Celso Lungaretti: A esquerda brasileira não sobreviverá se acatar a
rendição de Lula ao Centrão
Um manda e o outro obedece? Existe algo mais
frustrante do que vermos nossas previsões serem desmentidas pelos
acontecimentos?
Existe. É quando elas são inteiramente confirmadas
pelos acontecimentos, mas não serviram de nada, pois quem podia aproveitá-las
as ignorou.
É como me sinto agora. Cansei de escrever que uma
falsa vitória do Lula na eleição de 2018 não tiraria o Brasil da armadilha na
qual se debate. Dito e feito.
Ele não é, nem nunca foi, um político comprometido
com causas. A única causa que move todas as ações, falas e intenções do Lula se
chama Luiz Inácio Lula da Silva. Então, desde 2011 ele tinha como obsessão
máxima a volta à presidência da República, custasse o que custasse.
Neste sentido, foi o grande ausente das
manifestações #ForaBolsonaro, porque avaliou corretamente que sua maior, quiçá
única, chance de êxito pessoal seria enfrentar no 2º turno o palhaço assassino.
Se um movimento do tipo Diretas Já se avolumasse,
poderia propiciar a afirmação de alguma nova liderança no campo antifascista,
sem a enorme rejeição do Lula. No entanto, caso ele tivesse como adversário um
político monstruoso, com rejeição maior ainda, surfaria na onda da polarização
e talvez vencesse.
Eu acuso: se o Bozo foi responsável indiscutível
pela morte de algumas centenas de milhares de brasileiros que, sem sua
sabotagem ao combate científico da pandemia, estariam conosco até hoje, Lula
teve grande parte da culpa pelo psicopata da necropolítica haver concluído seus
quatro anos de desgoverno catastrófico, apesar de cometer crimes de
responsabilidade às dúzias.
·
O jingle agora é "entrega a Caixa pro centrão
também"
Um sabotou as medidas que aumentariam em muito as
chances de sobrevivência dos atingidos pela covid. O outro sabotou as
iniciativas para, pela via do impeachment, removermos o quanto antes o louco da
direção do hospício.
Aos trancos e barrancos, Lula conseguiu seu
intento. Mas, sua vitória por diferença irrisória foi, sim, falsa, porque não
expressou a correlação real de forças da política brasileira.
A direita se tornou, na década passada, dominante,
o que se traduziu em sua atual superioridade numérica nas duas casas do
Congresso. E, sem plano de voo, Lula só está conseguindo governar com o
consentimento do centrão, mediante a entrega de tudo que aquela ralé exige,
inclusive a Caixa Econômica Federal.
Para facilitar a vida do seu governo, Lula concede
aos inimigos trunfos valiosíssimos para fortalecerem-se ainda mais, em
detrimento do futuro do PT!
E tal consentimento precisa ser obtido em
praticamente cada votação importante, com Lula pagando, todas às vezes, um
preço altíssimo à predominante bancada dos “fisiológicos unidos jamais serão
vencidos”, integrada pelos fisiológicos da Bíblia, da bala, do boi, das
boquinhas e das bocarras.
Resumo da ópera: avesso à esquerda desde as
jornadas do ABC que originaram o PT, Lula a vem desconstruindo aos poucos desde
então.
Para cão bravo, dono manso.
Primeiramente, liderou a formação do partido que as
absorveu, depois tudo fez para desideologizá-lo, de forma a torná-lo um
inofensivo apêndice da democracia burguesa, limitado a disputar eleições, sem
jamais contrapor-se à exploração do homem pelo homem.
A colheita de seus esforços veio no atual século,
com cinco presidências de resultados, que propiciaram pequenas melhoras para os
explorados, seguidas por grandes pioras.
Os castelos de cartas erguidos principalmente em
2002/2010 desabaram e hoje a esquerda está debilitada como nunca, tendo perdido
as ruas e a batalha da formação de opinião. De tanto o PT desinvestir nelas e
priorizar apenas as corridas eleitorais, o inimigo as tomou e agora, inclusive,
ganha quase todas as eleições.
O pior pecado de Lula foi capitular ante o que há
de pior na política brasileira, tirando de nós a autoridade moral de não
compactuarmos com a podridão ambiente.
Bolsonaro deixou que as grandes decisões nacionais
passassem a ser tomadas pelo centrão... e Lula está agindo exatamente igual!
Como fazermos para os despolitizados nos verem como os mocinhos deste faroeste
caboclo, se nos igualamos aos bandidos?
De quebra, embora na prática o Lula tenha se
transformado numa rainha da Inglaterra, o descontentamento do povo, neste
momento histórico de agonia do capitalismo e agudização das suas contradições,
se voltará cada vez mais contra ele, o símbolo visível de tudo que está aí.
·
"Pedi e vos será dado" (Ll, 11,5-13)
Enquanto isto, o pior presidente brasileiro de
todos os tempos ganha fôlego graças à omissão de Lula no cumprimento do dever.
Sua indecente demora em indicar o novo procurador
geral da República torna cada vez mais distante a obrigatória e extremamente
necessária colocação atrás das grades do colecionador contumaz de crimes
políticos e comuns (único desfecho admissível para o pesadelo que este país
viveu entre 2019 e 2022!).
Está na hora de a esquerda brasileira optar: ou
decide sobreviver, reassumindo os valores solidários, igualitários e
libertários que a definiram nos dois últimos séculos, ou marcha para o abismo
junto com os domesticados Lula e PT.
Ø O mito do
“ódio branco” da classe trabalhadora. Por Ruy Braga
A ascensão de lideranças nacionalista autoritárias
como Donald Trump, Viktor Orbán, Marine Le Pen, Matteo Salvini e Andrzej Duda,
para não mencionar Jair Bolsonaro, em diferentes contextos políticos nacionais,
parece ter revitalizado a empoeirada tese do autoritarismo operário
popularizada por Seymour Martin Lipset no início dos anos 1960. Tanto na
academia quanto na imprensa, nunca o mito do “ódio branco” da classe
trabalhadora foi tão popular como suposto eixo estruturador da ofensiva da
extrema-direita em escala global.
Tal ódio adviria da combinação entre o
ressentimento relacionado aos avanços dos direitos de grupos sociais oprimidos,
como negros, mulheres, latinos, LGBTQIA+, etc., e a desaparição dos bons
empregos da era fordista que ajudavam a proteger os privilégios da branquitude
e do patriarcado. Arlie Russell Hochschild sintetizou a lógica por trás desse
ódio numa metáfora conhecida: nos Estados Unidos, os trabalhadores brancos se
sentiriam como pessoas diligentes esperando pacientemente na fila para entrar
no sonho americano. No entanto, a partir de certo momento, mulheres, negros,
latinos e indivíduos LGBTQIA+ começaram a furar a fila, gerando um
ressentimento que foi logo explorado por políticos populistas.
Algumas análises buscaram problematizar esse viés
interpretativo observando, como Paolo Gerbaudo, que aos sucessos da
extrema-direita trumpista em atrair os trabalhadores brancos, a esquerda
socialdemocrata estaria conseguindo responder por meio de uma aproximação
igualmente bem-sucedida do precariado feminino e racializado do setor de
serviços. À esquerda socialista caberia elaborar um projeto hegemônico capaz de
aproximar a classe operária fabril e rural do precariado dos serviços a fim de
assegurar uma “nova coligação social” capaz de recolocar a democracia liberal
nos trilhos.
Apesar das diferenças, Hochschild e Gerbaudo
concordam em um ponto: ao menos eleitoralmente, a classe trabalhadora “branca”
teria sido seduzida pelo “populismo direitista” que culpa os “outros”, isto é,
os imigrantes, os trabalhadores racializados e os grupos sociais oprimidos,
pelos efeitos deletérios da crise da globalização neoliberal iniciada em 2008.
A solução preconizada pelos líderes autoritários seria o retorno ao passado
fordista quando os empregos eram bons e a ameaça da globalização econômica inexistia.
Em suma, uma saída reacionária supostamente capaz de proteger a fração
nacional, branca, adulta e masculina, da instabilidade ocupacional decorrente
da mercantilização do trabalho.
Usualmente, essas análises apreendem os grupos
formados por trabalhadores brancos como unidades ocupacionalmente industriais e
politicamente nostálgicas do passado fordista. Isso serve também para
caracterizar boa parte da literatura que tem se empenhado em interpretar o
Brexit e a aproximação de antigas regiões operárias localizadas na Alemanha, na
França e na Itália da extrema-direita nacionalista.
No entanto, quando observamos mais de perto esses
trabalhadores, percebemos que a narrativa do ódio branco é pouco convincente.
Em primeiro lugar, vale observar que parte significativa desses trabalhadores
já são parte do precariado do setor de serviços. As trabalhadoras femininas,
por exemplo, concentram-se em atividades de cuidados, limpeza, alimentação e
hospedagem, enquanto os trabalhadores masculinos dedicam-se à zeladoria
predial, à renovação de telhados e ao transporte de cargas.
Mesmo após o ciclo de desindustrialização que
castigou inúmeras comunidades de trabalhadores brancos nos Estados Unidos,
ainda é possível encontrar operários engajados em fábricas, porém, sob
condições salariais bastante inferiores e submetidos a altas taxas de
rotatividade resultantes da difusão da estratégia de terceirização empresarial
nas fábricas. Ou seja, esses grupos operários já foram absorvidos pelo
precariado, não havendo nada em termos ocupacionais que os diferencie
significativamente dos trabalhadores racializados que trabalham, por exemplo,
nos armazéns da Amazon. Finalmente, quando miramos as comunidades onde vivem os
trabalhadores brancos é fácil perceber que a distinção entre operários
industriais e precariado do setor de serviços simplesmente não faz sentido,
pois os dois grupos vivem nas mesmas famílias.
Assim, restaria à narrativa do “ódio branco” a
nostalgia dos bons e velhos tempos. Trata-se de um aspecto central da
explicação da suposta natureza reacionária desses trabalhadores. Aqui é
importante compreender que mesmo no auge da era fordista a sindicalização no
setor privado da economia estadunidense nunca ultrapassou os 33% da força de
trabalho. Historicamente, a maior parte da classe trabalhadora do setor privado
jamais conheceu a proteção sindical.
Além disso, considerando que a maioria desses
trabalhadores vive ainda hoje em pequenas cidades rurais com menos de 25 mil
habitantes, onde os “bons empregos” sempre foram mais uma promessa do que uma
realidade, percebemos que o apelo aos bons tempos fordistas não passa de um
ardil para justificar o nacionalismo autoritário, com pouca ressonância na
memória dos operários.
Na verdade, a nostalgia verificada entre eles
remete ao colapso de seu modo de vida rural, isto é, aos laços de intimidade e
de cumplicidade outrora existentes em suas comunidades rurais e que asseguravam
uma reprodução social estável. As causas desse declínio são múltiplas, mas se
concentram, principalmente, em quatro fatores: a epidemia de substâncias
ilícitas que atingiu as comunidades rurais desde o início dos anos 2000, os
efeitos econômicos da crise de 2008, sobretudo, em termos do fechamento dos
pequenos negócios, a terceirização empresarial e a pandemia do novo
coronavírus.
Na realidade, a nostalgia advém da impossibilidade
de exercer aquilo que essas comunidades tradicionalmente valorizam, isto é, o
sentido de autodeterminação assegurado pelo sistema de solidariedades práticas
que garantia sua subsistência. No lugar da solidariedade, esses trabalhadores
experimentam a alienação. Não por acaso, o comparecimento às urnas nas pequenas
comunidades de trabalhadores brancos é significativamente menor que a média
nacional e dos maiores centros urbanos do país.
Finalmente, o “ódio branco” é uma narrativa
assentada na exclusão violenta de um “outro” racializado. Para tanto, os
trabalhadores brancos devem se sentir ameaçados pela competição com os
trabalhadores racializados. De fato, a composição racial da América rural tem
se alterado ao longo dos anos. Porém, em um ritmo muito lento. Em muitos casos,
os trabalhadores latinos são valorizados pelos fazendeiros por aceitarem
empregos que os brancos recusam, como limpar o confinamento do gado, por
exemplo. Os negros são raros em áreas rurais, preferindo ficar nas regiões
metropolitanas.
Em suma, se é possível identificar atitudes
individuais preconceituosas entre os trabalhadores brancos, não há uma base
social realmente sólida capaz de transformar o racismo em um fator
politicamente mobilizador. Enganam-se aqueles que imaginam que promessas de
recuperação de empregos industrias à base da construção de muros contra
imigrantes será capaz de assegurar o apoio eleitoral para posições extremistas
de direita nessas comunidades.
Na verdade, os trabalhadores brancos pobres e os
trabalhadores racializados convergem em seus anseios: querem manter sua
autodeterminação, assegurar reconhecimento para suas tradições culturais,
conquistar igualdade de tratamento perante os governos, garantir boas escolas
para seus filhos, receber algum apoio para seus pequenos negócios em momentos
de crise e ampliar os investimentos na infraestrutura de suas comunidades. Eles
desejam prosperar nas cidades onde nasceram, sem precisar se transformar em trabalhadores
nômades, buscando empregos em lugares cada dia mais distantes. Não são eles os
responsáveis pelo fortalecimento de posições extremistas de direita. Porém, sem
eles, não há como superar a crise da democracia liberal.
Fonte: Correio da Cidadania
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