terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Celso Lungaretti: A esquerda brasileira não sobreviverá se acatar a rendição de Lula ao Centrão

Um manda e o outro obedece? Existe algo mais frustrante do que vermos nossas previsões serem desmentidas pelos acontecimentos?

Existe. É quando elas são inteiramente confirmadas pelos acontecimentos, mas não serviram de nada, pois quem podia aproveitá-las as ignorou.

É como me sinto agora. Cansei de escrever que uma falsa vitória do Lula na eleição de 2018 não tiraria o Brasil da armadilha na qual se debate. Dito e feito.

Ele não é, nem nunca foi, um político comprometido com causas. A única causa que move todas as ações, falas e intenções do Lula se chama Luiz Inácio Lula da Silva. Então, desde 2011 ele tinha como obsessão máxima a volta à presidência da República, custasse o que custasse.

Neste sentido, foi o grande ausente das manifestações #ForaBolsonaro, porque avaliou corretamente que sua maior, quiçá única, chance de êxito pessoal seria enfrentar no 2º turno o palhaço assassino.

Se um movimento do tipo Diretas Já se avolumasse, poderia propiciar a afirmação de alguma nova liderança no campo antifascista, sem a enorme rejeição do Lula. No entanto, caso ele tivesse como adversário um político monstruoso, com rejeição maior ainda, surfaria na onda da polarização e talvez vencesse.

Eu acuso: se o Bozo foi responsável indiscutível pela morte de algumas centenas de milhares de brasileiros que, sem sua sabotagem ao combate científico da pandemia, estariam conosco até hoje, Lula teve grande parte da culpa pelo psicopata da necropolítica haver concluído seus quatro anos de desgoverno catastrófico, apesar de cometer crimes de responsabilidade às dúzias.

·        O jingle agora é "entrega a Caixa pro centrão também"

Um sabotou as medidas que aumentariam em muito as chances de sobrevivência dos atingidos pela covid. O outro sabotou as iniciativas para, pela via do impeachment, removermos o quanto antes o louco da direção do hospício.

Aos trancos e barrancos, Lula conseguiu seu intento. Mas, sua vitória por diferença irrisória foi, sim, falsa, porque não expressou a correlação real de forças da política brasileira.

A direita se tornou, na década passada, dominante, o que se traduziu em sua atual superioridade numérica nas duas casas do Congresso. E, sem plano de voo, Lula só está conseguindo governar com o consentimento do centrão, mediante a entrega de tudo que aquela ralé exige, inclusive a Caixa Econômica Federal.

Para facilitar a vida do seu governo, Lula concede aos inimigos trunfos valiosíssimos para fortalecerem-se ainda mais, em detrimento do futuro do PT!

E tal consentimento precisa ser obtido em praticamente cada votação importante, com Lula pagando, todas às vezes, um preço altíssimo à predominante bancada dos “fisiológicos unidos jamais serão vencidos”, integrada pelos fisiológicos da Bíblia, da bala, do boi, das boquinhas e das bocarras.

Resumo da ópera: avesso à esquerda desde as jornadas do ABC que originaram o PT, Lula a vem desconstruindo aos poucos desde então.

Para cão bravo, dono manso.

Primeiramente, liderou a formação do partido que as absorveu, depois tudo fez para desideologizá-lo, de forma a torná-lo um inofensivo apêndice da democracia burguesa, limitado a disputar eleições, sem jamais contrapor-se à exploração do homem pelo homem.

A colheita de seus esforços veio no atual século, com cinco presidências de resultados, que propiciaram pequenas melhoras para os explorados, seguidas por grandes pioras.

Os castelos de cartas erguidos principalmente em 2002/2010 desabaram e hoje a esquerda está debilitada como nunca, tendo perdido as ruas e a batalha da formação de opinião. De tanto o PT desinvestir nelas e priorizar apenas as corridas eleitorais, o inimigo as tomou e agora, inclusive, ganha quase todas as eleições.

O pior pecado de Lula foi capitular ante o que há de pior na política brasileira, tirando de nós a autoridade moral de não compactuarmos com a podridão ambiente.

Bolsonaro deixou que as grandes decisões nacionais passassem a ser tomadas pelo centrão... e Lula está agindo exatamente igual! Como fazermos para os despolitizados nos verem como os mocinhos deste faroeste caboclo, se nos igualamos aos bandidos?

De quebra, embora na prática o Lula tenha se transformado numa rainha da Inglaterra, o descontentamento do povo, neste momento histórico de agonia do capitalismo e agudização das suas contradições, se voltará cada vez mais contra ele, o símbolo visível de tudo que está aí.

·        "Pedi e vos será dado" (Ll, 11,5-13)

Enquanto isto, o pior presidente brasileiro de todos os tempos ganha fôlego graças à omissão de Lula no cumprimento do dever.

Sua indecente demora em indicar o novo procurador geral da República torna cada vez mais distante a obrigatória e extremamente necessária colocação atrás das grades do colecionador contumaz de crimes políticos e comuns (único desfecho admissível para o pesadelo que este país viveu entre 2019 e 2022!).

Está na hora de a esquerda brasileira optar: ou decide sobreviver, reassumindo os valores solidários, igualitários e libertários que a definiram nos dois últimos séculos, ou marcha para o abismo junto com os domesticados Lula e PT.

 

Ø  O mito do “ódio branco” da classe trabalhadora. Por Ruy Braga

 

A ascensão de lideranças nacionalista autoritárias como Donald Trump, Viktor Orbán, Marine Le Pen, Matteo Salvini e Andrzej Duda, para não mencionar Jair Bolsonaro, em diferentes contextos políticos nacionais, parece ter revitalizado a empoeirada tese do autoritarismo operário popularizada por Seymour Martin Lipset no início dos anos 1960. Tanto na academia quanto na imprensa, nunca o mito do “ódio branco” da classe trabalhadora foi tão popular como suposto eixo estruturador da ofensiva da extrema-direita em escala global.

Tal ódio adviria da combinação entre o ressentimento relacionado aos avanços dos direitos de grupos sociais oprimidos, como negros, mulheres, latinos, LGBTQIA+, etc., e a desaparição dos bons empregos da era fordista que ajudavam a proteger os privilégios da branquitude e do patriarcado. Arlie Russell Hochschild sintetizou a lógica por trás desse ódio numa metáfora conhecida: nos Estados Unidos, os trabalhadores brancos se sentiriam como pessoas diligentes esperando pacientemente na fila para entrar no sonho americano. No entanto, a partir de certo momento, mulheres, negros, latinos e indivíduos LGBTQIA+ começaram a furar a fila, gerando um ressentimento que foi logo explorado por políticos populistas.

Algumas análises buscaram problematizar esse viés interpretativo observando, como Paolo Gerbaudo, que aos sucessos da extrema-direita trumpista em atrair os trabalhadores brancos, a esquerda socialdemocrata estaria conseguindo responder por meio de uma aproximação igualmente bem-sucedida do precariado feminino e racializado do setor de serviços. À esquerda socialista caberia elaborar um projeto hegemônico capaz de aproximar a classe operária fabril e rural do precariado dos serviços a fim de assegurar uma “nova coligação social” capaz de recolocar a democracia liberal nos trilhos.

Apesar das diferenças, Hochschild e Gerbaudo concordam em um ponto: ao menos eleitoralmente, a classe trabalhadora “branca” teria sido seduzida pelo “populismo direitista” que culpa os “outros”, isto é, os imigrantes, os trabalhadores racializados e os grupos sociais oprimidos, pelos efeitos deletérios da crise da globalização neoliberal iniciada em 2008. A solução preconizada pelos líderes autoritários seria o retorno ao passado fordista quando os empregos eram bons e a ameaça da globalização econômica inexistia. Em suma, uma saída reacionária supostamente capaz de proteger a fração nacional, branca, adulta e masculina, da instabilidade ocupacional decorrente da mercantilização do trabalho.

Usualmente, essas análises apreendem os grupos formados por trabalhadores brancos como unidades ocupacionalmente industriais e politicamente nostálgicas do passado fordista. Isso serve também para caracterizar boa parte da literatura que tem se empenhado em interpretar o Brexit e a aproximação de antigas regiões operárias localizadas na Alemanha, na França e na Itália da extrema-direita nacionalista.

No entanto, quando observamos mais de perto esses trabalhadores, percebemos que a narrativa do ódio branco é pouco convincente. Em primeiro lugar, vale observar que parte significativa desses trabalhadores já são parte do precariado do setor de serviços. As trabalhadoras femininas, por exemplo, concentram-se em atividades de cuidados, limpeza, alimentação e hospedagem, enquanto os trabalhadores masculinos dedicam-se à zeladoria predial, à renovação de telhados e ao transporte de cargas.

Mesmo após o ciclo de desindustrialização que castigou inúmeras comunidades de trabalhadores brancos nos Estados Unidos, ainda é possível encontrar operários engajados em fábricas, porém, sob condições salariais bastante inferiores e submetidos a altas taxas de rotatividade resultantes da difusão da estratégia de terceirização empresarial nas fábricas. Ou seja, esses grupos operários já foram absorvidos pelo precariado, não havendo nada em termos ocupacionais que os diferencie significativamente dos trabalhadores racializados que trabalham, por exemplo, nos armazéns da Amazon. Finalmente, quando miramos as comunidades onde vivem os trabalhadores brancos é fácil perceber que a distinção entre operários industriais e precariado do setor de serviços simplesmente não faz sentido, pois os dois grupos vivem nas mesmas famílias.

Assim, restaria à narrativa do “ódio branco” a nostalgia dos bons e velhos tempos. Trata-se de um aspecto central da explicação da suposta natureza reacionária desses trabalhadores. Aqui é importante compreender que mesmo no auge da era fordista a sindicalização no setor privado da economia estadunidense nunca ultrapassou os 33% da força de trabalho. Historicamente, a maior parte da classe trabalhadora do setor privado jamais conheceu a proteção sindical.

Além disso, considerando que a maioria desses trabalhadores vive ainda hoje em pequenas cidades rurais com menos de 25 mil habitantes, onde os “bons empregos” sempre foram mais uma promessa do que uma realidade, percebemos que o apelo aos bons tempos fordistas não passa de um ardil para justificar o nacionalismo autoritário, com pouca ressonância na memória dos operários.

Na verdade, a nostalgia verificada entre eles remete ao colapso de seu modo de vida rural, isto é, aos laços de intimidade e de cumplicidade outrora existentes em suas comunidades rurais e que asseguravam uma reprodução social estável. As causas desse declínio são múltiplas, mas se concentram, principalmente, em quatro fatores: a epidemia de substâncias ilícitas que atingiu as comunidades rurais desde o início dos anos 2000, os efeitos econômicos da crise de 2008, sobretudo, em termos do fechamento dos pequenos negócios, a terceirização empresarial e a pandemia do novo coronavírus.

Na realidade, a nostalgia advém da impossibilidade de exercer aquilo que essas comunidades tradicionalmente valorizam, isto é, o sentido de autodeterminação assegurado pelo sistema de solidariedades práticas que garantia sua subsistência. No lugar da solidariedade, esses trabalhadores experimentam a alienação. Não por acaso, o comparecimento às urnas nas pequenas comunidades de trabalhadores brancos é significativamente menor que a média nacional e dos maiores centros urbanos do país.

Finalmente, o “ódio branco” é uma narrativa assentada na exclusão violenta de um “outro” racializado. Para tanto, os trabalhadores brancos devem se sentir ameaçados pela competição com os trabalhadores racializados. De fato, a composição racial da América rural tem se alterado ao longo dos anos. Porém, em um ritmo muito lento. Em muitos casos, os trabalhadores latinos são valorizados pelos fazendeiros por aceitarem empregos que os brancos recusam, como limpar o confinamento do gado, por exemplo. Os negros são raros em áreas rurais, preferindo ficar nas regiões metropolitanas.

Em suma, se é possível identificar atitudes individuais preconceituosas entre os trabalhadores brancos, não há uma base social realmente sólida capaz de transformar o racismo em um fator politicamente mobilizador. Enganam-se aqueles que imaginam que promessas de recuperação de empregos industrias à base da construção de muros contra imigrantes será capaz de assegurar o apoio eleitoral para posições extremistas de direita nessas comunidades.

Na verdade, os trabalhadores brancos pobres e os trabalhadores racializados convergem em seus anseios: querem manter sua autodeterminação, assegurar reconhecimento para suas tradições culturais, conquistar igualdade de tratamento perante os governos, garantir boas escolas para seus filhos, receber algum apoio para seus pequenos negócios em momentos de crise e ampliar os investimentos na infraestrutura de suas comunidades. Eles desejam prosperar nas cidades onde nasceram, sem precisar se transformar em trabalhadores nômades, buscando empregos em lugares cada dia mais distantes. Não são eles os responsáveis pelo fortalecimento de posições extremistas de direita. Porém, sem eles, não há como superar a crise da democracia liberal.

 

Fonte: Correio da Cidadania

 

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