhia de transporte, havia se tornado usuário de heroína após o
poderoso analgésico opióide que ele se acostumara a consumir deixar de ser
livremente prescrito pelos médicos. Há alguns anos, Stephen lesionou sua coluna
ao descarregar os caminhões da empresa e acabou abusando de analgésicos para
lidar com as fortes dores nas costas que, finalmente, o incapacitaram para o
trabalho. Recebendo o seguro-desemprego do governo, mas sem poder pagar por uma
cirurgia de coluna, ele simplesmente entregou-se ao vício. Samantha também
abusava de analgésicos, pois trabalhava em pé todos os dias de sua vida e, sem
o apoio dos remédios não conseguiria chegar ao final de suas incontáveis jornadas.
Infelizmente, histórias como as de Samantha e Stephen são muito comuns
nos Apalaches. Na verdade, desde o final dos anos 1990, os Estados Unidos já
passaram por três grandes epidemias de consumo de drogas relacionadas ao ópio.
A mais recente está associada ao consumo de substâncias ilícitas análogas ao
fentanil, um poderoso analgésico usualmente empregado para sedar pacientes
durante cirurgias.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) do país,
as mortes por overdose associadas ao uso de opioides saltaram de 20 mil, em
2010 para 80 mil, em 2021. A maior parte das vítimas é formada por
trabalhadores pobres que não conseguem ter acesso ou seguir pagando o
seguro-saúde de suas famílias. Trata-se de uma enorme crise produzida tanto
pela negligência da regulação federal dos analgésicos quanto pelos poderosos
interesses da indústria farmacêutica.
Livros como Império da dor: a ascensão e queda de uma das mais poderosas
famílias americanas e seu criminoso império farmacêutico, de Patrick Radden
Keefe, e Dopesick: Dealers, Doctors, and the Drug Company that Addicted
America, de Beth Macy, provaram que a crise que manieta as comunidades de
trabalhadores nos Estados Unidos foi deliberadamente planejada pela indústria
farmacêutica. Apontado como um dos principais responsáveis pela epidemia, o
analgésico OxyContin, por exemplo, gerou ao longo de dez anos uma receita de 35
bilhões para a empresa Purdue Pharma, alçando-a à condição de umas das empresas
farmacêuticas mais lucrativas do mundo.
Apesar dos superlativos méritos de investigações como as realizadas por
Keefe e Macy, uma questão decisiva para compreendermos a agonia das pequenas
comunidades rurais nos Estados Unidos, em geral, não é adequadamente
considerada: o entrelaçamento entre a mercantilização do trabalho e da saúde na
América. Entrevistando trabalhadores pobres na região central da Pensilvânia,
não é difícil perceber que a epidemia de opióides agravou significativamente o
sofrimento de comunidades que já estavam imersas numa sofrida crise
sócio-reprodutiva.
Desde o colapso econômico de 2008, é visível como o fechamento dos
pequenos negócios castigou as comunidades rurais. Aliás, os anos 2010
testemunharam o agravamento do processo de desindustrialização nessas regiões.
Com o desaparecimento dos negócios locais, os trabalhadores tiveram que buscar
oportunidades de emprego intermitente cada vez mais longe de seus lares,
transformando-se em verdadeiros nômades.
A instabilidade de rendimentos fez com que muitas famílias não
conseguissem pagar o seguro-saúde. Sem acesso a tratamentos médicos adequados,
inúmeros trabalhadores tornaram-se presas fáceis da voracidade das grandes
corporações farmacêuticas. A crise do modo de vida rural somada ao
desaparecimento dos empregos industrias impulsionou o abuso de drogas não
apenas entre os adultos, mas, também, entre os jovens. Conforme o relato de
Samantha:
“A polícia prendeu recentemente alguns rapazes do ensino médio vendendo
drogas. Esses jovens vão ficar marcados para sempre. Como vão conseguir
empregos com uma ficha criminal? […]. Éramos uma cidade pacata, nunca tivemos
problemas assim. Agora é tudo sobre drogas. […]. Os jovens não querem mais
ficar aqui, pois não temos opções de lazer. Eles não querem ficar. E também não
conseguem ir embora. Para onde iriam? Então, preferem ficar por aí se drogando.
Penso muito em minha neta e isso me deixa realmente apavorada. Qual é o futuro
desses jovens?”
A angústia manifestada por Samantha revela mais do que o estupor e a
desesperança da juventude de Tyrone. Ela nos leva a refletir sobre como a crise
da globalização neoliberal fez a reprodução da acumulação ampliada de capital
entrar em rota de colisão com a reprodução das famílias trabalhadoras. E o
rebaixamento das condições de subsistência dessas comunidades, em larga medida
impulsionado pelo enlace entre o trabalho precário e mercantilização da saúde,
finalmente, se converteu num cruel instrumento de acumulação econômica.
Afinal, não foi casual que, para testar a agressiva estratégia
publicitária de lançamento do OxyContin a Purdue Pharma tenha escolhido
justamente os Apalaches, região que historicamente concentra trabalhadores
pobres. Na última década, a escalada de mortes por overdose na América comprova
que o neoliberalismo não está simplesmente adoecendo a classe trabalhadora. Ele
está ameaçando sua existência. E se esse regime de acumulação entrou numa fase
que depende da morte planejada de dezenas de milhares de trabalhadores todos os
anos para assegurar superlucros corporativos, então é legítimo que os
trabalhadores respondam a esta ameaça existencial com o brado: “Morte ao
neoliberalismo!
Fonte: Por Rui Braga, no Blog da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário